A
editora Grafipar foi responsável por trazer a Penthouse para o Brasil. O genial Bob Guccione acabou fechando
negócio com os paranaenses. A revista pretendia bater Playboy, Status e Ele
Ela. Mas a edição brasileira durou apenas dez edições. Sobraram as histórias a
respeito dessa mitológica publicação. Na primeira edição, o editor Faruk
El-Khatib contratou o escritor Marcos Rey (1925-1999) para escrever um conto
exclusivo para a publicação. A história (“A bonita morte do senhor Marçal”)
nunca foi incluída em nenhum dos livros de contos ou antologias do autor. Ou
seja: o conto ficou perdido no espaço e tempo durante todos esses anos. VSP
recupera a história com exclusividade.
Escândalo em família: o
patriarca, riquíssimo, 74 anos, está de amores com uma garota que poderia ser
sua filha. Caduquice? Loucura? Uma “fria” para os negócios? Descubra (e
delicie-se) você mesmo!
A BONITA MORTE DO SENHOR
MARÇAL
Conto de Marcos Rey
O telefone do
primogênito, Silas Marçal, funcionou a tarde toda, desta vez não para a
organização de mais uma festa de arromba promovida pela elegantérrima Isaltina,
sua mulher. Seria uma reunião de família, privadíssima, concentrada no living,
portas e janelas fechadas, mordomo e criados com algodão nos ouvidos e o
telefone desligado. Gente de fora só o Amarante, sócio em vinte por cento nos
negócios do velho. Diná, irmã de Silas e Lucas, foi contra a convocação. Aquilo
não lhe parecia assunto para discutirem na presença de estranhos.
- Não vamos envolver o
Amarante nisso – suplicou. – A cor vermelha não fica bem no meu rosto.
Seus irmãos hesitaram,
avaliando os receios de Diná, sempre tão ponderada nas questões morais da
família, porém foi o seu próprio marido, o Mota, ex-Motinha das rodas de boêmia
quando solteiro, quem inesperadamente defendeu a convocação do Amarante com o
timbre de voz de coisas irrefutáveis.
- Não há mais tanto
motivo assim de sigilo. A bomba já estourou. Ando por aí e sei bem disso.
A palavra bomba poderia
ser evitada. Mas escândalo seria ainda pior.
- Pensei que tudo fosse
uma descoberta sua – disse Diná com um fio de esperança.
- Não tenho bossa para
detetive amador nem sou de espiar a vida alheia – replicou o Mota como se fosse
o que mais lamentasse o ocorrido. – O que sei ouvi no bar de executivos, na
sauna, na Associação Comercial, e principalmente no clube. Aí até os garçons
comentaram e acham graça.
- No Armorial? –
espantou-se Diná, abaixando o tom de voz com receio de que a criadagem ouvisse.
– Que falta de respeito! Ele foi o presidente durante tantos anos. Seu retrato
está no salão de honra! Como foi que o caso chegou até lá?
Silas e Lucas, presentes
na ocasião na casa da irmã, encontro que antecedeu a reunião do Grande Conselho
da Família, olharam fixamente para o cunhado, tensos e curiosos.
- Nem queria dizer-
murmurou o Mota contraindo o rosto dolorosamente como se alguém lhe espremesse
uma espinha. – Esperava que esse desatino tivesse um fim breve. Na sauna a
gente não vê o rosto das pessoas que fofocam, por causa da fumaça, e acaba
esquecendo. No bar, fala-se muito por causa dos drinques e por falta de
assunto. O que se diz entra por um ouvido e sai por outro. Mas, no clube! Ele
não deveria ter feito isso.
- Desembuche, Mota –
exigiu o primogênito.
O cunhado ganhou mais
alguns sofridos segundos, em que faturou importância na família. Como não
levara no casamento nenhuma fortuna a somar com a dos Marçal, nem título
universitário ou mesmo um bom emprego, nunca lhe davam crédito, a começar pelo
velho, que fizera relações-públicas da empresa sem nenhuma voz na diretoria. Se
não fosse o Amarante, de cuja mulher se tornara amigo, nem sala com secretária
teria.
- Seu Evandro esteve
sábado com ela no clube – revelou. – Não é boato porque eu os vi. Jogaram tênis
com todo o pessoal assistindo. Até parecia uma partida de final de campeonato.
Diná, que não bebia,
serviu-se uma dose insensata de uísque.
- Ele não joga tênis
desde que teve o enfarto!
- Não são seus problemas
de saúde que interessam agora – sentenciou o primogênito. – Alguns sócios com
seus 74 anos e enfartados, praticam Cooper, nadam, fazem ginástica, mas não se
expõem num lugar frequentado pelas suas famílias com uma zabaneira do lado.
- Zabaneira! Que palavra
feia!- exclamou Diná, enojada, como se reprovasse Silas por proferi-la.
- Posso substituir por
prostituta, se preferir – disse o irmão.
Lucas, sentindo o
ambiente por demais atomizado e talvez por ser o caçula, mas afastado das
responsabilidades familiares, tratou de usar alguns panos quentes.
- Nada de exageros –
pediu em tom sereno. – E você Mota, não ponha mais lenha nisso. A turma pode
ter pensado que a moça era alguma parenta nossa ou a filha de algum amigo do
velho. A malícia correu por sua conta.
- Mas o Mota disse que
todos se aglomeraram para assistir à partida – lembrou Silas. – Fariam isso se
não estivessem escandalizados?
Ainda pondo em ação seu
sortimento de panos quentes, o caçula tentou encontrar resposta.
- Um homem da idade do
velho, jogando tênis, sempre chama a atenção. Acho a curiosidade natural.
O Mota, como quem não
tivesse nada com o caso, imparcial como um computador, abriu a boca apenas para
transmitir informações registradas sábado no clube. Se se excedesse, bastaria
apertarem um botão ou desligar a tomada e pararia.
- Entraram juntinhos, ele
de bermuda, ele de short. Seu Evandro com o braço em torno da cintura da moça.
A cada passo, beijavam-se como um casal de namorados. Enquanto a quadra não
vagava, ficaram se esfregando, encostados na cerca. Da parte dela,
exibicionismo puro. Parecia querer comprometê-lo. Seu Evandro não percebia essa
intenção. Estava excitado e não se escondia. Às onze horas, num sábado de sol
como o que tivemos, o clube fica lotado. Quem passava pela cerca, parava.
Diógenes, o diretor de sede, viu a cena e fez cara feia. Teria tomado uma
atitude se ela não envolvesse um ex-presidente. Ouvi comentários. O Átila, das
louças, disse num grupo de sócios: “O que houve com o velho Marçal? Pirou?”
Foi, cá entre nós, a impressão que tive. Caduquice. Loucura. Miolo mole.
Qualquer coisa assim.
Lucas, diante do que
ouviu, deixou seus panos esfriarem. Diná olhava para o copo, desejando que ele
contivesse veneno. O primogênito deu uma longa e lenta volta pela sala e parou
perto do Mota com uma ordem já elaborada.
- Descubra, Mota, quem é
essa pessoa. É o mais depressa possível. Depois faremos uma reunião em casa.
Devemos tomar urgentemente uma decisão.
Mota não precisou de mais
de três dias para ultimar as investigações. Pela primeira vez após tantos anos
de casamento e de atividade na empresa encarregavam-no de um trabalho
importante. Tudo concluído, como era sábado e não se encontrariam na empresa,
ligou para Silas mas sem adiantar os resultados. A expectativa realçaria o seu
papel. Houve, então, uma torrente de telefonemas entre Silas e o irmão e entre
Diná e as cunhadas. A reunião foi enfim
marcada para a mesma noite. Amarante, sócio e mais antigo amigo de Marçal,
seria convidado. Felizmente a mulher dele, muito doente, não compareceria. Uma
pessoa a menos para ouvir as confidências vexaminosas.
Isaltina ordenou aos
criados que deixassem os salgadinhos sobre a mesa e que não faltasse gelo: não
queria que ouvissem o que fosse discutido e resolvido. Lucas e Diná não trariam
os filhos, para que o mau exemplo do avô não os prejudicasse mais tarde. No
entanto, Carlito, filho único de Silas e Isa, com o braço na tipoia, devido a
mais uma queda de sua moto, não apenas ficaria em casa mas, ciente do que se
passava, graças à sensibilidade dos seus ouvidos, insistia em participar do
Conselho. Os não que ouviu apenas serviram para incrementar seu interesse. À
última hora, foi admitido.
Os primeiros a chegar
foram Lucas e Iara.
- Quem é a gloriosa? -
quis saber o caçula.
- O Mota não disse.
- Vi o papai na empresa –
disse Lucas. – Se mamãe estivesse viva ficaria ainda mais apaixonada. O velho
está enxuto, empinadinho. Desde o enfarto não aparenta gozar de tão boa saúde.
Até a voz está mais firme, encorpada. Você notou?
- Ele não parece mal-
admitiu o primogênito.
Levando o irmão, pelo
braço, a um canto do grande living da mansão de Silas, Lucas falou de suas
últimas leituras.
- Estive lendo um artigo
de um médico alemão. Ele diz ter observado que relações sexuais são o melhor
tratamento para certas moléstias do coração. É o que se recomenda,
especialmente para os idosos, antes ou depois dos enfartos. Pode ser que papai,
mesmo sem ter lido isso, tenha acertado na mosca. Aos 74 está melhor do que aos
64. Daí meu receio, mano. Pode ser que tirando o seu pirulito o estejamos
condenando à morte. Pensou nisso?
O primogênito sacudiu a
cabeça irritado:
- Lucas, ninguém está
querendo impedir que o velho dê suas trepadas! Ele é maior de idade, viúvo e
tem dinheiro para gastar. O que não podemos permitir é que exponha ao ridículo
nossa família e que prejudique moralmente a empresa. Uma empresa que, você bem
sabe, está balançando. Jamais precisamos tanto de credibilidade!
- Escute aqui, mano, seus
temores exagerados não seriam um resto do protestantismo da mamãe? Foi você
quem teve que segurar mais tempo a barra da Escola Dominical. Não é moralismo
demais?
Se Lucas esperava uma
confissão, ouviu, sim, mas douto naipe:
- Pondo a questão moral
de lado, tenho temores, sim. De que, vendo o velho nessa farra, pensem que
estamos nadando em dinheiro, o que não é bom com tantos esquerdistas circulando
por aí. Ou que se imagine o contrário, que é a decadência moral que sempre
caminha paralela à decadência econômica. Não quero dar a impressão que os
Marçal vivem os últimos dias de Pompéia. Entendeu?
- Entendi, senhor vice.
Chegou o Amarante, que
vira os três irmãos nascer, já tendo festejado com Evandro bodas de outo duma
verdadeira amizade. Sócio fundador do Armorial, amigos dos amigos de Marçal,
desconfiava dos motivos da reunião e mostrava-se preocupado. E não queria
meter-se até o pescoço naquilo. Refugiou-se na companhia das mulheres, atrás de
um forte resfriado que trouxera de casa.
Carlito e seu suéter
irlandês, Diamond Jim, vieram da ala de serviço: o de expressões mais
inteligentes acomodou-se sobre o tapete enquanto seu companheiro, com as pernas
ao léu, abandonou-se num pufe, à espera do que desse e viesse. Para ele, tudo
seria lucro.
Mota fez-se esperar. Ele,
que ficava pelos corredores da empresa quando a diretoria se reunia, tentando
aliviar com café e água mineral seus complexos e ressentimentos, tinha agora
parcialmente nas mãos o próprio destino do presidente. O resultado da
investigação traria no bojo a resolução do Grande Conselho. E, prestando um
favor secretíssimo ao clã dos Marçal, somaria pontos no conceito familiar e
quem sabe estaria pondo os pés na chefia do departamento de vendas, sua grande
ambição.
Desde que o mordomo abriu
a porta da casa, Mota assumiu uma postura desenhada para causar preocupação.
Nem Diná sabia o que a lupa do marido focalizara aqueles três dias. Melhor
assim, dividiria a dor daquele impacto com os irmãos e cunhadas.
Com exceção de Carlito,
que continuou no pufe, todos aproximaram-se do casal ao entrar no living. Mota
abraçou os cunhados, beijou as cunhadas, o sobrinho, afagou o focinho do setter
e agradeceu a Amarante sua moderadora presença. Serviu-se um uísque.
- E então? - perguntou
Silas.
- Fiz um bom serviço de
campo- disse Mota. – O negócio está esclarecido. – E depois dum gole: - A pessoa
chama-se Teca. – Outro para lavar a boca.
- Jovem? - quis saber
Isa.
- Vinte e oito anos, mas
passa por menos.
- O que ela faz na vida?
– perguntou o primogênito apenas para confirmar vagas informações.
Mota afastou-se da mesa
dos comestíveis, ganhou o centro do living, olhou a todos, ao seu redor, dando
um tempo teatralmente correto para a próxima fala, leu a rubrica (com emoção
contida) e disse:
- Aquilo que
suspeitávamos estava certo. Teca é uma prostituta.
A atenção geral
desviou-se para Carlito, que soltara uma gargalhada. Mota, que o detestava,
odiou-o. Era inadmissível que a poluição sonora daquele imbecil prejudicasse
sua performance.
- Como descobriu isso? –
perguntou o caçula com cara de São Tomé.
Mota deu um giro pelo
palco e voltou ao mesmo lugar, porque mais bem iluminado.
- Espremi um tal Dinovan,
contato de publicidade, quem levou seu Marçal no Shampoo, um bar de executivos,
certamente com a intenção de conseguir a conta da empresa. Ele nunca tinha ido
num desses lugares depois do trabalho. Voltava logo para o apartamento ou ia à
sauna. Devia sentir-se um tanto deprimido sozinho, num andar inteiro, só com os
criados.
- É verdade –
penitenciou-se Diná. – Apenas vamos visita-lo no Natal e no Dia dos Pais.
- Por isso foi uma presa
fácil para essa tal de Teca, também conhecida por Tetê, uma das mariposas que
transitam no Shampoo e noutros bares de executivos. Passaram a se encontrar
todas as tardes. A princípio seu Evandro teria tomado as cautelas. Paixão
restrita à mesa de bar. Mas, para acompanha-la, desinibido por alguns drinques,
teve de circular com ele em bares de hotéis, boates, teatros e muitos lugares.
Lucas persistia na ideia
de minimizar o drama.
- Ele não vai aguentar
essa maratona e abandona a raia.
Com a mão espalmada, como
um guarda de trânsito na avenida, Mota advertiu que tinha mais a dizer.
- Espremi também Vitória,
a secretária. Ela resistiu mas acabou contando que ele deu uma joia para a
Teca.
- Joia valiosa ?-
perguntou Iara.
- A que Richard Burton
deu a Elizabeth Taylor era mais cara.
O silêncio que se fez foi
apenas pano de fundo para mais uma importuna gargalhada de Carlito.
- Para mim nunca deu joia
alguma – lembrou sua filha.
Novamente a mão espalmada
do guarda.
- Hélcio, o gerente da
Shampoo me contou outra. No Dia dos Namorados deu um carrão para ela. Um
conversível verducho de pôr água na boca.
- Está torrando o
dinheiro da empresa – lamentou o primogênito, levando as mãos á cabeça.
Esperou-se uma gargalhada
de Carlito que inexplicavelmente não veio, mas viria no rabo da terceira
revelação.
- Ontem espremi o
Pelegrino, dos imóveis – disse Mota. – Tinha ouvido um zunzum no Shampoo e
queria confirmação. Como o negócio já estava feito, ele abriu o bico. Seu Evandro
comprou dele um apartamento para a moça.
O próprio Lucas, tão
inclinado a contemporizar, deu um tabefe na cabeça de Carlito, ao deflagrar a
gargalhada, e avançando para o cunhado, perguntou:
- Kitinete?
A pausa cruel, planejada para doer:
- Cobertura.
O Amarante, que até ali
não dissera nada, isolado do mundo pelo resfriado, pensando na mulher doente,
retraído por aquela conversa íntima de família, pôs-se a repetir de costas para
todos e diante do grande espelho do living:
- O homem enlouqueceu!
Está louco! Está louco! Está louco!
A bomba referida pelo
Mota reestourava agora dentro do living. Qualquer diretor teatral vacilaria em
escolher entre tantas a cara de pasmo mais perfeita. Apenas Carlito,
representando sua geração, continuava a rir, embora em volume mais baixo, como
um rádio cuja pilha se gastasse. E foi ele quem, sentado em seu pufe, voltado
para o arco da entrada do living, viu primeiro. De sua imbecilidade vibrante
restou apenas um gargarejo. Um a um olharam então todos para o mesmo ponto como
nos filmes de terror quando o conde Drácula, com seu terrível problema
dentário, entra em cena e só o selecionador de imagens registra.
- Papai! – exclamou Diná.
O septuagenário, que
raramente visitava os filhos, e nunca sem avisar, estava lá com todo o seu
aspecto patriarcal. Só lhe faltava um cavalo para comparar-se em dignidade à
postura dos grandes homens estatuados em praça pública.
- Vim para conversar com
o Silas sobre um determinado assunto, mas foi bom ter encontrado todos vocês
aqui. Você, inclusive, Amarante. Mas o que está acontecendo? Alguma festa?
Cabia ao dono da casa
falar.
- Não, pai, apenas uma
pequena reunião.
- Estou atrapalhando?
Diná, encorajando-se,
aproximou-se de Evandro.
- Diga o que tem a dizer,
papai. Alguma coisa importante?
O velho Marçal produziu
aquele sorriso inconfundível que antecede as boas notícias. Poucas vezes a
família vira seu rosto iluminar-se com tanto brilho e felicidade.
- Meus filhos, minhas
noras, meu neto, meu sócio e amigo Amarante...eu vou me casar.
Mota quase adiantou-se
para dar parabéns ao sogro, ele que se dedicava a um tipo de esporte que
consiste em pôr um pé em cada canoa e saia remando. Amarante olhou para o chão.
Isaltina e Iara sentaram-se. Lucas pôs mais uísque no copo. Silas era uma
pedra. Carlito ameaçou tornar a rir. Apenas Diná teve fibra de abrir a boca.
- Está doido, papai? Nós
todos aqui já sabemos de que mulher se trata. Aliás, é para decidir o que fazer
em relação a isso que estamos reunidos aqui. Nunca passamos por tanta vergonha!
Oh, papai, se quer casar por que não procura uma mulher decente e não
uma...Como é que se diz, Silas?
- Zabaneira.
- E não uma zabaneira?
Silas, instigado pela
irmã, resolveu adotar a técnica do bombardeio. Arrasar as defesas do velho. Não
permitir que ele contra-atacasse. Jogar todos os petardos possíveis até que
hasteasse a bandeira branca.
- Já fomos informados de
onde conheceu essa pessoa. Dum boteco chamado Shampoo. Sabemos da joia
caríssima que lhe deu. Do automóvel de luxo. Do apartamento de cobertura...
O ancião esboçou a
primeira reação:
- O apartamento não foi
para ela.
Mota moveu-se: teriam lhe
passado uma informação furada?
- Para quem foi então? –
perguntou Lucas, ansioso. Seria um presente reservado a seu caçula, o que
morava pior dos três filhos? Nesse caso talvez até topasse a madrasta.
Marçal, como se esperasse
tranquilizar a todos, explicou:
- O apartamento foi para
a mãe dela.
O primogênito avançou
para uma coluna do living como se pretendesse, tresloucado, esmagar a cabeça.
As noras começaram a chorar. Mota escondeu-se atrás de Amarante, enquanto Lucas
e Diná caminharam na direção do pai, falando alto e ao mesmo tempo. Esse
assédio foi logo engrossado pelo Silas e cunhadas, estas ainda em lágrimas,
enquanto o Mota empurrava com as duas mãos o Amarante para o campo de batalha.
No pufe, Carlito morria de rir vendo o cerco do qual o setter também já
participava, latindo e friccionando as patas no tapete.
- Não queremos essa
senhora como nossa madrasta! – bradava Diná.
- Sua aventura está
fazendo a empresa tremer nas bases ! – argumentava o primogênito.
- O senhor dá uma
cobertura para a mãe dessa vagabunda e eu e Iara morando num apartamentozinho
de três peças! – lamentava Lucas.
- Marçal, ponha a cabeça
no lugar ! – implorava Amarante. – Você não
está mais na idade de cometer essas loucuras! Há tantas massagistas por aí.
Faça as coisas entre quatro paredes. Não precisa casar.
Mota, embaraçado, tentava
silenciar o setter. Se houvesse o casamento, secretamente mandaria flores aos
noivos. Sua mulher, no entanto, a mais ativa do grupo, depois de muito gritar, dramaticamente
ajoelhou-se aos pés do pai.
- Não case com essa
vagabunda, papai. Será uma desgraça para toda a família.
O patriarca, que atacado
por todos os lados pouca oportunidade tivera de se defender, conseguiu dizer:
- Quando vocês conhecerem
Teca mudarão de ideia a respeito.
- Aqui essa mulher não
entra – opôs-se Isaltina.
- Em minha casa também –
disse Iara.
Ainda ajoelhada, Diná
proferiu:
- Prefiro a morte a ter
de recebe-la.
Evandro Marçal realmente
não tivera muita chance de falar desde que anunciara seu casamento, pois tinha
outra importante notícia a dar. Pediu silêncio. Na expectativa de que decidira
voltar atrás, o silêncio foi concedido. Até Diamond Jim parou de latir.
- Teca está aqui.
- Aqui, onde?- perguntou
a de joelhos.
- No hall.
Mota olhou num relógio-calendário
para marcar a data. Aquela teria mesmo de ficar na história da família como uma
noite inesquecível. Se a partir dali nevasse, o que jamais acontecera em São
Paulo, ninguém mais estranharia. Um deles, após o impacto da última revelação,
perguntou-se: Teriam acabado as surpresas?
Não. Não porque Teca ou
Tetê, como preferirem, entrava no living sem ser chamada.
Uma das raras
impossibilidades literárias é descrever uma mulher bonita. Teca era morena
alta, de lábios carnudos e seios montanhosos. Vestia-se de preto, bolsa e
sapatos da mesma cor. O único ponto luminoso, contrastante em seu todo, era a
joia do Marçal, brilhando no peito. Mota, vendo o charme que ela trouxera para
a apresentação, reconhecia que o Hélcio, gerente do Shampoo, sabia escolher os
elementos de sua brigada. Lamentou não tê-la conhecido no bar antes do sogro.
Perdera tempo em comprar fumaça, nas saunas, no fim das tardes. Carlito estava
no zoológico, fascinado diante de uma jaula de uma pantera. Mas foi sobre o
Amarante que Teca exerceu mais fortemente seu poder hipnótico. Coisa feia, o
velho babou.
- Ouvi o escarcéu todo –
disse a falada zabaneira. – Não quero arreglo com essa gentinha, não. O
casamento pra mim foi pro espaço. Eu, hein?
- Venha aqui, Teca. Diná,
levante-se do chão.
- Por mim ela pode ficar
ajoelhada – disse a intrusa. – Vamos embora, benzinho.
O velho Marçal, entre duas
forças opostas, ora aproximava-se da amásia, ora voltava junto de seu clã, como
bola de pingue-pongue.
- Vamos conversar –
insistia. – Vamos conversar.
Diamond Jim acercou-se de
Teca, latindo.
- Esse pulguento deve
estar hidrófobo! – gritou a moça do Hélcio, recuando, medrosa, a fugir do
setter, saracoteando.
- Vamos dar o pira, fofo,
antes que ele me morda.
- Benzinho, a gente veio
para se entender. Por favor, prendam esse cachorro!
- Ele vai me abocanhar! –
bradava Teca, pulando dum lado a outro. Um vaso espatifou-se no chão. – A culpa
foi dele, está tirando fina de minhas pernas. Ele foi vacinado?
- Calma, ele não vai
morder. Carlito, leve esse bicho! – pedia o avô. – Teca, meu amor, quero lhe
apresentar mais filhos. Diná, levante!
Já a boa distância do
cão, e com tempo para respirar, a moça encerrou o ato:
- Pra mim o casamento
pifou. Mas pra que a gente precisa dele? Não ligo a mínima. Miau pros meus
filhos. Bom mesmo vai ser a viagem. Vamos botar o pé na estrada, fofo.
Marçal olhou para o grupo
familiar, chegou a abrir a boca, mas engoliu as palavras e a passos largos, com
uma pressa elétrica, saiu do living, atrás de Teca, como se perseguisse a
própria felicidade.
Seis meses depois, no
Shampoo. Era aquele entra-e-sai de garotas. A brigada do Hélcio estava
ativíssima naquela sexta-feira. O faturamento na horizontal prometia, com
tantos executivos ás mesas e no american bar, atentos como tarados ao desfile
colorido das saias. Depois de uma semana de trabalho, o papo solto, o drinque,
o sexo. Merecida descontração para os que conduzem os negócios da megalópole.
Numa mesa de canto, com
garrafa própria e salgadinhos, Teca ou Tetê estava de volta. A brigadeira
esbanjava beleza, somada agora a um international touch. Contava a um freguês
seus últimos meses de Marçal e de Europa.
- Ás vezes a gente
almoçava num país e jantava noutro. Uma loucura! Uma noite dormimos juntos numa
banheira cheia de espuma. Seu Evandro estava com a corda toda. O velho era um
barato! De manhã já estourava uma champanhota e embarcava numa legal. Se eu
estivesse quebrada, me puxava pra fora e íamos badalar nos botecos. Ou então
mergulhava de ponta-cabeça até não dar mais pedal.
- É, o coração não podia
aguentar.
- Mas ele morreu feliz,
lá em Nice, numa daquelas barracas de praia, com a cabeça apoiada no meu peito,
sorrindo. Uma morte muito bonita – concluiu Teca, terna e saudosa.
Sobre a mesa do Shampoo,
depois de um percurso lento e planejado, a mão carente de Júlio Amarante, já
viúvo, vencendo inibições e preconceitos, segurou a de Teca, moça generosa que,
além dos prazeres da vida, garantia aos seus fregueses – como oferta grátis –
também uma bonita morte.
2 comentários:
Ótimo! Puta conto do Marcos Rey! A literatura infanto-juvenil dele era muito boa tb!
Caro Matheus, sem palavras!! Tenho toda obra adulta do mestre Marcos, leio tudo que encontro sobre ele e nunca soube desse conto, que é excelente, com algumas comparações e descrições sem par! Há um errinho aqui e ali de digitação, mas nada importante. Parabéns pela empreitada.
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