sábado, 17 de janeiro de 2015

VSP e as proibidas II: Club dos Homens

Na segunda metade dos anos 1980, Club dos Homens tornou-se uma das mais inventivas publicações nacionais. Mesmo com uma redação pequena, a revista conseguiu realizar reportagens acima da média. Isso se deve em grande parte aos repórteres Euclydes Mello (pseudônimo de um nome conhecido da nossa imprensa) e Marcos Faerman (1943-1999). Embora gaúcho de nascimento, este brilhante profissional fez história no Jornal da Tarde de São Paulo. Ele foi um dos responsáveis pelo momento de ouro do periódico do grupo Estado. Fundador do lendário jornal Versus, Faerman foi uma das principais vozes da imprensa alternativa durante a Ditadura Militar. Professor de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, o repórter gremista faleceu com apenas 55 anos. Faerman colaborou como freelancer para diversas revistas masculinas inclusive com pseudônimos. Foi na Club dos Homens que ele publicou algumas de suas melhores matérias. Selecionei aqui uma verdadeira aula de jornalismo: uma reportagem especial sobre a Boca de Santos, sendo este um dos primeiros trabalhos do premiado fotógrafo Araken Alcântara.



A BOCA: NOITES DE PAIXÃO E MORTE



Boca de Santos.



Por Marcos Faerman

Ensaio fotográfico de Araken Alcântara



Boca de Santos, São Paulo. Histórias. Navio, marujos, porto, riquezas. Chave de Ouro, um restaurante. Golfo, barra pesada, quadrilátero. Neon, luz de uma estrela morta. O último boêmio da Boca. Knudd, tatuador, dragão. Night...fantasy...Um garota fazendo strip-tease com a sombra projetada no espelho. Nuvem de droga. Love Story, Elizabete e os gregos. Tem puta que trepa por um prato de comida. O sol pondo a pique o mistério das sombras. Catacumba em que vivem as mulheres que já levaram uma boa rasteira. Duelos em que os homens se amarravam com as camisas e lutavam na faca. Um americano da Carolina do Sul. O Negro Orlando, o maior dançarino da Boca. Histórias. Realidade.



I.



Na Boca...aqui não existe história completa...só flash...foi o que eu ouvi de um malandro-vendedor de óculos ray-bans nas noites da Boca...Porque um cara para vender óculos escuros no escuro tem que ser um bocado malandro, ou não? E era assim que ele me falava, sábio, debaixo do neon do cabaré Love Story, que na Boca bem os tiroteios se completam...Nada!...A vida vai criando situações aos saltos...Aos voos. Como o jeito de lutar dos pequenos marujos filipinos, os impossíveis, os príncipes do caratê, os mais brigões dos brigões. Que nem um marujo filipino que depois de humilhado num cabaré foi ao navio. E vestiu um quimono. O cara era faixa preta simplesmente. Vestir quimono era como vestir a roupa de Super-Homem. Voltou e voou como herói de TV; estardalhaço na Boca. Mas tudo uma história feita de flashes, como dizia o contador de causos. Até que uma puta desdentada chegou a um bar, no exato momento em que o sol começava a bater nos navios do porto, ali perto, e a puta me fez a pergunta: era se eu sabia por que todos os anos a mulher mais linda da Boca é morta. Falava confusamente, a mulher. E ficava a insinuação sobre algum ritual de Satã.



II.



Hoje em dia, é até difícil saber por que a Boca foi tão famosa. Quase todos os cabarés pertencem a Oscar, o Grego, mas nem é isso não. É que outrora a fama da Boca se estendia de sol a sol, de lua a lua, por todo o planeta – ou melhor por onde um navio carregasse marujos. E teve o tempo do café. O porto de Santos tinha todas as riquezas. Era o imã que atraía putas da França, de todas as Europas. Sabiam os oficiais das marinhas marcantes do mundo que as putas podiam satisfazer as gulas num restaurante como o Chave de Ouro (O Chave de Ouro hoje é uma espelunca sinistra). E quando alguém saia das luzes do coração da Boca – digamos assim- chegava ao Golfo.



Não havia maluco de São Paulo, uns bons anos atrás, que não se dispusesse a arriscar a pele para ir atrás de anfetamina, de cocaína, nas entranhas do Golfo. Vou explicar que o Golfo era um quadrilátero de ruas, e que ali imperava a barra pesada. O Golfo era onde uma faca podia te esperar se você estivesse, como escreveu um poeta americano chamado Alain Guinsburg, atrás de uma dose pesada de uma droga qualquer...Mas não se assuste, moço. O Golfo morreu e qualquer trouxa pode pisar em qualquer rua da Boca. A própria Boca já morreu, no parecer autorizado de um seu conhecedor, o jornalista e escritor Adelto Gonçalves. É, então, como se as luzes dos cabarés (de hoje) fossem luzes fantasmas. Aquele neon ali, que você está vendo, é como a luz de uma estrela morta. Quem é que sabe que a estrela morreu?



III.



A teoria do vendedor de óculos está certa. Só é possível decifrar episódios incompletos dessa história. Ninguém tem o cenário completo, nem terá. Porque nem mesmo os senhores que ainda insistem em buscar fantasmas na Boca sabem que existiu um moço chamado Reinaldo M...Vou contar pra vocês o que me disse Adelto. “O último boêmio da Boca foi ele”. A descoberta desse personagem pareceu fascinante...Vamos olhar o caledoscópio...O que é que parece?



...Vai surgindo o rosto pálido de um moço infeliz. Reinaldo M. ficava morgando no fundo dos cabarés. Tomava água tônica a noite inteira...Em tantas noites anteriores já tinha bebido nada menos que todo o álcool do mundo. O que Adelto contou é que Reinaldo não era nenhum herói. Era um moço filho de operários, que não dava sorte com as mulheres mais próximas de seu emprego, e ele era jornalista. Escrevia reportagens policiais e assinava como sendo o “Pouca Pena”, pois tinha pouco cabelo... “As burguesas não iam dar para ele – ouvi e as histórias com as putas eram efêmeras”. Assim...



...Um dia, Reinaldo ia saindo do cabaré Fugitivo quando...É preciso um pouco de suspense aqui...Observem que Adelto acha que tudo aconteceu porque Reinaldo insistia na miragem. Se todo mundo achava que a Boca tradicional tinha morrido, por que ele não achava?....Sabe-se lá o que acontece, mas a noite é escura. Dois tipos se aproximam do último boêmio romântico, confidente das putas. Claro que não são personagens da própria Boca, são bandidinhos de fora, porque alguém da Boca saberia que Reinaldo era duro. Eles pedem grana e dão facadas. Reinaldo entra num táxi com as duas mãos na barriga.


E o boêmio morre num branco leito da Santa Casa.



IV.



Era bem o que me dissera anos atrás o tatuador Knudd, que conheceram outros assustadores como o bas-fond de Marselha, na França, com suas quadrilhas de metralhadora. Knudd atracou no porto de Santos com os dragões voadores que tatuava no peito dos marinheiros. Mas, um dia, ele se assustou com a vida na Boca. Com a morte na Boca ele se assustou. Foi há uns dez, quinze anos atrás que o Tatuador sueco começou a achar que nenhum Código de Hinra regulava a existência naqueles cantos...Antes, em épocas mais gloriosas, as pessoas que viviam na Boca eram respeitadas na Boca. Tudo mudou, e um menino qualquer podia atracar a faca no teu pescoço, ele me dizia. Por qualquer miséria, a tua vida ia embora. Knudd (que já morreu) foi, então, para longe da Boca. E o que é a Boca sem o tatuador dos mais poderosos dragões?



V.



Mas a história da Boca sempre se renova para o visitante que chega de algum lugar atrás de tanta coisa...Vejam as letras garranchadas na porta do cabaré.



E logo vem as referências às Garotas Eróticas. Night...Fantasy...Isso é que é! Uma garota loira passa abraçada ao coreano. Ela diz, gesticulando: “No problem!”. O coreano responde: “No problem”. E os visitantes percorrem strips, como o da garotinha de cara moderna que faz strip em ritmo de jazz. Dança moderna. O cabaré olha interessado.



Mas uma senhora mais antiga do cabaré me explica que esse não é o strip verdadeiro. O strip clássico tem regras fixas, e foi aprendido das francesas. É um ritual que envolve precisos movimentos de sedução. A meia negra ou vermelha presa entre os dedos dos pés, que voa num movimento gracioso dos braços e mãos.



Jogos e devaneios que nasceram em Paris e que só Paris pode mudar. E quando via o ilustre passa a dança deslumbrante da pequena garota – aquele strip moderno -, senhora que foi Princesa dos stripers de Santos, em época distante, disse que aquele modernismo era absurdo, ilógico e antiestético.



A garotinha dançava com a própria sombra projetada no espelho e no labirinto de luzes vermelhas. Trocava olhares drogados com sua gentil silhueta.



VI.



Atrás das luzes dos strips. Nos camarins, há um cenário escuro. É como se um crime estivesse-sempre-sendo tramado atrás das escadas que parecem que não levam a lugar nenhum. É uma mistura de lixo e suspeição, o que se arma nos bastidores do cabaré. Lixo, suspeitas e fadiga. É a hora em que o travesti olha sua figura num espelho pálido – e o que é que a cumplicidade do espelho lhe dirá? E o que dirá o olhar do travesti quando a bela garota do strip sai de cena e vai cheirar um pouco de cocaína, na luz mortiça do banheiro? A fileira branca passa de nariz a nariz. Os olhos da menina têm o brilho nuclear da droga – mas a dose exagerada transforma a euforia em impasse de não saber o que primeiro dizer – e tudo passa a ser dito pelos seus olhos apenas. O diretor do show (que não pode parar) fala sonhadoramente sobre os impulsos eróticos da vida do cabaré. Para o diretor do show, muitas mulheres são putas por tesão. Estamos no Casablanca. O Grego paga cem cruzados por dia a cada uma das moças que ficam no cabaré, e 180 para as que fazem shows. Pudera! É muito pouco dinheiro, penso. O diretor do show fala (estamos nos bastidores) de uma moça lindíssima de Campinas. Escolheu a vida da noite por tesão...



Um tira explica para o repórter e para o fotógrafo Araken que as grandes ventosas que saem da central de tráfico de cocaína e maconha de Santos, na Chácara das Paineiras, lançam uma imensa nuvem de drogas sobre a cabeça das mulheres da Boca. Quase todas cheiram e fumam, enquanto dançam e fodem. A Boca é hoje um imenso organismo drogado. Quando uma moça negra ri idiotamente para nós, e é escorraçada por uma das putas, o tira me explica que essa moça fuma maconha o dia inteiro, e ficou assim, perdida nos vapores do fumo, perdeu o juízo de vez.



VII.



O céu chuvoso da Boca foi substituído no cenário da história por cores azuis e amarelas de um dia sonâmbulo. Todas as horas da Boca têm as tinturas do sonho. E do medo. Não há um momento em que a tua caminhada não se sinta ameaçada por um tiro, por uma faca. Um policial acompanhava os caçadores de histórias (o repórter e o fotógrafo) – e estávamos sentados no meio da confusão estudada do Love Story (onde todas as bebedeiras da noite chegam ao organismo máximo) quando chegou Elizabete e nos contou peripécias emocionantes. Era quase uma canção ou uma tragédia de bolero. Real como todos os boleros, e era mais ou menos assim, sobre o Grego...o grego que foi seu marido...o Grego...Ela o conheceu ali, no Love Story, faz anos “e fui dormir cm ele no hotel Ping-Pong...ping-pong – ping-pong...Ele era um terceiro maquinista da Marinha Mercante...E eu dei para ele tudo a que tinha direito...Ele era gostoso...Aquele que põe no cu e não dói...Baixinho, gostoso e fraquinho era ele, o meu grego...Ah, isso é vida de puta da zona mas vida de puta é muita coisa mais! Manda muita mulher casada para cá, para ver. Manda elas fazerem o que nós fazemos! Puta é, muitas vezes, mais direita do que certas mulheres casadas...Mas na segunda viagem, meu grego me levou embora. Fui de avião, no voo 144 da Varig, cartão 120, eu e meu filho de dois anos que agora tem seis). E fui para Ateneus, e para Pireus”...



VIII.



Reflexos inverossímeis do sol davam novos brilhos à narrativa de de Elizabete, que agora se entregava às pulsões de sua aventura, com abandono e tristeza. Era como se todo os apogeus e quedas de sua existência estivessem contidos naquela história, assim como nas histórias de criança, nas lendas do Oriente, todos os gigantes coubessem nas menores lâmpadas ou garrafadas mágicas. Na Grécia, estava até a magia de uma grande banheira na casa do marido, em que podia quase nadar. Mas havia um porém. O marido morava com a mãe, e a mãe mandava em seu marujo mercante. A velha não gostava nem que ela tomasse muito banho, gastasse água. Vida de puta é assim, quando pensa que é feliz, tem disso. A Grécia era uma cidade muito linda – como sempre conta nas rodas que se fazem no Love Story – mas, pobre dela, a velha até quis fazer dela faxineira em escritórios da vizinhança. Que ela não se chamasse Elizabete da Boca de Santos. Pegou uma faca e falou que ia matar a mãe dele. Veio embora para o Brasil, e ele chorava no aeroporto que nem um velho. E ele dizia que agora era um homem morto. Quatro anos no Brasil, e ainda lembra do marujo Papapostovi. Não vai deixar de amar Papapostovi, nunca. Mas tem uma vingança armada: vingança, novo amor, quem sabe?...Vai voltar para a Grécia, com o marinheiro Costa, claro que é grego. Só ama gregos... “Brasileiro só tirou meu cabaço e me contou mentiras – e quem me deu valor foi um simples marinheiro grego. Brasileiro não me come. Brasileiro não sabe trepar”.



IX.



O mar vai levando a doçura possível da manhãzinha para os lados da Boca, e os navios que eram sombras são agora grandes estruturas que recriam os espaços e nossos olhares. Impossível não ficar olhando para os navios enquanto Elizabete, de cara tão sofrida, fala. Ela nos leva em sua conversa para o Golfo...Foi criada no Golfo quando era o Golfo... “Porque tive um pai filho da puta. Por causa dele minha mãe vive há 32 anos sozinha e batalhando sem parar. Só não estudei porque fui doidinha. Eu cuidava de uma cachorra da velha Ivone, uma cafetina. Fui entrando na vida de puta que não é uma vida feliz. Tem muita puta que passa fome e trepa por um prato de comida. Tem muita puta que só come sanduíche por bondade dos garçons. Eu passei fome e comi tantas vezes só café e pão por bondade dos donos do Galo de Ouro, por isso respeito seu Alberto, o Toninho...Fazer sexo por um prato de comida. Deus!”.



A cara de Elizabete ficou com uma marca de raiva. “A vida ensina a apanhar e a bater, e viver numa boa é isso. As mulheres agora têm medo de mim. Hoje, eu sei bater e sei cortar. Já cortei dois gregos. Só não corto mulher. Em mulher eu bato de cinta mas não corto. Mas americano eu corto porque na América eles pra comer uma buceta pagam duzentos dólares e aqui querem dar duzentos cruzeiros, se pede 500 eles reclamam...mas eu só saio com grego, só gosto de grego, só dou para grego...”.



X.



Deixamos Elizabete e saímos pela manhã da Boca entre cenas curiosas como uma moça maltrapilha mostrando os peitos para um mendigo bêbado com pose de rei, uns tipos drogados, uma radiopatrulha sonolenta, o sol pondo a pique o mistério das sombras mas a sensação de medo continuando. Porque a Boca é sempre assim. E quando saímos da parte mais nobre para os prédios mais sórdidos, vamos vendo as catacumbas em que vivem as mulheres que já levaram uma boa rasteira, e caíram nos porões onde a trepada vale alguns cruzados que nem pagam o café...Num desses porões vivia, tempinho faz, um moço pálido, criminoso, escorraçado do xilindró pela mesma razão que o correram da Boca – porque AIDS já pode até tê-lo levado ao cemitério próximo, onde as putas são enterradas ao lado de gigolôs e marafonas. Assim é essa comédia humana.



XI.



E na nova noite que se fez fomos então ao sr. Osvaldo Assef, numa das principais ruas de Santos, ao lado do clube Sírio-Libanês escutar os últimos movimentos dessa sinfonia. Vamos chama-lo de “cantos do passado”. Depois de todas aquelas viagens pela Boca, e inexcedível a nova situação: na confortável casa do sr. Assef, antigo vereador, homem honrado que insinuou parte de sua existência na vida da Boca, onde foi amigo de um dos mitos da Boca eterna, o Negro Orlando.



Num conforto oriental, ouvi:



“Negro Orlando...Ah, ele passava todo Natal comigo. Tive passagens memoráveis com ele. Você sabe que até o fim da vida ele andava armado, o negro...O meu irmão negro? Eu era rapaizinho, isso faz mais de uns trinta anos, quando cruzei com o Negro Orlando, na Boca. O negro tinha uma pata memorável (diz o sr. Assef ainda hoje com um tórax que lembra os reclames do falecido Charles Atlas)...A mão do negro era assim. O negro veio e me disse: Não pode ter dois valentes na cidade! Era a última coisa que eu queria ouvir. Eu sabia bater, brigava bem, mas logo disse ao negro: “O valente é você... É... só tem um, é você”. O negro Orlando riu inteiro. “Então...então vai ser meu compadre”. Eu era campeão de judô, campeão de levantamento de peso, recordista brasileiro de peso, mas como competir com ele? Isso foi na Boca antiga, de muitos valentes, mas tão humana. As brigas eram memoráveis: havia duelos em que os homens se amarravam com as camisas e lutavam na faca. Fiquei pensando a vida inteira naquele encontro... “Você é o Negro Orlando, eu sou um garoto...” Eu tinha vinte e um anos... A cara alegre que o negro fez... Lutas, desafios...Como quando o Caroço, um cabeça-chata, pequenininho, desafiou Negro Orlando... O que ele deu de pancada no Caroço... “Chega, você vai matar o cara”, eu gritei para Orlando. Ele respondeu: “E ele vai morrer”.



Naquele tempo, os tipos mais perigosos iam para a prisão da Ilha Anchieta. Quando aconteceu o levante da Ilha Anchieta, Negro Orlando, de repente, se revoltou com os companheiros que queriam fazer reféns na escola... “Ele pegou a metralhadora e guarneceu a escola, a professora da escola...Ele foi indultado, voltou para cá, foi aquela festa...A amante dele era a Irene...Ele viu a Irene, e deu um tapa nela...Sua puta! Sua sem-vergonha, você me traiu sua puta! Foi preso de novo, no ato...” E o fio do novelo com as histórias do Negro vai rolando: cenas de pancadarias, tiros, valentões que perdiam a valentia diante das patas enormes (as mãos, as mãos!) do negro.



Um americano enorme de muito mais de dois metros entra na Boca e alguém diz ao Negro que aquele americano é da Carolina do Sul e que lá eles não gostam de negros. Orlando, furioso, investe sobre o gigante, e o derruba. O homem era do tamanho de um cavalo mas caiu, enquanto o negro gritava: “Carolina do Sul é a puta que o pariu”.



Outra vez, dá uma confusão na Câmara de Vereadores, e a galeria xinga Assef, o ameaçava. O Negro Orlando aparece com uma arma na mão e grita: “O que é que esses putos querem? Se tocarem em você, mando bala em todo mundo”. (E Assef, contando essas histórias, fica cada vez mais parecido com John Wayne, em certos filmes, bem John Wayne. Ele e o Negro Orlando, em lutas memoráveis, são heróis de uma Boca que lembra o western. “Como é que ele sempre aparecia?”, pergunta Assef, que tem a ouvi-lo a esposa, uma filha... “Não tinha valente para ele”).



Negro Orlando vivia do jogo. Pudera. Com a mão enorme que tinha, o que não podia esconder na mão. Um dia, Assef chamou seu irmão negro e lhe pediu que levasse seu menino, seu filho, até a Boca, para a iniciação na vida masculina. Quem é que ia tocar no garoto ao lado do Negro? O Negro foi ficando velho. Assef sempre ao seu lado. Velho, doente, um câncer...E o Negro ia sumindo. O Negro que tinha sido o maior dançarino da Boca, e que se foi em novembro de 79. Assef baixa a cabeça. Não quis ver o último suspiro do irmão, que nos tempos derradeiros só queria saber de se matar. Pedia, implorava um revólver, veneno, qualquer coisa.



“Mas que vantagem você vai levar, Orlando? Calma! Você vai morrer.”



Negro Orlando. O bailarino – o maior da Boca. Como é que daria para esquecer certas sinuosidades? Ele dava um passo, erguia a dama, levantava o pé e descia a dama. Sempre dançando erecto. Que elegância! Quem brilharia mais nas noitadas do Sambadança, ali na General Câmara com  Brás Cubas? Quem era mais elegante nas noitadas do Imperador? Era pra lá que iam as mulheres quando fechavam os bordéis da João Pessoa, da General Câmara, da Brás Cubas, da Senador Feijó...



Todo cabaré palpitava no grande momento da chegada das putas...E o cortejo das francesas era liderado por Marcela, e a passagem das argentinas tinha a frente a doce Zezé.



As francesas entravam na casa ao som do can-can.



As argentinas...E era um tango...Um tangaço.



Deus! Tudo isso é verdade.



Publicado originalmente na revista Club dos Homens número quatro do ano IV (janeiro de 1988)

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