Por Henrique Matteucci
A história de Miguel de Oliveira, o segundo brasileiro a conquistar o título mundial de boxe, é bem mais modesta que a de Eder Jofre, mais curta também, porém de igual grandeza, se levar em conta o que significa – e o que custa – a conquista de tal laurel. O boxe é, sem dúvida, o esporte mais difícil de todos. É o único em que o praticante se expõe por inteiro e diretamente, corpo e mente em risco a cada fração de segundo. Um jogador de futebol ou de basquetebol, um atleta do esporte-base ou um tenista, qualquer um deles corre o risco de morrer ali mesmo ou, pior do que isso, sofrer um derrame cerebral e ficar inutilizado para sempre. Ele expõe o rosto à deformação, os olhos à escuridão definitiva. Sempre, até nos treinos.
A caminhada no rumo do título mundial é uma marcha de guerra. Uma batalha atrás da outra, “balas perdidas” raspando e ameaçando sem parar. Quando um pugilista chega ao ranking, a guerra recrudesce e os inimigos se tornam cada vez mais perigosos. Cada adversário é um superguerreiro, com suas armas secretas, suas táticas traiçoeiras. Cada luta é um novo desafio de vida ou morte. E poucos chegam à glória da conquista. Muitos se destroçam no meio do caminho, sem conhecer o doce sabor do título.
Daí a grandiosidade, o heroísmo e a beleza de um cinturão de ouro. Não é o ouro da fivela que vale, é o “espírito” do galardão. É só prestar atenção a este detalhe, para se ter uma ideia do que significa um título de campeão mundial: do dr. Araripe Sucupira a Miguel de Oliveira, num espaço de 54 anos, mais de dez mil jovens ingressaram no boxe em nosso país, mas só dez disputaram o título mundial e só dois chegaram a ele.
Para se avaliar o feito de Miguel de Oliveira, deve-se considerar que ele não teve sequer um por cento da infraestrutura que Eder teve. Miguel não nasceu numa academia, de uma família de pugilistas, não aprendeu a gatinhar dentro de um ringue, não teve um pai técnico e não cresceu motivado por histórias de lutas. Miguel ouviu falar de boxe pela primeira vez aos 14 anos de idade e só aos 17 conheceu uma academia.
Ele nasceu em Lençóis Paulista (SP) no dia 30 de setembro de 1947, mas viveu grande parte da sua primeira infância em São Manuel. Filho de pais lavradores – Bento e Alzira -, Miguel viajou para São Paulo aos 14 anos (1961), para morar com a irmã e completar seus estudos na capital. E deu sorte. Foi trabalhar com o cunhado numa fábrica de náilon – a Rilsan -, que por coincidência tinha um clube interno e, no clube, uma academia de boxe, cujo treinador – Jair Ongaro – vivia olhando para a porta à espera de que um dia por ela entrasse um campeão enviado por Deus.
Mas não foi ali o primeiro contato de Miguel com o pugilismo. Foi ainda em São Manuel, num cinema. Ele foi com amigos para ver um bangue-bangue. E voltou ao cinema por quatro dias seguidos, não pelo bangue-bangue, ao qual nem se lembra, mas pelo “jornal da tela”, que exibia a luta em que Eder Jofre, ao nocautear Eloy Sanches, tornara-se o primeiro brasileiro a conquistar um título mundial. Miguel ficou fascinado. E passou semanas dando golpes no ar, imitando a postura de Eder e sonhando em ser ele também um campeão.
Desde então passou a curtir duas paixões: o boxe e a mecânica. Na Rilsan, encontrou as duas portas. Aprendeu mecânica, que depois aperfeiçoou num curso do Senai, e encontrou o boxe, que aprendeu com Jair Ongano e depois aperfeiçoou com os professores Waldemar Zumbano e Antônio Carollo, aquele na Bel-Boxe e este na Pirelli, empresa que possui a maior academia do Brasil.
Ainda em São Manuel, Miguel dera os primeiros passos. É que o filme da luta de Eder empolgara a cidade, tal como acontecera com Mococa cinqüenta anos antes com as notícias da luta entre Dempsey e Firpo. São Manoel virou uma academia e até nos quintais treinava-se boxe, com sacos de areia improvisados e pendurados em goiabeiras. Ali Miguel deu seus primeiros murros, sem saber que um dia daria murros para a história.
Bom farejador, Jair Ongaro percebeu de imediato que tinha um diamante bruto nas mãos. Notou, em primeiro lugar, seu golpe rápido, seco. Não apenas forte, não propriamente golpe de demolidor. Golpe seco, que no ambiente pugilístico se chama de golpe justo. Ou seja: nem um milímetro pra lá, nem um milímetro pra cá. Justo. É o melhor, porque é o golpe colocado, pega com peso e a velocidade certos, no ponto certo. E derruba.
Ongaro inscreveu Miguel no Campeonato de A Gazeta Esportiva de 1964 e não tinha dúvida de que seu novo pupilo seria campeão. Não deu outra. Ele nocauteou Lima na primeira luta e venceu todas as outras. Depois foi campeão paulista duas vezes, bi também no certame brasileiro e bi no Torneio dos Campeões, terceiro colocado no Latino-Americano do Chile (1968) e participou da Olimpíada de Winnipeg, no Canadá, mas sem sucesso.
Na volta ingressou no profissionalismo e estreou oficialmente contra o forte carioca Alvacir Dória, o qual venceu por pontos em quatro assaltos. E foi vencendo todos os adversários, dezenove por nocaute, dez por pontos, até chegar a primeira grande oportunidade.
Foi em Tóquio, a 9 de janeiro de 1973. Com apenas 29 lutas como profissional, muito inexperiente ainda, Miguel disputou o título mundial com o campeão Kaishi Wajima. E empatou em 15 assaltos. Empatar com o campeão, em Tóquio, equivale a vencer. E até perder por pontos, como ele perdeu depois, tem o seu valor.
Dois anos depois, em 7 de maio de 1975, Miguel de Oliveira teve outra chance em Monte Carlo, onde foi para enfrentar o espanhol José Duran. Duran não era um qualquer. Era um craque. Alto inteligente e hábil, subiu como franco favorito. Pouca gente acreditava em Miguel, mas ele, nesse dia, se superou. Deu uma surra em Duran, mando-o duas vezes à lona e venceu incontestavelmente por pontos em quinze assaltos.
Campeão do mundo! É mole? Foi recebido aqui como herói nacional e desfilou pela cidade no carro dos bombeiros. Eder estava ao seu lado. O Brasil inteiro sentiu-se campeão do mundo naqueles dias.
Em 9 de agosto do mesmo ano, Miguel lutou com o norte-americano Don Cobbs, tido nos Estados Unidos como um provável futuro campeão. O título não estava em jogo. Tranquilo, confiante, Miguel venceu por nocaute no quinto assalto.
Mas em 15 de novembro de 1975, em Paris, numa noite de pouca inspiração e má direção, ele perdeu o título para Elisha Obed, das Bahamas. Miguel poderia ter vencido por nocaute. O perigoso Obed ficou grogue várias vezes e no nono round quase foi à lona. Faltou agressividade a Miguel naquela noite. Faltou-lhe confiança e estímulo do seu “segundo”. A famosa pegada de Elisha influiu inclusive no técnico Antônio Carollo, que, embora brilhante em suas funções, pecou por excesso de zelo. Quando o adversário estava “sentido”, com as pernas bambas, Miguel deveria ter atacado sem reservas, para decidir. Mas o técnico gritou-lhe que se cobrisse, que tomasse cuidado. E ele não atacou. Quem atacou foi Obed. E no 11º assalto Miguel perdeu por nocaute técnico. De pé, porque é assim que ficam os heróis, mesmo na derrota.
Miguel fez mais algumas lutas, depois abandonou o boxe para estudar. Formou-se em Educação Física e foi trabalhar como técnico de boxe da Companhia Atlética, dirigida, no elegante bairro do Brooklin, pelo ex-empresário Glicério Matteu. Deu certo outra vez. Com Maguila como pupilo, ele mostrou que é tão craque como treinador quanto foi como lutador.
Mas a sua maior glória – maior ainda que o título – é que, assim como Eder Jofre e tantos outros heróis desta saga, ele jamais perdeu a humildade.
Texto retirado do livro MATTEUCCI, HENRIQUE. Boxe: Mitos e História. São Paulo: Hemus, 1988.
2 comentários:
Muito boa homenagem, apenas corrigindo que Winnipeg não foi Olimpíadas e sim, Pan Americano.
Se não me engano, o Miguel perdeu no Pan para Victor Ahumada ou para o Victor Galindez (sendo um ou outro, foram argentinos de muita expressão na categoria de pesos meio pesados, na década de 70).
Prezado André: agradeço as observações. Porém, somente copiei o texto do Matteucci. Ele coloca no texto que as Olímpiadas foram em Winnipeg.
Matheus Trunk
www.violaosardinhaepao.blogspot.com
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