Capítulo 1: Do nascimento á arte
Por Willian Corrêa e Ricardo Taira
A
jabuticabeira ainda está lá, frondosa e generosa, permitindo duas colheitas por
ano dos frutos graúdos e doces. Se exibe majestosamente no quintal da modesta
casinha de número 693 da rua Marechal Deodoro, antiga rua da Estação, região
central de São Joaquim da Barra, ao norte do estado de São Paulo. Foi nesse
lugar que o menino branquelo de olhos azuis chegou berrando. Nasceu numa tarde
quente de outubro e encantou parteira e senhoras da vizinhança, que ajudavam a
pôr filhos no mundo, na cidade onde falar em dar à luz em hospital era quase
uma heresia diante de tão competentes mulheres, que perdiam a conta de quantas
crianças tiraram do ente materno e colocaram para seguir o destino traçado por
Deus. Quando as parteiras entravam em ação, a presença masculina era
dispensada. Os homens, geralmente, ficavam na sala de casa à espera do choro
desesperado de crianças recém-nascidas, indicativo de que tudo caminhava “nos
conformes”, como se costumava dizer de uma tarefa bem-sucedida. Eles assistiam
à passagem do balde de água quente, do balde de água fria, das toalhas, da
imagem de Nossa Senhora das Dores, da vizinha do lado, da vizinha da frente, da
mãe, da tia que veio de longe, da madrinha de casamento. Uma multidão num
quarto modesto.
A
partir do choro do bebê, os homens se abraçavam, limpavam o suor do rosto, e o
dono da casa começava a passar os copos que receberiam a cachacinha de
qualidade feita no melhor alambique da região. Quando a parteira saía com a
criança embrulhada na manta abençoada na paróquia central, dias antes do
nascimento, os beijos exalavam o cheiro da aguardente que, a partir daquele
momento, iriam embalar as conversas até altas horas. Uma alegria que se repetia
na casa dos Boldrin a cada dois anos.
Quando
o menino de olhos azuis nasceu, a família já era bem grande. Rolando foi o
sétimo filho do mecânico de automóvel Amadeu e a dona e casa Alzira. Depois
dele, ainda viriam outros cinco que completariam a matemática tão sonhada pelo
casal: seis homens e seis mulheres. Uma família, como tantas outras de São
Joaquim da Barra, cidade a 385 quilômetros da capital de São Paulo, quase
divisa com Minas Gerais, e que tinha, na época, como principais fontes de
riqueza o café e a pecuária.
Era
o dia 22 de outubro de 1936. Os olhinhos azuis ainda incomodados com a luz
piscavam passando de colo em colo. Recebia sinais da cruz na teste e beijos um
tanto exagerados, bem típicos da expansividade brasileira, misturada à
dramaticidade brasileira, misturada à dramaticidade dos italianos, que passaram
a habitar em grande número terras no interior paulista e de outros estados nos
dois últimos séculos, formando uma das maiores comunidades de imigrantes em
território brasileiro.
Os
avós paternos, Mario Boldrin e Marieta Zordan, eram italianos. Ele, de Pádua;
ela de Verona. Aqui, fizeram amizade com a família Machado, de ancestrais
portugueses. Foi quando os pais de Rolando Boldrin se conheceram, namoraram e
celebraram o casamento numa festa típica da roça, ao ar livre, com muita
comida, bebida, cantoria e dança.
Era
comum entre as famílias da primeira metade do século passado – principalmente
no interior, onde se precisava de muitos braços para o plantio – aumentarem a
prole rapidamente. Com seu Amadeu não foi diferente, embora ele não se
interessasse pelo campo e procurasse sempre se aperfeiçoar na profissão de
mecânico, mexendo em fordinhos. Ele só respeitava o tempo do chamado resguardo
pós-parto. Seu Amadeu e dona Alzira tiveram os filhos Yolanda, Rolanda, Jaques,
Tim, Aroldo, Leili, Rolando, Cida, Nino, Alzirinha, Leila e Maria.
O
batizado do menino Rolando ainda demoraria. Seu Amadeu, materialista, se dizia
ateu. Dona Alzira, católica fervorosa, queria os filhos seguindo as leis
canônicas. Não deixava o marido em paz quando o assunto era a vivência com a
Igreja. Somente quando Rolando tinha 7 anos de idade, o pai decidiu batizá-lo.
E meses depois também levou o garoto para ser crismado. Os padrinhos, de
batismo e de crisma, eram fazendeiros e suas respectivas esposas. Era tradição
entre as famílias humildes convidar gente abastada para as cerimônias
religiosas. O padrinho de crisma foi Enoque Garcia, um dos fundadores de Guaíra
e também um dos primeiros prefeitos do então vilarejo. A família Garcia segue
hoje na política, com enorme influência no município.
Na
visão de seu Amadeu, ir à escola era uma atividade temporária. Os filhos
precisavam aprender a ler, escrever e fazer contas, conhecimentos, segundo
eles, suficientes para que todos pudessem enfrentar o que viesse pela frente. O
importante era aprender um ofício. Isso no caso dos meninos, já que as filhas
cuidariam de afazeres domésticos e permaneceriam na segurança do lar até o dia
do casamento.
Quando
Rolando Boldrin tinha 2 anos, a família se mudou para Guaíra, município próximo
de Barretos. O aluguel era mais barato e, com a família crescendo e mais bocas
para alimentar, era preciso fazer alguma economia. Foi em Guaíra que ele fez os
primeiros anos do primário, hoje chamado de ensino fundamental.
O
grupo escolar exigia que os alunos cantassem o Hino Nacional reunidos no pátio
e observando o hasteamento da bandeira direita. Mão direita sobre o peito. A
maioria disfarçava. Fingia que cantava por não saber a composição. Só havia um
trecho que todos soltavam a voz: “Ó pátria amada, idolatrada, salve, salve”. Na
sequência, voltavam os murmúrios. Rolando, no entanto, se esforçava para cantar
a maior parte da letra escrita pelo poeta Joaquim Osório Duque Estrada.
A
primeira professora foi dona Madalena, uma mulher enérgica, magra e atenta a
todos os movimentos dos alunos. Os mais faladores, entre eles o menino de olhos
azuis, costumavam ser advertidos com tapas na cabeça e com golpes de régua.
A
rua era o parque de diversões daquela molecada nos anos 1930 e 1940, uma
extensão dos próprios lares, muitos deles de terra batida, como era o caso do
imóvel ocupado pela família Boldrin. Sobre o chão de terra, uma infinidade de
colchões de palha e travesseiros de pena garantia a todos uma boa noite de
sono, juntinhos – uma dádiva para uma família amorosa e solidária.
Em
Guaíra, o pai trabalhava na oficina mecânica de José Maria Marques Bom, também
dono das jardineiras, os ônibus que atendiam à população local e das cidades
vizinhas. Eram veículos montados sobre chassis de caminhão. O galpão onde
funcionava a oficina ainda existe e a Viação José Maria Marques Bom Ltda, segue
em operação. Na oficina sempre sobravam alguns pneus velhos, que eram logo
transformados em brinquedo pelo grupo de amigos dos irmãos Rolando, Leili e
Nino. Estes usavam calça curta por serem os mais novos e não se acostumavam com
os sapatos, sempre deixados de lado após a aula. Pés descalços prontos para as
aventuras de subir em árvores, lutar na brincadeira de bandido e mocinho, mãe
na mula e, a mais divertida de todas, encontrar nos velhos pneus e serem jogados
ladeira abaixo. Ver o mundo de ponta cabeça a toda velocidade até bater em
algo, uma árvore ou muro, e parar. Pele esfolada e arranhões pareciam não
preocupar, eram apresentados como troféus numa demonstração de coragem dos
pequeninos.
Desde
cedo, Rolando demonstrava sua paixão pela música. Pegava uma vassoura e fingia
que estava tocando violão. O pai gostava de ver aquela brincadeira e costumava
chamar os amigos da oficina no intervalo do almoço para ouvir o filho cantar
músicas de Bob Nelson, o primeiro artista brasileiro a misturar o estilo
caipira aos dos caubóis norte-americanos. Um dos seus sucessos, “Oh, Suzana”,
dizia: “oh, Suzana, não chores por mim/ Eu vou pro Alabama, vou tocando
bandolim”. Com chapéu no estilo texano, lenço no pescoço, cinturão com duas
armas, Bob Nelson e seus Rancheiros faziam apresentações em todos os cantos do
país. O pequeno Boldrin, além de imitar o andar dos gringos durões, prontos
para um duelo, também dava grito dos caubóis: “o-le-rei-iii-tiii...o-le-rei-iiiiii-tiii”.
E todos caíam na risada.
A
vida pacata era confrontada com um fator externo angustiante. Guaíra, um lugar
minúsculo na área urbana, mas gigante na lavoura, também sentiu bastante os
efeitos da Segunda Guerra Mundial. Houve racionamento de alimentos básicos,
como o arroz e o pão. O mercadinho amanhecia com fila na porta, e todos saíam
carregando pouca coisa. Criação de frangos, porcos, plantação de milho, árvores
frutíferas e horta no quintal ajudavam a complementar as refeições de uma
família tão grande quanto a dos Boldrin. O avô paterno Mário, também morava com
eles. A avó, Marieta, já havia falecido.
Sem
gasolina, outro produto racionado, os poucos carros de passeio e caminhões
agrícolas foram deixados nas garagens. A oficina mecânica quase sem serviço até
que, de repente, surgiram os veículos que suportavam, geralmente na parte
traseira, o que parecia ser uma miniusina, com chaminés exalando vapor o tempo
todo. Era gasogênio, um equipamento primoroso, apesar do tamanho avantajado,
que foi uma opção à falta de combustíveis. A pequena usina queimava madeira,
carvão ou restos de produtos agrícolas, como bagaço de milho, para criar o
vapor responsável pela compreensão e capaz de fazer o motor funcionar. Em 1940,
o presidente Getúlio Vargas criou a Comissão Nacional do Gasogênio com o
objetivo de facilitar a produção em larga escala do equipamento. A partir daí,
surgiram as frotas de ônibus movidas a vapor. Era altamente poluente, mas não
deixava ninguém em pé.
A
família Boldrin ficou em Guaíra até o fim da Segunda Guerra Mundial. Exatamente
em 1945, voltaram a se mudar. Houve uma passagem por Ituverava antes do retorno
definitivo a São Joaquim da Barra. A volta à cidade de origem fez o menino de
olhos azuis abraçar o sonho de subir no palco. Falava em ser ator e via na moda
caipira o início de uma caminhada que poderia leva-lo ao estrelato. O fascínio
pelo palco surgiu dentro de um circo. O menino foi subjugado pelo encantamento
daqueles que passam a vida sob a lona, saltimbancos, provocando alegria,
causando suspense, despertando a coragem, o heroísmo, quando o roteiro circense
avançou pelo imenso interior. O circo era o elo da gente simples com a arte.
Era o zoológico itinerante, pela quantidade de animais transportada, desde um
simples franguinho, que costumava escapar dos palhaços em ziguezagues hilários,
até os grandes felinos com seus dentes de sabe intimidados pelo chicote sonoro
do domador. O circo era um grande acontecimento, um instante de união das
famílias.
O
que mais interessou o menino Boldrin foi o circo-teatro. O garoto ficava na
primeira fila e decorava peças inteiras: O ébrio, O céu uniu dois
corações, O mundo não me quis. Tornou-se um frequentador tão assíduo
que passou a se misturar a técnicos e cenógrafos como uma mascote da trupe,
sempre curioso, sempre querendo aprender sobre tão nobre trabalho. Certa vez, o
dono de um circo-teatro conversou com os pais de Boldrin e esses autorizaram o
menino a viajar com o grupo. Por volta dos 9 anos de idade, o garoto chegou a
fazer do elenco, sua primeira experiência como ator.
Experiências
como o circo-teatro fizeram as brincadeiras darem lugar a uma mente irrequieta
decidida a novas conquistas. Era o entusiasmo que tentava vencer o marasmo das
poucas opções de sobrevivência profissional aos jovens de uma cidade pequena em
um país se adaptando ao pós-guerra. Ganhou uma viola do pai, e um professor de ginásio,
Toniquinho Della Vecchia, o ensinou a afinar o instrumento no estilo “Rio
abaixo”. Uma viola tem dez cordas, dispostas em cinco pares, e as diferentes
afinações variam de acordo com a região do país. A “Rio abaixo”, contadas do
agudo, cordas inferiores, para o grave, as superiores, exige a sequencia de
notas ré – si – sol – ré – sol, gerando um acorde de sol maior se tocadas
simultaneamente. Essa afinação é muito usada no blues americano e é também
muito próxima à afinação do cavaquinho brasileiro (ré – si – sol – ré).
Publicado
originalmente em CORRÊA, Willian. A história de Rolando Boldrin: Sr. Brasil.
São Paulo: Contexto, 2017.
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