segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Gigantes do jornalismo esportivo: Milton Neves


A MAGIA DO RÁDIO

O mais ouvido plantão esportivo paulista explica seu sucesso, relembra casos saborosos e faz uma declaração de amor à profissão

Pouca gente fora do estado de São Paulo conhece o jornalista Milton Neves. Os ouvintes da Jovem Pan- uma rádio estritamente paulista -, porém, aprenderam a respeitá-lo desde que ele assumiu o plantão esportivo da emissora, em 1982. De lá para cá, ele dinamizou as transmissões dos jogos de futebol. Seu trabalho de retaguarda nos estúdios não se limita apenas à informação dos resultados das partidas de uma rodada.

“Eu já fui torcedor de ficar ouvindo rádio e sei o que o pessoal quer”, explica esse mineiro de Muzambinho, Em 1983, Milton Neves passou a produzir o que são hoje dois dos programas de maior audiência em São Paulo: o Plantão de Domingo, de manhã, e o Terceiro Tempo, levado ao ar logo após cada jogo coberto pela Jovem Pan. Casado, pai de três filhos, 35 anos, Milton se desliga de tudo aos domingos. “Domingo é o meu dia, é o dia do futebol”, entusiasma-se. Chega ao estúdio ás 9 horas e só sai de lá ás 20. Não come nada o tempo inteiro.

O que mais impressiona quem acompanha o seu trabalho é uma incrível memória e a precisão de suas informações. Muita gente não acredita que ele esteja no estúdio ou que não possua um imenso arquivo sobre a mesa. Pois é verdade: ele quase nunca vai ao estádio e não tira história nenhuma de algum computador: elas estão todas em sua cabeça. E tudo começou nos tempos de garoto em Minas, acompanhando o Santos de Pelé pelas ondas curtas, como ele contou ao redator-chefe Mário Sérgio Della Rina. Seu depoimento é uma espécie de declaração de amor à magia do rádio.

PLACAR- Quando teve início essa sua paixão pelo rádio e pelo futebol?

MILTON- Eu tinha 9 anos de idade quando minha tia Antônia me deu um rádio GE de capa de couro marrom, que ela havia comprado nas lojas Mazili, em Muzambinho. A partir daquele dia, nunca mais fui a uma matinê de cinema, não ia a bailes no tempo de rapazinho e até namorava pouco: aos domingos, ninguém me tirava do lado do rádio.

PLACAR- Foi aí que começou a sua carreira?

MILTON- Acho que sim. Eu acompanhava tudo. Ouvia os programas da época- Bola ao Ar e Marcha no Esporte, da Rádio Bandeirantes, era sócio do Clube do Ouvinte, na Rádio Tupi, mandava cartas para todas as emissoras pedindo tabelinhas dos campeonatos...Uma vez recebi um cartão assinado por Geraldo Bretas (comentarista da Rádio Tupi, já falecido) e até fiquei sem dormir. Guardei-o como um troféu, foi uma das maiores alegrias da minha vida.

PLACAR- Como era acompanhar o futebol pelo rádio, naquela época?

MILTON- Era uma coisa incrivelmente romântica. A televisão praticamente não existia e os narradores exageravam na descrição dos lances e na atuação dos jogadores, criando verdadeiras lendas. Lembro-me de um Santos X Corinthians, certa vez, em que o Coutinho marcou três gols numa noite de muita chuva no Pacaembu. O locutor- não tenho muita certeza quem era -, no fim do jogo, dizia que Coutinho tinha atuado com o joelho estourado, que ficou parado a partida inteira, que os outros jogadores estavam todos enlameados, enquanto o centroavante do Santos tinha saído com o uniforme imaculadamente branco e só tocara na bola três vezes – para fazer os 3 X 0 da vitória. Hoje, quando eu me recordo desta história, acho maravilhoso que eu pudesse acreditar num exagero daqueles...(risos)

PLACAR- O rádio chegava a criar manias na gente...

MILTON- É verdade. Eu achava que havia locutor que dava sorte ou azar para meu time. Era uma coisa mágica. Eles criavam expressões maravilhosas: “O zagueiro entrou de forma atabalhoada”. Atabalhoada...olha só que palavra. Só no rádio, mesmo (risos). Eu via – e ainda vejo – um jogo pelo rádio. Pela maneira como o cara estava transmitindo, eu sabia se meu time iria ganhar a partida.

PLACAR- Qual era o locutor que mais o impressionava?

MILTON- Fiori Giglioti, da Bandeirantes, “Cadeia verde e amarela, norte e sul do Brasil”. Certa vez – a primeira que fui a um campo de futebol – viajei com alguns amigos a Ribeirão Preto para ver o Santos contra o Comercial. Um parênteses: o Santos ganhou por 2 X 0 com um gol de pênalti de Pelé e outro de Dorval, de pé esquerdo. Pois bem: quando começou a partida fiquei 10 minutos de costas para o campo, com o rádio colado ao ouvido, olhando como Fiori Giglioti transmitia, da cabine lá em cima de mim.

PLACAR- E quem foi o comentarista que mais o marcou?

MILTON- Sem dúvida, Mauro Pinheiro (Rádio Bandeirantes). Sua precisão, seu rigor na informação eram admiráveis. Tive a honra e o prazer de trabalhar com ele na Jovem Pan um pouco antes de ele morrer. No dia de sua morte, chorei como se tivesse perdido meu pai. Até hoje, quando passo em frente ao cemitério do Araçá no caminho de casa para a Jovem Pan, boto a cabeça para fora do carro e dou um tchau para o Maurão. Tenho certeza de que ele fica satisfeito.

PLACAR- Essa precisão e esse rigor que você via em Mauro Pinheiro hoje estão presentes em seu trabalho, não é verdade?

MILTON- Hoje aplico todas as lições que aprendi com todos aqueles maravilhosos cronistas da década de 60. No fundo, o que faço no rádio é mostrar aquilo que o torcedor gosta de ouvir – porque eu escutava muito rádio e sei o que é gostoso de se ouvir. Falo as coisas que o torcedor gostaria de falar. Pergunto o que eles queriam estar perguntando. Torcedor não gosta de entrevista com cartola nem quer o técnico dando detalhe do esquema tático. O que a gente curte é saber que carro o ídolo tem, em que cidade ele nasceu, se tem filhos, qual o nome da mulher. E torcedor adora histórias do passado – se forem histórias com um pouquinho de lenda, melhor ainda. O futebol não morre por causa disso: são as historinhas antigas que animam o papo de botequim, os tira-teimas, as discussões...

PLACAR- Sua memória é fantástica. Como você consegue se lembrar tão facilmente das coisas do passado?

MILTON- Sempre tive facilidade para guardar informações em minha memória. Como eu era torcedor fanático do Santos, prestava muita atenção nas irradiações das partidas. Eu me lembro da escalação de todos os adversários do Santos nos anos 60. O Grêmio que jogou na Taça Brasil, por exemplo, por exemplo: Arlindo, Altemir, Aírton, Áureo e Ortunho; Cleo e Sérgio Lopes; João Severiano, Paulo Lumumba, Nílton e Vieira. Ou o América de São José do Rio Preto, que subiu para a Primeira Divisão de 1964: Reis, Bertolino, Santo, Tubá e Ambrósio; Mota e Celino; Jota Alves, Cardoso, Sapucaia e Dirceu.

PLACAR- Como você chegou a Jovem Pan?

MILTON- Vim para São Paulo estudar Jornalismo e consegui estágio na rádio para trabalhar como repórter de trânsito. No final do Campeonato Paulista de 1973, me escalaram para ficar fora do Morumbi, orientando os torcedores para que evitassem os congestionamentos perto do estádio. Só que eu não resisti e, quando começou o jogo, me mandei para o campo para ver Pelé contra a Portuguesa. No fim, acabei suspenso por uma semana. Logo depois, me mandaram fazer o plantão esportivo aos domingos.

PLACAR- Como é o trabalho de um plantonista de rádio?

MILTON- Muita gente acha que o plantão é o cocô do cavalo do bandido (risos). Que é o cara de menos status da equipe. Modéstia a parte, eu acho que valorizei esse setor. É uma área com um filão inesgotável: é jornalismo puro, prestação de serviço. Consegui ampliar o meu espaço. Hoje eu entro no ar mais de cinco horas antes do início de um jogo (o Plantão de Domingo começa ás 9h30) e vou até de noite (o Terceiro Tempo acaba às 20 horas).

PLACAR- Você não sonha em ser locutor, repórter ou comentarista?

MILTON- Que nada! Quero continuar plantão e apresentador. É a melhor coisa do mundo. Você já viu como um repórter sofre na cobertura de uma Copa, por exemplo? Se Sócrates levanta de noite para fazer xixi e você não estava atento para dar a notícia, você até perde o emprego. Comigo, não: fico no meu cantinho curtindo tudo. Não há nada melhor que acompanhar uma Copa de longe.

PLACAR- Vamos falar de televisão, ela ajuda ou atrapalha o futebol?

MILTON- Ela já ajudou mais, antigamente. Antes, eu adorava ficar a semana toda esperando a transmissão ao vivo de uma partida do Campeonato Paulista pela Record, nos tempos de Raul Tabajara, Paulo Planet Buarque e Flávio Iazetti. Hoje é uma bagunça de calendário, as grandes redes alteram tabelas por conveniência de seus horários, ninguém sabe quando o jogo vai ser transmitido ao vivo. Os Gols da Rodada também criaram um mau hábito: o torcedor, quando vai ao estádio, pensa que irá ver vinte gols em 90 minutos e muitas vezes sai decepcionado. Eu mesmo, quando vou ao campo, subconscientemente fico esperando o replay do gol – porque estou acostumado aos teipes.

PLACAR- Você quase não vai os estádios. Isso prejudica o seu trabalho?

MILTON- De jeito nenhum. Para começar, eu acabo não conhecendo nenhum jogador pessoalmente. Isso é bom: não me comprometo com ninguém. Depois, o fato de eu não estar lá, no campo, aumenta a minha curiosidade sobre o que aconteceu e acabo perguntando aquilo para os ouvintes – que também seguiram o jogo pelo rádio – gostariam de perguntar.

PLACAR- Qual o jogo inesquecível da sua vida?

MILTON- Santos e Milan, na disputa do Mundial Interclubes de 1963: foi a primeira vez que vi um jogo pela televisão, ao vivo. A partir daquela virada histórica (o Santos perdia por 2 x 0 e virou para 4 x 2) no Maracanã, virei santista fanático. Houve ainda duas outras partidas que me marcaram muito: Santos x Portuguesa, decisão do Campeonato Paulista de 1963 (Santos 3 x 2, na Vila Belmiro), que acompanhei pela televisão, e Santos x São Paulo, final do Campeonato Paulista de 1978 (o Santos ganhou o título na prorrogação), uma das mais emocionantes transmissões da vida do José Silvério (narrador da Jovem Pan).

PLACAR- Qual foi o maior jogador que você não viu jogar?

MILTON- Carlos Alberto Torres. Era o meu maior ídolo. Quando eu ouvia e ainda hoje ouço uma entrevista dele, sei pela entonação de voz se ele está contente, nervoso, de mau humor...

PLACAR- Essa sua capacidade de perceber detalhes faz com que muitos pensem que você está no campo, e não no estúdio, na hora do jogo...

MILTON- Eu presto a máxima atenção na irradiação da partida. Como José Silvério é o mais preciso locutor que já conheci, fica fácil. Então, no fim de um jogo, quando afirmo para um goleiro que ele pulou no canto errado, só estou repetindo o que ouvi durante a partida. É só prestar atenção na transmissão.

PLACAR- Como é seu relacionamento com os ouvintes? Você recebe muitas cartas?

MILTON- Recebo em média dez cartas por semana. Consegui formar uma empatia impressionante com os torcedores porque sou uma espécie de porta-voz deles. Tenho as mesmas manias deles. Quer um exemplo? Outro dia eu disse no ar que só confio em goleiros com nomes compridos. Rodolfo Rodriguez impõe respeito somente pelo nome... As letras da palavra Mazurkiewicz fechavam o gol do Atlético Mineiro.... (risos) As pessoas escutavam isso no rádio e me escrevem, dizendo que é isso mesmo, que elas também têm essas impressões.

PLACAR- Você responde a todas essas cartas?

MILTON- É claro! Nenhuma fica sem resposta. Eu também escrevia para as rádios quando era menino e sei da satisfação em ser atendido por quem a gente gosta. Aliás, faço um apelo para todos os jornalistas esportivos para que nunca se descuidem de sua correspondência. O torcedor se sente gratificado, passa a admirar ainda mais o trabalho do cronista e quem ganha com isso é o próprio futebol. Toda carta, por mais absurda que possa parecer, precisa ser respondida. O torcedor é a razão do ser do futebol.

PLACAR- Como você analisa o futebol que está sendo jogado hoje?

MILTON- Não é coisa de saudosista, mas o futebol de hoje está muito pior do que era antigamente. Não é por falta de bons jogadores. A culpa é dos dirigentes – de clubes e federações. Mandos e desmandos, escândalos e cambalachos. Isso desanima e afasta o torcedor dos estádios. Mas sou otimista: acho que o trabalho do jornalista, feito com informação, crítica e carinho com o seu público pode melhorar isso.

Publicado originalmente na revista Placar, edição 881, em 20 de abril de 1987

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