domingo, 6 de junho de 2010

VSP Entrevista: Fiori Gigliotti


Transmitiu Copas, viveu grandes decisões. Mas o maior elogio que alguém pode fazer a Fiori Gigliotti é chamá-lo de caipira.

30 ANOS DE ESPETÁCULO
Por João Areosa

O gol do negro Parafuso, num remoto e acirrado jogo do interior, foi o começo de tudo. Depois, a voz anasalada passou a varar as ondas radiofônicas, conquistando audiência e uma comovente amizade entre locutor e ouvinte. Hoje, aos 48 anos, Fiori Gigliotti mantém o mesmo entusiasmo dos 18, quando o rádio esportivo ganhava novas cores.

Placar- Pra começar, nome, local de nascimento, enfim a chamada ficha técnica.

Fiori- Por ser de origem italiana, ganhei o nome de Fiori Gigliotit, escreve-se Gigliotti, mas se pronuncia Gilliott. Nasci em Barra Bonita, interior de São Paulo, a 27 de setembro de 1928, filho de seu Ângelo e dona Rosária. Mudei-me para Lins com quatro anos mais ou menos, na época da revolução de 32, e morei naquela cidade durante 20 anos. Vivi uma infância bem vivida, uma infância de moleque, moleque de estilingue, moleque de andar descalço, de formar aqueles grupinhos que brincavam todos os tipos de brincadeiras daquela época. Infância que infelizmente está morrendo, esmagada pelo alto preço do progresso.

Placar- Você parece um sujeito muito ligado ao interior. Tem-se a impressão de que, se alguém o chamar de caipira, receberá “muito obrigado” em troca.

Fiori- Ah, sou mesmo um homem do interior. Vivo em São Paulo, mas vivo em São Paulo com o interior no meu coração, na minha própria formação. E me chamando de caboclo ou de caipira, estão é me elogiando mesmo.

Placar- E como foi o seu começo? Como você sentiu que dava para o rádio?

Fiori- Bom, eu tive que me virar muito cedo, pois tinha 12 anos quando perdi meu pai, a quem era muito ligado; eu tinha loucura por ele. Passei a engraxar sapatos, a vender jornal, a trabalhar em casa de tecidos. Fui parar no jornal Correio de Lins, limpando a sala, fazendo cobrança, ajudando o pessoal de lá na luta pela sobrevivência do jornal. De repente, me vi fazendo notinhas sociais e entrando aos poucos nos assuntos esportivos. Passei a escrever um programa para a rádio de Lins, mas outros é que o liam no microfone, uma turma que não gostava muito de futebol e que, por isso, lia mal, um programa sem vida. Aí comecei a pegar no pé do diretor, porque eu queria ler o programa, desejava apresentá-lo de outra forma. Mas eles vinham com aquela mania: “Mas você nunca trabalhou em rádio, não possui experiência”. E eu: “Ué, mas quem trabalha hoje nunca havia trabalhado antes de começar! Então, estou aqui atrás da chance de começar”. Venci pelo cansaço e daí nasceu minha carreira de homem de rádio. Mais tarde, passei a apresentar também programas caipiras, fazia programas românticos, limpava a rádio, era corretor de anúncios.

Placar- E como nasceu o locutor?

Fiori- Faço questão de apontar aqui o apoio que recebi de Ramiro Vieira. Esse acreditou de imediato, me deu apoio: “Vai em frente que tudo dará certo”. E no dia 26 de maio de 1947, com 19 anos, eu estreei como locutor. O Linense ganhou do São Paulo de Araçatuba por 1 a 0, gol de um crioulão cumprido chamado Parafuso.

Placar- Você imitava algum locutor famoso, sofreu influência na sua forma de narrar?

Fiori- Ah, sofri sim. Do Rebelo Júnior e do Pedro Luís. Então, o meu gol sempre foi um gol ao estilo do Rebelo, um gol cumprido. E a forma de irradiar também. Eu apresentava aquele começo pausado e depois buscava o crescendo, características do Rebelo, ao passo que o Pedro Luís corria demais atrás da bola, sua preocupação era mais a bola do que qualquer detalhe. O Pedro era mais ou menos assim (Fiori o imita, narração rapidíssima): “Bandeirantes de São Paulo transmitindo Corinthians e Palmeiras. Domina a situação lá pela direita Toninho, dá para Rosemiro, Rosemiro faz o passe...” Já o Rebelo falava mais pausado (nova imitação): “Domina tranquilamente a defesa alviverde, prende a bola lá atrás Mário Sotto, solta o couto na linha intermediária para Rosemiro, este faz um passe bonito ao meio-campista que é Vasconcelos...” Então, ele começava tranquilo lá atrás e na medida em que a bola ia se aproximando da meta adversária, é que ele crescia. Isso ficava muito bonito em rádio, entendeu? Além do mais, o Rebelo era o locutor da época, pois a onda da Tupi penetrava muito mais do que a da Gazeta. E veja você que depois, por ironia do destino, eu vim trabalhar com o Pedro na Bandeirantes, indo para a Pan-Americana ocupar um lugar que era dele, retornando a Bandeirantes para uma vaga que também pertenceu ao Pedro Luís. Com o Rebelo aconteceu um negócio incrível. Fiz uma amizade tão grande com o Rebelo, que foi minha inspiração, e acabei sendo o encarregado de fazer a oração de beira de túmulo por ocasião de sua morte.

Placar- E a vinda para São Paulo, como aconteceu?

Fiori- Em fevereiro de 1952 fui chamado, através do Édson Leite, para um teste. Jogavam Santos e Seleção Paulista, na Vila Belmiro, um jogo-treino. Graças a Deus, tive sorte e fiz contrato, mas para começar a trabalhar só em julho, pois não podia abandonar de repente meus compromissos particulares e a rádio em Lins. Mas, antes disso, fiquei nove meses na Rádio Cultura de Araçatuba e trabalhei dois anos na fase de montagem da Rádio Clube de Birigui, sempre apresentando também programas sertanejos. Além disso, eu cantava, gostava de fazer serenata. Cantava músicas do Nelson Gonçalves, do Lúcio Alves, do Dick Farney. E apresentava dois programas românticos: O Crepúsculo Romântico e Quando Fala O Coração. Tinha também hora de calouros, essas coisas rodas.

Placar- E como surgiu o seu próprio estilo de narração, ou seja, como você foi se liberando das imitações e das influências dos locutores mais famosos?

Fiori- À medida que fui ganhando alguma projeção, senti que tinha que jogar uma cartada, pois, se continuasse a imitar o Pedro Luís e o Rebelo Júnior, eu seria apenas um locutor entre tantos outros que faziam o mesmo. Então, mudei completamente a terminologia do rádio esportivo. Por exemplo, todo mundo falava: “Amigos ouvintes ou senhores e senhoras”. Então, passei a falar “torcida brasileira”. Torcida brasileira, boa tarde. Você pode reparar que, quando o goleiro pegava na bola, todo mundo dizia: “Abraça, pega firme”. Mudei para: “seguura com firmeza”. Quando há um levantamento de bola, o locutor normalmente fala: “Prepara o centro, vai centrar, olha o chuveirinho, atenção...” Mudei para “balão subindo, balão descendo”. Digo “amortece no peito e põe na grama”. A maioria diz: “Mata no peito e baixa na terra”, como era o caso do falecido Geraldo José de Almeida. E tem aquele tratamento carinho que dou prestigiando as cidades do interior, prestigiando os amigos, prestigiando principalmente os estudantes, pois cheguei à conclusão de que a narração esportiva não pode ser exclusivamente a preocupação do locutor em correr atrás da bola. Honestamente, acho que isso maltrata o ouvinte. É preciso suavizar o impacto que o futebol provoca em quem estiver ouvindo uma transmissão.

Placar- Daí que antes de cada partida você faz questão de criar as mais diversas imagens, chegando inclusive a detalhes, notadamente meteorológicos.

Fiori- É verdade (e Fiori demonstra como abriria um jogo numa tarde de sol). Torcida brasileira, carinhosamente boa tarde. Esta é uma tarde azul, uma tarde de festa, sol brilhando, algumas nuvens brancas desfilando na passarela do céu, enfeitando o cenário, dando-nos exatamente a imagem mais bela para um acontecimento maravilhoso, misturando com as emoções do futebol. Agora, quando o tempo não está bom, quando o céu está meio trancado, todo mundo diz “tarde feia”. Aí eu mudei: “Céu carrancuuudo, torcida brasileira”.

Placar- Já que é hora de demonstrações, como você abriria um jogo decisivo entre Corinthians e Palmeiras?

Fiori- Torcida brasileira, carinhosamente boa tarde. Hoje é dia de festa, hoje é dia de emoção, hoje é dia do coração bater mais forte. Palmeiras e Corinthians, dois gigantes do futebol paulista, dois gigantes do futebol brasileiro, outra vez se encontrando no campo de luta. O Corinthians perto da realidade, o Palmeiras simplesmente transformando em verdade mais um dos sonhos de sua torcida que tanta alegria s tem experimentado ao longo destes últimos anos. Mas o corintiano que espera, o corintiano que sofre, o corintiano que vai somando a cada jogo que passa, o corintiano mais fiel, o corintiano que procura esquecer um passado tão triste e que tanto o tem maltratado; o corintiano vem para campo com a certeza de desabafar, com a certeza de viver hoje, finalmente, o seu dia de colher, neste palco maravilhoso, neste jardim de tantas emoções, as flores que efetivamente hão de perfumar, hão de adornar o seu largo sofrimento. Vive o Morumbi uma de suas mais belas, mais lindas, temos plena certeza, mas inesquecíveis jornadas, porque assim quis o destino.

Placar- E o radinho de pilha? A sua presença nos estádios não obrigou o locutor a ser mais preciso, mais rápido, mais atento?

Fiori- Ah, muito. Obrigou sim. O radinho de pilha corrigiu muita coisa, pois ele não apenas exige mais cuidado, maior atenção; ele é assim como um instrumento de aperfeiçoamento do próprio locutor esportivo. Para determinados narradores, foi uma invenção do demônio. É um fiscal exigente do locutor e, conseqüentemente, não perdoa. Mas não se pode negar que ele veio nos ajudar bastante também, aumentando nossa popularidade, tornando nosso trabalho mais ouvido e mais prestigiado. É, diríamos assim, um fiscal que entusiasma.

Placar- Soubemos que você possui muitas histórias pitorescas. A do Vaticano, por exemplo...

Fiori- Não, essa foi com o Jorge Curi, da Globo. Numa excursão da Seleção, um grupo de jornalistas foi visitar o Papa. Era o Pio XII na época, e o Curi ainda era da Nacional. Muito bem, ao terminar a benção, o Curi soltou um berro: “Viva el Papaaaa”! Uma das minhas aconteceu ainda na Rádio de Araçatuba. Certa ocasião, fui irradiar na cidade de Bebedouro e fiz tudo normalmente. Mais tarde, fui saber que tinham ido ao ar apenas os três minutos finais de São Paulo de Araçatuba e Internacional de Bebedouro. Não era brincadeira. Agora, com Embratel, ficou mais fácil irradiar do Japão que de Jundiaí.

Placar- E o jogo mais emocionante?

Fiori- Você veja, eu fiz as copas de 62, 66, 70 e 74. Mas entre tudo o que vi, destaco os 5 a 2 do Santos em cima do Benfica pelo Mundial de Clubes, na decisão, em 62. O Santos acabou com Benfica, mas triturou o Benfica, um show de bola e na casa do adversário.

Placar- Os locutores de rádio parecem ter um prazer especial em colocar apelidos em jogadores de futebol.

Fiori- Eu, por exemplo, não gosto muito disso, não. Acho que adjetivos e apelidos só caem bem no craque, no fora de série. Claro, já coloquei alguns como o Rei da Bola para o Pelé, o Reizinho do Parque para o Rivelino, o Fino da Bola para o Ademir da Guia. Aliás, o Ademir foi o jogador que mais me impressionou nestes 30 anos de carreira. Me impressionou mais que o próprio Pelé. O que mais me toca é a classe e a regularidade, com sua passada longa, com seu estilo intocável. Ele até facilita a narração.

Placar- Dizem que você tem mais títulos de cidadania que o Getúlio.

Fiori- Isso é um acervo particular, um patrimônio que só Deus sabe o valor que tem, porque, mesmo não sendo político, já tenho 69 títulos, graças a uma amizade que nasceu entre mim e o interior, um respeito muito grande, uma identificação fora de série. E estou sempre paraninfando estudantes, comparecendo a festas de todo tipo. E os presentes? Olha, se eu fosse guardas todas as garrafas de cachaça que recebo a cada jogo no interior, teria condições de concorrer no mercado com qualquer fabricante famoso. Mas não bebo e não fumo. Ainda tem as galinhas, os leitões e outras coisas que me mandam para a cabine. O último presente que recebi foi um pônei, que o fazendeiro Válter di Biasi mandou para meu filho Marcelo, de 9 anos, e que foi lá para a nossa chácara em Águas de São Pedro.

Placar- E a rotina de um narrador de futebol?

Fiori- Olha, me cuido bastante e talvez seja esse o meu grande segredo. Se o jogo for à noite, eu procuro almoçar o mais cedo possível, obedecendo a um regime parecido com o de um atleta. Comida leve, porém bem revestida de proteínas. Durmo à tarde umas duas horas e parto para o estádio. Se o jogo é de dia, acordo cedo, como pouco e também não deixo de repousar de forma nenhuma. O problema é a minha rotina diária, pois também sou assessor de imprensa do Rui Silva, secretário de esportes do Estado, escrevo para dois jornais e ainda tenho uma programação intensa no rádio. Sem contra o expediente que sou obrigado a obedecer diariamente dentro da minha sala, recebendo todo tipo de gente e telefonemas ininterruptos de todos os cantos. Os chatos? São raros, mas aparecem. Me lembro de um padre, em Campos do Jordão, que só faltou querer ir ao banheiro comigo. Incrível!

Placar- Você tem falam de vaidoso, de proteger velhinhos e crianças desamparadas através de todo interior, chegando até o Paraná.

Fiori- Devemos isso a um grupo de rapazes aqui da Bandeirantes, o nosso Escrete do Rádio. Formamos um time de futebol e jogamos em tudo o que é lugar. A renda reverte para fundos de instituições de caridade. Acho que já arrecadamos mais de 3 milhões de cruzeiros em 458 partidas. Se eu jogo? Claro. Sou o dono das camisas.

Placar- E o que vem a ser o Cantinho da Saudade?

Fiori- Um programa de lembranças e recordações. Vai ao ar às quintas-feiras, em ondas curtas, e aos domingos, em todas as ondas. É o toque lírico que damos ao lembrar um jogador que já morreu ou que encerrou a carreira. Às vezes, saímos do esporte e falamos de personagens de outras áreas, como da Cacilda Becker, da Isaura Bruno, a que foi a mamãe Dolores na novela O Direito de Nascer. Recebemos cartas de todos os cantos com pedidos e sugestões, algumas querendo saber até da música de fundo que usamos (Bailarina Solitária).

Placar- E como você encerraria esta entrevista?

Fiori- Já está escurecendo? (Fiori olha pela janela e pega um microfone que andava jogado na mesa do estúdio). Então vamos lá: “Boa noite torcida brasileira. A tarde vai morrendo e a noite vem chegando para abraçar carinhosamente a cidade grande”.

Publicado originalmente na “Placar” número 384 em 2 de setembro de 1977

2 comentários:

Alexandre Pereira disse...

Que bacana Matheus. Continue esta seção.

Matheus Trunk disse...

Oi Antonico. Agradeço o elogio. Em breve, mais sobre o grande Fiori. Aguarde.

Matheus Trunk
www.violaosardinhaepao.blogpsot.com