Na
segunda metade dos anos 1980, Club dos
Homens tornou-se uma das mais inventivas publicações nacionais. Mesmo com
uma redação pequena, a revista conseguiu realizar reportagens acima da média.
Isso se deve em grande parte aos repórteres Euclydes Mello (pseudônimo de um
nome conhecido da nossa imprensa) e Marcos Faerman (1943-1999). Embora gaúcho
de nascimento, este brilhante profissional fez história no Jornal da Tarde de
São Paulo. Ele foi um dos responsáveis pelo momento de ouro do periódico do
grupo Estado. Fundador do lendário jornal Versus, Faerman foi uma das
principais vozes da imprensa alternativa durante a Ditadura Militar. Professor
de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, o repórter gremista faleceu com
apenas 55 anos. Faerman colaborou como freelancer para diversas revistas
masculinas inclusive com pseudônimos. Foi na Club dos Homens que ele publicou algumas de suas melhores matérias.
Selecionei aqui uma verdadeira aula de jornalismo: uma reportagem especial
sobre a Boca de Santos, sendo este um dos primeiros trabalhos do premiado
fotógrafo Araken Alcântara.
A BOCA: NOITES DE PAIXÃO E MORTE
Boca de Santos.
Por Marcos Faerman
Ensaio fotográfico de Araken Alcântara
Boca de Santos, São
Paulo. Histórias. Navio, marujos, porto, riquezas. Chave de Ouro, um
restaurante. Golfo, barra pesada, quadrilátero. Neon, luz de uma estrela morta.
O último boêmio da Boca. Knudd, tatuador, dragão. Night...fantasy...Um garota
fazendo strip-tease com a sombra projetada no espelho. Nuvem de droga. Love
Story, Elizabete e os gregos. Tem puta que trepa por um prato de comida. O sol
pondo a pique o mistério das sombras. Catacumba em que vivem as mulheres que já
levaram uma boa rasteira. Duelos em que os homens se amarravam com as camisas e
lutavam na faca. Um americano da Carolina do Sul. O Negro Orlando, o maior
dançarino da Boca. Histórias. Realidade.
I.
Na Boca...aqui não existe
história completa...só flash...foi o que eu ouvi de um malandro-vendedor de
óculos ray-bans nas noites da Boca...Porque um cara para vender óculos escuros
no escuro tem que ser um bocado malandro, ou não? E era assim que ele me falava,
sábio, debaixo do neon do cabaré Love Story, que na Boca bem os tiroteios se
completam...Nada!...A vida vai criando situações aos saltos...Aos voos. Como o
jeito de lutar dos pequenos marujos filipinos, os impossíveis, os príncipes do
caratê, os mais brigões dos brigões. Que nem um marujo filipino que depois de
humilhado num cabaré foi ao navio. E vestiu um quimono. O cara era faixa preta
simplesmente. Vestir quimono era como vestir a roupa de Super-Homem. Voltou e
voou como herói de TV; estardalhaço na Boca. Mas tudo uma história feita de
flashes, como dizia o contador de causos. Até que uma puta desdentada chegou a
um bar, no exato momento em que o sol começava a bater nos navios do porto, ali
perto, e a puta me fez a pergunta: era se eu sabia por que todos os anos a
mulher mais linda da Boca é morta. Falava confusamente, a mulher. E ficava a
insinuação sobre algum ritual de Satã.
II.
Hoje em dia, é até
difícil saber por que a Boca foi tão famosa. Quase todos os cabarés pertencem a
Oscar, o Grego, mas nem é isso não. É que outrora a fama da Boca se estendia de
sol a sol, de lua a lua, por todo o planeta – ou melhor por onde um navio
carregasse marujos. E teve o tempo do café. O porto de Santos tinha todas as
riquezas. Era o imã que atraía putas da França, de todas as Europas. Sabiam os
oficiais das marinhas marcantes do mundo que as putas podiam satisfazer as
gulas num restaurante como o Chave de Ouro (O Chave de Ouro hoje é uma
espelunca sinistra). E quando alguém saia das luzes do coração da Boca –
digamos assim- chegava ao Golfo.
Não havia maluco de São
Paulo, uns bons anos atrás, que não se dispusesse a arriscar a pele para ir
atrás de anfetamina, de cocaína, nas entranhas do Golfo. Vou explicar que o
Golfo era um quadrilátero de ruas, e que ali imperava a barra pesada. O Golfo
era onde uma faca podia te esperar se você estivesse, como escreveu um poeta
americano chamado Alain Guinsburg, atrás de uma dose pesada de uma droga
qualquer...Mas não se assuste, moço. O Golfo morreu e qualquer trouxa pode
pisar em qualquer rua da Boca. A própria Boca já morreu, no parecer autorizado
de um seu conhecedor, o jornalista e escritor Adelto Gonçalves. É, então, como
se as luzes dos cabarés (de hoje) fossem luzes fantasmas. Aquele neon ali, que
você está vendo, é como a luz de uma estrela morta. Quem é que sabe que a
estrela morreu?
III.
A teoria do vendedor de
óculos está certa. Só é possível decifrar episódios incompletos dessa história.
Ninguém tem o cenário completo, nem terá. Porque nem mesmo os senhores que
ainda insistem em buscar fantasmas na Boca sabem que existiu um moço chamado
Reinaldo M...Vou contar pra vocês o que me disse Adelto. “O último boêmio da
Boca foi ele”. A descoberta desse personagem pareceu fascinante...Vamos olhar o
caledoscópio...O que é que parece?
...Vai surgindo o rosto
pálido de um moço infeliz. Reinaldo M. ficava morgando no fundo dos cabarés.
Tomava água tônica a noite inteira...Em tantas noites anteriores já tinha
bebido nada menos que todo o álcool do mundo. O que Adelto contou é que
Reinaldo não era nenhum herói. Era um moço filho de operários, que não dava
sorte com as mulheres mais próximas de seu emprego, e ele era jornalista.
Escrevia reportagens policiais e assinava como sendo o “Pouca Pena”, pois tinha
pouco cabelo... “As burguesas não iam dar para ele – ouvi e as histórias com as
putas eram efêmeras”. Assim...
...Um dia, Reinaldo ia
saindo do cabaré Fugitivo quando...É preciso um pouco de suspense
aqui...Observem que Adelto acha que tudo aconteceu porque Reinaldo insistia na
miragem. Se todo mundo achava que a Boca tradicional tinha morrido, por que ele
não achava?....Sabe-se lá o que acontece, mas a noite é escura. Dois tipos se
aproximam do último boêmio romântico, confidente das putas. Claro que não são
personagens da própria Boca, são bandidinhos de fora, porque alguém da Boca
saberia que Reinaldo era duro. Eles pedem grana e dão facadas. Reinaldo entra
num táxi com as duas mãos na barriga.
E o boêmio morre num branco leito da Santa Casa.
IV.
Era bem o que me dissera
anos atrás o tatuador Knudd, que conheceram outros assustadores como o bas-fond
de Marselha, na França, com suas quadrilhas de metralhadora. Knudd atracou no
porto de Santos com os dragões voadores que tatuava no peito dos marinheiros.
Mas, um dia, ele se assustou com a vida na Boca. Com a morte na Boca ele se
assustou. Foi há uns dez, quinze anos atrás que o Tatuador sueco começou a
achar que nenhum Código de Hinra regulava a existência naqueles cantos...Antes,
em épocas mais gloriosas, as pessoas que viviam na Boca eram respeitadas na
Boca. Tudo mudou, e um menino qualquer podia atracar a faca no teu pescoço, ele
me dizia. Por qualquer miséria, a tua vida ia embora. Knudd (que já morreu)
foi, então, para longe da Boca. E o que é a Boca sem o tatuador dos mais
poderosos dragões?
V.
Mas a história da Boca
sempre se renova para o visitante que chega de algum lugar atrás de tanta
coisa...Vejam as letras garranchadas na porta do cabaré.
E logo vem as referências
às Garotas Eróticas. Night...Fantasy...Isso é que é! Uma garota loira passa
abraçada ao coreano. Ela diz, gesticulando: “No problem!”. O coreano responde:
“No problem”. E os visitantes percorrem strips, como o da garotinha de cara
moderna que faz strip em ritmo de jazz. Dança moderna. O cabaré olha
interessado.
Mas uma senhora mais
antiga do cabaré me explica que esse não é o strip verdadeiro. O strip clássico
tem regras fixas, e foi aprendido das francesas. É um ritual que envolve
precisos movimentos de sedução. A meia negra ou vermelha presa entre os dedos
dos pés, que voa num movimento gracioso dos braços e mãos.
Jogos e devaneios que
nasceram em Paris e que só Paris pode mudar. E quando via o ilustre passa a
dança deslumbrante da pequena garota – aquele strip moderno -, senhora que foi
Princesa dos stripers de Santos, em época distante, disse que aquele modernismo
era absurdo, ilógico e antiestético.
A garotinha dançava com a
própria sombra projetada no espelho e no labirinto de luzes vermelhas. Trocava
olhares drogados com sua gentil silhueta.
VI.
Atrás das luzes dos
strips. Nos camarins, há um cenário escuro. É como se um crime estivesse-sempre-sendo
tramado atrás das escadas que parecem que não levam a lugar nenhum. É uma
mistura de lixo e suspeição, o que se arma nos bastidores do cabaré. Lixo,
suspeitas e fadiga. É a hora em que o travesti olha sua figura num espelho
pálido – e o que é que a cumplicidade do espelho lhe dirá? E o que dirá o olhar
do travesti quando a bela garota do strip sai de cena e vai cheirar um pouco de
cocaína, na luz mortiça do banheiro? A fileira branca passa de nariz a nariz.
Os olhos da menina têm o brilho nuclear da droga – mas a dose exagerada
transforma a euforia em impasse de não saber o que primeiro dizer – e tudo
passa a ser dito pelos seus olhos apenas. O diretor do show (que não pode
parar) fala sonhadoramente sobre os impulsos eróticos da vida do cabaré. Para o
diretor do show, muitas mulheres são putas por tesão. Estamos no Casablanca. O
Grego paga cem cruzados por dia a cada uma das moças que ficam no cabaré, e 180
para as que fazem shows. Pudera! É muito pouco dinheiro, penso. O diretor do
show fala (estamos nos bastidores) de uma moça lindíssima de Campinas. Escolheu
a vida da noite por tesão...
Um tira explica para o
repórter e para o fotógrafo Araken que as grandes ventosas que saem da central
de tráfico de cocaína e maconha de Santos, na Chácara das Paineiras, lançam uma
imensa nuvem de drogas sobre a cabeça das mulheres da Boca. Quase todas cheiram
e fumam, enquanto dançam e fodem. A Boca é hoje um imenso organismo drogado.
Quando uma moça negra ri idiotamente para nós, e é escorraçada por uma das putas,
o tira me explica que essa moça fuma maconha o dia inteiro, e ficou assim,
perdida nos vapores do fumo, perdeu o juízo de vez.
VII.
O céu chuvoso da Boca foi
substituído no cenário da história por cores azuis e amarelas de um dia
sonâmbulo. Todas as horas da Boca têm as tinturas do sonho. E do medo. Não há
um momento em que a tua caminhada não se sinta ameaçada por um tiro, por uma
faca. Um policial acompanhava os caçadores de histórias (o repórter e o
fotógrafo) – e estávamos sentados no meio da confusão estudada do Love Story
(onde todas as bebedeiras da noite chegam ao organismo máximo) quando chegou
Elizabete e nos contou peripécias emocionantes. Era quase uma canção ou uma
tragédia de bolero. Real como todos os boleros, e era mais ou menos assim, sobre
o Grego...o grego que foi seu marido...o Grego...Ela o conheceu ali, no Love
Story, faz anos “e fui dormir cm ele no hotel Ping-Pong...ping-pong –
ping-pong...Ele era um terceiro maquinista da Marinha Mercante...E eu dei para
ele tudo a que tinha direito...Ele era gostoso...Aquele que põe no cu e não
dói...Baixinho, gostoso e fraquinho era ele, o meu grego...Ah, isso é vida de
puta da zona mas vida de puta é muita coisa mais! Manda muita mulher casada
para cá, para ver. Manda elas fazerem o que nós fazemos! Puta é, muitas vezes,
mais direita do que certas mulheres casadas...Mas na segunda viagem, meu grego
me levou embora. Fui de avião, no voo 144 da Varig, cartão 120, eu e meu filho
de dois anos que agora tem seis). E fui para Ateneus, e para Pireus”...
VIII.
Reflexos inverossímeis do
sol davam novos brilhos à narrativa de de Elizabete, que agora se entregava às
pulsões de sua aventura, com abandono e tristeza. Era como se todo os apogeus e
quedas de sua existência estivessem contidos naquela história, assim como nas
histórias de criança, nas lendas do Oriente, todos os gigantes coubessem nas
menores lâmpadas ou garrafadas mágicas. Na Grécia, estava até a magia de uma
grande banheira na casa do marido, em que podia quase nadar. Mas havia um
porém. O marido morava com a mãe, e a mãe mandava em seu marujo mercante. A
velha não gostava nem que ela tomasse muito banho, gastasse água. Vida de puta
é assim, quando pensa que é feliz, tem disso. A Grécia era uma cidade muito
linda – como sempre conta nas rodas que se fazem no Love Story – mas, pobre
dela, a velha até quis fazer dela faxineira em escritórios da vizinhança. Que
ela não se chamasse Elizabete da Boca de Santos. Pegou uma faca e falou que ia
matar a mãe dele. Veio embora para o Brasil, e ele chorava no aeroporto que nem
um velho. E ele dizia que agora era um homem morto. Quatro anos no Brasil, e
ainda lembra do marujo Papapostovi. Não vai deixar de amar Papapostovi, nunca.
Mas tem uma vingança armada: vingança, novo amor, quem sabe?...Vai voltar para a
Grécia, com o marinheiro Costa, claro que é grego. Só ama gregos... “Brasileiro
só tirou meu cabaço e me contou mentiras – e quem me deu valor foi um simples
marinheiro grego. Brasileiro não me come. Brasileiro não sabe trepar”.
IX.
O mar vai levando a doçura
possível da manhãzinha para os lados da Boca, e os navios que eram sombras são
agora grandes estruturas que recriam os espaços e nossos olhares. Impossível
não ficar olhando para os navios enquanto Elizabete, de cara tão sofrida, fala.
Ela nos leva em sua conversa para o Golfo...Foi criada no Golfo quando era o
Golfo... “Porque tive um pai filho da puta. Por causa dele minha mãe vive há 32
anos sozinha e batalhando sem parar. Só não estudei porque fui doidinha. Eu
cuidava de uma cachorra da velha Ivone, uma cafetina. Fui entrando na vida de
puta que não é uma vida feliz. Tem muita puta que passa fome e trepa por um
prato de comida. Tem muita puta que só come sanduíche por bondade dos garçons.
Eu passei fome e comi tantas vezes só café e pão por bondade dos donos do Galo
de Ouro, por isso respeito seu Alberto, o Toninho...Fazer sexo por um prato de
comida. Deus!”.
A cara de Elizabete ficou
com uma marca de raiva. “A vida ensina a apanhar e a bater, e viver numa boa é
isso. As mulheres agora têm medo de mim. Hoje, eu sei bater e sei cortar. Já
cortei dois gregos. Só não corto mulher. Em mulher eu bato de cinta mas não
corto. Mas americano eu corto porque na América eles pra comer uma buceta pagam
duzentos dólares e aqui querem dar duzentos cruzeiros, se pede 500 eles
reclamam...mas eu só saio com grego, só gosto de grego, só dou para grego...”.
X.
Deixamos Elizabete e
saímos pela manhã da Boca entre cenas curiosas como uma moça maltrapilha
mostrando os peitos para um mendigo bêbado com pose de rei, uns tipos drogados,
uma radiopatrulha sonolenta, o sol pondo a pique o mistério das sombras mas a
sensação de medo continuando. Porque a Boca é sempre assim. E quando saímos da
parte mais nobre para os prédios mais sórdidos, vamos vendo as catacumbas em
que vivem as mulheres que já levaram uma boa rasteira, e caíram nos porões onde
a trepada vale alguns cruzados que nem pagam o café...Num desses porões vivia,
tempinho faz, um moço pálido, criminoso, escorraçado do xilindró pela mesma
razão que o correram da Boca – porque AIDS já pode até tê-lo levado ao
cemitério próximo, onde as putas são enterradas ao lado de gigolôs e marafonas.
Assim é essa comédia humana.
XI.
E na nova noite que se
fez fomos então ao sr. Osvaldo Assef, numa das principais ruas de Santos, ao
lado do clube Sírio-Libanês escutar os últimos movimentos dessa sinfonia. Vamos
chama-lo de “cantos do passado”. Depois de todas aquelas viagens pela Boca, e
inexcedível a nova situação: na confortável casa do sr. Assef, antigo vereador,
homem honrado que insinuou parte de sua existência na vida da Boca, onde foi
amigo de um dos mitos da Boca eterna, o Negro Orlando.
Num conforto oriental,
ouvi:
“Negro Orlando...Ah, ele
passava todo Natal comigo. Tive passagens memoráveis com ele. Você sabe que até
o fim da vida ele andava armado, o negro...O meu irmão negro? Eu era
rapaizinho, isso faz mais de uns trinta anos, quando cruzei com o Negro Orlando,
na Boca. O negro tinha uma pata memorável (diz o sr. Assef ainda hoje com um
tórax que lembra os reclames do falecido Charles Atlas)...A mão do negro era
assim. O negro veio e me disse: Não pode ter dois valentes na cidade! Era a
última coisa que eu queria ouvir. Eu sabia bater, brigava bem, mas logo disse
ao negro: “O valente é você... É... só tem um, é você”. O negro Orlando riu
inteiro. “Então...então vai ser meu compadre”. Eu era campeão de judô, campeão
de levantamento de peso, recordista brasileiro de peso, mas como competir com
ele? Isso foi na Boca antiga, de muitos valentes, mas tão humana. As brigas
eram memoráveis: havia duelos em que os homens se amarravam com as camisas e
lutavam na faca. Fiquei pensando a vida inteira naquele encontro... “Você é o
Negro Orlando, eu sou um garoto...” Eu tinha vinte e um anos... A cara alegre
que o negro fez... Lutas, desafios...Como quando o Caroço, um cabeça-chata,
pequenininho, desafiou Negro Orlando... O que ele deu de pancada no Caroço...
“Chega, você vai matar o cara”, eu gritei para Orlando. Ele respondeu: “E ele
vai morrer”.
Naquele tempo, os tipos
mais perigosos iam para a prisão da Ilha Anchieta. Quando aconteceu o levante
da Ilha Anchieta, Negro Orlando, de repente, se revoltou com os companheiros
que queriam fazer reféns na escola... “Ele pegou a metralhadora e guarneceu a escola,
a professora da escola...Ele foi indultado, voltou para cá, foi aquela
festa...A amante dele era a Irene...Ele viu a Irene, e deu um tapa nela...Sua
puta! Sua sem-vergonha, você me traiu sua puta! Foi preso de novo, no ato...” E
o fio do novelo com as histórias do Negro vai rolando: cenas de pancadarias,
tiros, valentões que perdiam a valentia diante das patas enormes (as mãos, as
mãos!) do negro.
Um americano enorme de
muito mais de dois metros entra na Boca e alguém diz ao Negro que aquele
americano é da Carolina do Sul e que lá eles não gostam de negros. Orlando,
furioso, investe sobre o gigante, e o derruba. O homem era do tamanho de um
cavalo mas caiu, enquanto o negro gritava: “Carolina do Sul é a puta que o
pariu”.
Outra vez, dá uma
confusão na Câmara de Vereadores, e a galeria xinga Assef, o ameaçava. O Negro
Orlando aparece com uma arma na mão e grita: “O que é que esses putos querem?
Se tocarem em você, mando bala em todo mundo”. (E Assef, contando essas
histórias, fica cada vez mais parecido com John Wayne, em certos filmes, bem
John Wayne. Ele e o Negro Orlando, em lutas memoráveis, são heróis de uma Boca
que lembra o western. “Como é que ele sempre aparecia?”, pergunta Assef, que tem
a ouvi-lo a esposa, uma filha... “Não tinha valente para ele”).
Negro Orlando vivia do
jogo. Pudera. Com a mão enorme que tinha, o que não podia esconder na mão. Um
dia, Assef chamou seu irmão negro e lhe pediu que levasse seu menino, seu
filho, até a Boca, para a iniciação na vida masculina. Quem é que ia tocar no
garoto ao lado do Negro? O Negro foi ficando velho. Assef sempre ao seu lado.
Velho, doente, um câncer...E o Negro ia sumindo. O Negro que tinha sido o maior
dançarino da Boca, e que se foi em novembro de 79. Assef baixa a cabeça. Não
quis ver o último suspiro do irmão, que nos tempos derradeiros só queria saber
de se matar. Pedia, implorava um revólver, veneno, qualquer coisa.
“Mas que vantagem você
vai levar, Orlando? Calma! Você vai morrer.”
Negro Orlando. O
bailarino – o maior da Boca. Como é que daria para esquecer certas
sinuosidades? Ele dava um passo, erguia a dama, levantava o pé e descia a dama.
Sempre dançando erecto. Que elegância! Quem brilharia mais nas noitadas do
Sambadança, ali na General Câmara com
Brás Cubas? Quem era mais elegante nas noitadas do Imperador? Era pra lá
que iam as mulheres quando fechavam os bordéis da João Pessoa, da General
Câmara, da Brás Cubas, da Senador Feijó...
Todo cabaré palpitava no
grande momento da chegada das putas...E o cortejo das francesas era liderado
por Marcela, e a passagem das argentinas tinha a frente a doce Zezé.
As francesas entravam na
casa ao som do can-can.
As argentinas...E era um
tango...Um tangaço.
Deus! Tudo isso é
verdade.
Publicado originalmente
na revista Club dos Homens número quatro do ano IV (janeiro de 1988)
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