quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Homenagem a Rolando Boldrin, Boldrin early years, parte I: Do nascimento à arte

Capítulo 1: Do nascimento á arte



Por Willian Corrêa e Ricardo Taira

 

A jabuticabeira ainda está lá, frondosa e generosa, permitindo duas colheitas por ano dos frutos graúdos e doces. Se exibe majestosamente no quintal da modesta casinha de número 693 da rua Marechal Deodoro, antiga rua da Estação, região central de São Joaquim da Barra, ao norte do estado de São Paulo. Foi nesse lugar que o menino branquelo de olhos azuis chegou berrando. Nasceu numa tarde quente de outubro e encantou parteira e senhoras da vizinhança, que ajudavam a pôr filhos no mundo, na cidade onde falar em dar à luz em hospital era quase uma heresia diante de tão competentes mulheres, que perdiam a conta de quantas crianças tiraram do ente materno e colocaram para seguir o destino traçado por Deus. Quando as parteiras entravam em ação, a presença masculina era dispensada. Os homens, geralmente, ficavam na sala de casa à espera do choro desesperado de crianças recém-nascidas, indicativo de que tudo caminhava “nos conformes”, como se costumava dizer de uma tarefa bem-sucedida. Eles assistiam à passagem do balde de água quente, do balde de água fria, das toalhas, da imagem de Nossa Senhora das Dores, da vizinha do lado, da vizinha da frente, da mãe, da tia que veio de longe, da madrinha de casamento. Uma multidão num quarto modesto.

A partir do choro do bebê, os homens se abraçavam, limpavam o suor do rosto, e o dono da casa começava a passar os copos que receberiam a cachacinha de qualidade feita no melhor alambique da região. Quando a parteira saía com a criança embrulhada na manta abençoada na paróquia central, dias antes do nascimento, os beijos exalavam o cheiro da aguardente que, a partir daquele momento, iriam embalar as conversas até altas horas. Uma alegria que se repetia na casa dos Boldrin a cada dois anos.

Quando o menino de olhos azuis nasceu, a família já era bem grande. Rolando foi o sétimo filho do mecânico de automóvel Amadeu e a dona e casa Alzira. Depois dele, ainda viriam outros cinco que completariam a matemática tão sonhada pelo casal: seis homens e seis mulheres. Uma família, como tantas outras de São Joaquim da Barra, cidade a 385 quilômetros da capital de São Paulo, quase divisa com Minas Gerais, e que tinha, na época, como principais fontes de riqueza o café e a pecuária.

Era o dia 22 de outubro de 1936. Os olhinhos azuis ainda incomodados com a luz piscavam passando de colo em colo. Recebia sinais da cruz na teste e beijos um tanto exagerados, bem típicos da expansividade brasileira, misturada à dramaticidade brasileira, misturada à dramaticidade dos italianos, que passaram a habitar em grande número terras no interior paulista e de outros estados nos dois últimos séculos, formando uma das maiores comunidades de imigrantes em território brasileiro.

Os avós paternos, Mario Boldrin e Marieta Zordan, eram italianos. Ele, de Pádua; ela de Verona. Aqui, fizeram amizade com a família Machado, de ancestrais portugueses. Foi quando os pais de Rolando Boldrin se conheceram, namoraram e celebraram o casamento numa festa típica da roça, ao ar livre, com muita comida, bebida, cantoria e dança.

Era comum entre as famílias da primeira metade do século passado – principalmente no interior, onde se precisava de muitos braços para o plantio – aumentarem a prole rapidamente. Com seu Amadeu não foi diferente, embora ele não se interessasse pelo campo e procurasse sempre se aperfeiçoar na profissão de mecânico, mexendo em fordinhos. Ele só respeitava o tempo do chamado resguardo pós-parto. Seu Amadeu e dona Alzira tiveram os filhos Yolanda, Rolanda, Jaques, Tim, Aroldo, Leili, Rolando, Cida, Nino, Alzirinha, Leila e Maria.

O batizado do menino Rolando ainda demoraria. Seu Amadeu, materialista, se dizia ateu. Dona Alzira, católica fervorosa, queria os filhos seguindo as leis canônicas. Não deixava o marido em paz quando o assunto era a vivência com a Igreja. Somente quando Rolando tinha 7 anos de idade, o pai decidiu batizá-lo. E meses depois também levou o garoto para ser crismado. Os padrinhos, de batismo e de crisma, eram fazendeiros e suas respectivas esposas. Era tradição entre as famílias humildes convidar gente abastada para as cerimônias religiosas. O padrinho de crisma foi Enoque Garcia, um dos fundadores de Guaíra e também um dos primeiros prefeitos do então vilarejo. A família Garcia segue hoje na política, com enorme influência no município.

Na visão de seu Amadeu, ir à escola era uma atividade temporária. Os filhos precisavam aprender a ler, escrever e fazer contas, conhecimentos, segundo eles, suficientes para que todos pudessem enfrentar o que viesse pela frente. O importante era aprender um ofício. Isso no caso dos meninos, já que as filhas cuidariam de afazeres domésticos e permaneceriam na segurança do lar até o dia do casamento.

Quando Rolando Boldrin tinha 2 anos, a família se mudou para Guaíra, município próximo de Barretos. O aluguel era mais barato e, com a família crescendo e mais bocas para alimentar, era preciso fazer alguma economia. Foi em Guaíra que ele fez os primeiros anos do primário, hoje chamado de ensino fundamental.

O grupo escolar exigia que os alunos cantassem o Hino Nacional reunidos no pátio e observando o hasteamento da bandeira direita. Mão direita sobre o peito. A maioria disfarçava. Fingia que cantava por não saber a composição. Só havia um trecho que todos soltavam a voz: “Ó pátria amada, idolatrada, salve, salve”. Na sequência, voltavam os murmúrios. Rolando, no entanto, se esforçava para cantar a maior parte da letra escrita pelo poeta Joaquim Osório Duque Estrada.

A primeira professora foi dona Madalena, uma mulher enérgica, magra e atenta a todos os movimentos dos alunos. Os mais faladores, entre eles o menino de olhos azuis, costumavam ser advertidos com tapas na cabeça e com golpes de régua.

A rua era o parque de diversões daquela molecada nos anos 1930 e 1940, uma extensão dos próprios lares, muitos deles de terra batida, como era o caso do imóvel ocupado pela família Boldrin. Sobre o chão de terra, uma infinidade de colchões de palha e travesseiros de pena garantia a todos uma boa noite de sono, juntinhos – uma dádiva para uma família amorosa e solidária.

Em Guaíra, o pai trabalhava na oficina mecânica de José Maria Marques Bom, também dono das jardineiras, os ônibus que atendiam à população local e das cidades vizinhas. Eram veículos montados sobre chassis de caminhão. O galpão onde funcionava a oficina ainda existe e a Viação José Maria Marques Bom Ltda, segue em operação. Na oficina sempre sobravam alguns pneus velhos, que eram logo transformados em brinquedo pelo grupo de amigos dos irmãos Rolando, Leili e Nino. Estes usavam calça curta por serem os mais novos e não se acostumavam com os sapatos, sempre deixados de lado após a aula. Pés descalços prontos para as aventuras de subir em árvores, lutar na brincadeira de bandido e mocinho, mãe na mula e, a mais divertida de todas, encontrar nos velhos pneus e serem jogados ladeira abaixo. Ver o mundo de ponta cabeça a toda velocidade até bater em algo, uma árvore ou muro, e parar. Pele esfolada e arranhões pareciam não preocupar, eram apresentados como troféus numa demonstração de coragem dos pequeninos.

Desde cedo, Rolando demonstrava sua paixão pela música. Pegava uma vassoura e fingia que estava tocando violão. O pai gostava de ver aquela brincadeira e costumava chamar os amigos da oficina no intervalo do almoço para ouvir o filho cantar músicas de Bob Nelson, o primeiro artista brasileiro a misturar o estilo caipira aos dos caubóis norte-americanos. Um dos seus sucessos, “Oh, Suzana”, dizia: “oh, Suzana, não chores por mim/ Eu vou pro Alabama, vou tocando bandolim”. Com chapéu no estilo texano, lenço no pescoço, cinturão com duas armas, Bob Nelson e seus Rancheiros faziam apresentações em todos os cantos do país. O pequeno Boldrin, além de imitar o andar dos gringos durões, prontos para um duelo, também dava grito dos caubóis: “o-le-rei-iii-tiii...o-le-rei-iiiiii-tiii”. E todos caíam na risada.

A vida pacata era confrontada com um fator externo angustiante. Guaíra, um lugar minúsculo na área urbana, mas gigante na lavoura, também sentiu bastante os efeitos da Segunda Guerra Mundial. Houve racionamento de alimentos básicos, como o arroz e o pão. O mercadinho amanhecia com fila na porta, e todos saíam carregando pouca coisa. Criação de frangos, porcos, plantação de milho, árvores frutíferas e horta no quintal ajudavam a complementar as refeições de uma família tão grande quanto a dos Boldrin. O avô paterno Mário, também morava com eles. A avó, Marieta, já havia falecido.

Sem gasolina, outro produto racionado, os poucos carros de passeio e caminhões agrícolas foram deixados nas garagens. A oficina mecânica quase sem serviço até que, de repente, surgiram os veículos que suportavam, geralmente na parte traseira, o que parecia ser uma miniusina, com chaminés exalando vapor o tempo todo. Era gasogênio, um equipamento primoroso, apesar do tamanho avantajado, que foi uma opção à falta de combustíveis. A pequena usina queimava madeira, carvão ou restos de produtos agrícolas, como bagaço de milho, para criar o vapor responsável pela compreensão e capaz de fazer o motor funcionar. Em 1940, o presidente Getúlio Vargas criou a Comissão Nacional do Gasogênio com o objetivo de facilitar a produção em larga escala do equipamento. A partir daí, surgiram as frotas de ônibus movidas a vapor. Era altamente poluente, mas não deixava ninguém em pé.

A família Boldrin ficou em Guaíra até o fim da Segunda Guerra Mundial. Exatamente em 1945, voltaram a se mudar. Houve uma passagem por Ituverava antes do retorno definitivo a São Joaquim da Barra. A volta à cidade de origem fez o menino de olhos azuis abraçar o sonho de subir no palco. Falava em ser ator e via na moda caipira o início de uma caminhada que poderia leva-lo ao estrelato. O fascínio pelo palco surgiu dentro de um circo. O menino foi subjugado pelo encantamento daqueles que passam a vida sob a lona, saltimbancos, provocando alegria, causando suspense, despertando a coragem, o heroísmo, quando o roteiro circense avançou pelo imenso interior. O circo era o elo da gente simples com a arte. Era o zoológico itinerante, pela quantidade de animais transportada, desde um simples franguinho, que costumava escapar dos palhaços em ziguezagues hilários, até os grandes felinos com seus dentes de sabe intimidados pelo chicote sonoro do domador. O circo era um grande acontecimento, um instante de união das famílias.

O que mais interessou o menino Boldrin foi o circo-teatro. O garoto ficava na primeira fila e decorava peças inteiras: O ébrio, O céu uniu dois corações, O mundo não me quis. Tornou-se um frequentador tão assíduo que passou a se misturar a técnicos e cenógrafos como uma mascote da trupe, sempre curioso, sempre querendo aprender sobre tão nobre trabalho. Certa vez, o dono de um circo-teatro conversou com os pais de Boldrin e esses autorizaram o menino a viajar com o grupo. Por volta dos 9 anos de idade, o garoto chegou a fazer do elenco, sua primeira experiência como ator.

Experiências como o circo-teatro fizeram as brincadeiras darem lugar a uma mente irrequieta decidida a novas conquistas. Era o entusiasmo que tentava vencer o marasmo das poucas opções de sobrevivência profissional aos jovens de uma cidade pequena em um país se adaptando ao pós-guerra. Ganhou uma viola do pai, e um professor de ginásio, Toniquinho Della Vecchia, o ensinou a afinar o instrumento no estilo “Rio abaixo”. Uma viola tem dez cordas, dispostas em cinco pares, e as diferentes afinações variam de acordo com a região do país. A “Rio abaixo”, contadas do agudo, cordas inferiores, para o grave, as superiores, exige a sequencia de notas ré – si – sol – ré – sol, gerando um acorde de sol maior se tocadas simultaneamente. Essa afinação é muito usada no blues americano e é também muito próxima à afinação do cavaquinho brasileiro (ré – si – sol – ré).

 

Publicado originalmente em CORRÊA, Willian. A história de Rolando Boldrin: Sr. Brasil. São Paulo: Contexto, 2017.

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