Cineasta cinéfilo. Esteta da alma
feminina. Fassbinder brasileiro. São diversos termos que a crítica utilizou
para falar sobre a obra de Carlos Reichenbach (1945-2012). O diretor
influenciou diversas gerações de cinéfilos com seus 15 longas-metragens, três
episódios e quatro curtas. Violão, Sardinha e Pão
conversou com Eduardo Aguilar, realizador que trabalhou diretamente com o
diretor como continuísta (em Extremos do
Prazer) e assistente (em Anjos do
Arrabalde, Alma Corsária e Garotas do ABC).
Violão, Sardinha e Pão- Como você conheceu o Carlos Reichenbach?
Eduardo Aguilar- Nos conhecemos em 1982.
Eu vinha fazendo um curso de cinema que era capitaneado pelo Maurício Berú,
realizador argentino que residia em São Paulo. Nesse curso, eu fiz amizade com
um outro aluno chamado Gilson. Queríamos entrar logo no meio cinematográfico.
Ele veio com a ideia da gente ir na Boca do Lixo porque ele tinha ouvido falar que
o Galante (o produtor Roberto Polo Galante) estava começando umas novas
produções. Nisso, nós fomos no escritório do Galante. Ele enrolou a gente, não
estava muito interessado em acampar estagiário. No alto da empresa dele, ele
viu o Carlos Reichenbach atravessando a rua. O Galante falou: “Tá vendo aquele
cabeludo ali? Ele é gente fina. Está começando uma nova produção. Vão falar com
ele”. Eu tinha uma certa referência do Carlão como cineasta. Descemos correndo
as escadas e eu consegui alcançar ele. Conversamos com ele no escritório da
Embrapi (Empresa Brasileira de Produtores Independentes, produtora de Carlão e
outros profissionais de cinema de São Paulo). Ele foi super atencioso e nós
começamos a papear sobre cinema. Sugeriu da gente procurar o Toninho Meliande
que também era sócio da Embrapi. Falando com o Meliande eu tive a minha
primeira oportunidade profissional como estagiário no filme O Sol Vermelho, com o cantor Amado
Batista.
VSP- Como
você trabalhou pela primeira vez com o Carlão?
EA- Continuamos nos encontrando na Boca. Fomos criando uma verdadeira amizade. A gente ficava indo nas
salas de cinema do centro, vendo quais seriam os próximos filmes que iam passar
na cidade. A gente fazia um circuito que passava pelo Cine Ouro,
Art Palácio, Olido, Metro, Marabá. Nisso, ele me chamou pra ser continuísta no Extremos do Prazer. Na Embrapi, todos os
filmes eram realizados com um orçamento bem pequeno. Esse longa tinha um
roteiro simples e foi feito com poucos atores numa única locação. O Carlão era
muito econômico, sempre criterioso pra usar o negativo. Trabalhávamos com um
orçamento bastante reduzido.
VSP- Nesse
primeiro trabalho com ele, você percebia o trabalho autoral dele?
EA= Nesse filme mesmo, ele coloca várias
citações metalinguísticas. Tem uma cena em que o personagem fala que o
importante é mostrar o corpo pra falar da alma.
Na mesma cena, o personagem está olhando pra um espelho que está
estrategicamente colocado numa coluna. Aí no espelho aparece o Carlão segurando
a câmera. Uma coisa que não se fazia no cinema da Boca.
VSP- Como
era ele no set?
EA- Ele sempre foi uma pessoa muito
generosa. Fazia isso sem ser vaidoso, era algo espontâneo nele. O Reichenbach chegava ao extremo de ser
generoso em relação ao processo de criação. Ele compartilhava o mecanismo que
ele tinha de criar, que era muito de improvisação, espontâneo. Uma coisa que eu
sempre admirei nele foi essa capacidade de improvisar dentro de uma
circunstância limitadora. Tem grandes diretores do cinema americano que não
conseguem isso. Nisso, ele procurava seguir muito aqueles realizadores do
cinema B como Samuel Fuller, Roger Corman, Nicholas Ray, Budd Boetticher.
VSP- Alma Corsária e Garotas do
ABC foram filmes com maiores orçamentos. Você sentiu algo diferente nele ao
fazer esses trabalhos?
EA- Alma
Corsária
era um filme bem pessoal dele. É um trabalho que mostra a relação profunda de
amizade entre duas pessoas. Já o Garotas
foi planejado originalmente em cinco longas-metragens. Mas não conseguimos
verba para isso. Então, ele mesclou parte de todas as histórias numa única
produção. Agora ele sempre trabalhou com o mesmo entusiasmo. Seja um filme com
boas condições ou nenhuma.
VSP- O
que você achou dessa carta que a ministra Ana de Holanda escreveu sobre o
Carlão?
EA- Achei de um preconceito inacreditável.
Mais que o preconceito, uma ignorância que incomoda vindo de uma ministra. Ela
vinha fazendo vários comentários, várias ações equivocadas. Mas essa nota de
pesar do Carlão foi um desastre. Esse preconceito que ela demonstrou eu sinto
em muita gente do cinema de São Paulo que certamente não admitiria
publicamente. Todos veem técnicos oriundos da Boca com desdém. O preconceito
está calcado na ignorância. Mas no caso dela demonstrou burrice, falta de
conhecimento do que está falando.
VSP- Na
sua opinião, qual é o principal legado que o Carlão deixa pro cinema
brasileiro?
EA- Ele vivia a vida. Não era só uma coisa
teórica intelectual que pega o que ouviu falar, toma com verniz e entrega. Eu
andava pela cidade com o Carlão pelos lugares mais ferrados. Então, a gente via
o morador de rua, não é uma coisa de quem mora numa área nobre da cidade e fica
ali sentado no seu apartamento, lê o livro, vê televisão e nunca andou pelo
centro. Se você fala pra uma pessoa dessas: “Vamos andar no centro”, o cara
fica com medo achando que vai ser estuprado, morto. Na periferia, então, parece
que é o fim do mundo. O Carlão andava nesses lugares e tinha contato com as
pessoas. Não era apenas um intelectual acadêmico que fica sentado na sua sala.
Ele mesclava a erudição com o popular, com a vida real.
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