sexta-feira, 31 de agosto de 2012

“Ele conseguia improvisar numa circunstância limitadora”



Cineasta cinéfilo. Esteta da alma feminina. Fassbinder brasileiro. São diversos termos que a crítica utilizou para falar sobre a obra de Carlos Reichenbach (1945-2012). O diretor influenciou diversas gerações de cinéfilos com seus 15 longas-metragens, três episódios e quatro curtas. Violão, Sardinha e Pão conversou com Eduardo Aguilar, realizador que trabalhou diretamente com o diretor como continuísta (em Extremos do Prazer) e assistente (em Anjos do Arrabalde, Alma Corsária e Garotas do ABC).

Violão, Sardinha e Pão- Como você conheceu o Carlos Reichenbach?

Eduardo Aguilar- Nos conhecemos em 1982. Eu vinha fazendo um curso de cinema que era capitaneado pelo Maurício Berú, realizador argentino que residia em São Paulo. Nesse curso, eu fiz amizade com um outro aluno chamado Gilson. Queríamos entrar logo no meio cinematográfico. Ele veio com a ideia da gente ir na Boca do Lixo porque ele tinha ouvido falar que o Galante (o produtor Roberto Polo Galante) estava começando umas novas produções. Nisso, nós fomos no escritório do Galante. Ele enrolou a gente, não estava muito interessado em acampar estagiário. No alto da empresa dele, ele viu o Carlos Reichenbach atravessando a rua. O Galante falou: “Tá vendo aquele cabeludo ali? Ele é gente fina. Está começando uma nova produção. Vão falar com ele”. Eu tinha uma certa referência do Carlão como cineasta. Descemos correndo as escadas e eu consegui alcançar ele. Conversamos com ele no escritório da Embrapi (Empresa Brasileira de Produtores Independentes, produtora de Carlão e outros profissionais de cinema de São Paulo). Ele foi super atencioso e nós começamos a papear sobre cinema. Sugeriu da gente procurar o Toninho Meliande que também era sócio da Embrapi. Falando com o Meliande eu tive a minha primeira oportunidade profissional como estagiário no filme O Sol Vermelho, com o cantor Amado Batista.

VSP- Como você trabalhou pela primeira vez com o Carlão?

EA- Continuamos nos encontrando na Boca. Fomos criando uma verdadeira amizade. A gente ficava indo nas salas de cinema do centro, vendo quais seriam os próximos filmes que iam passar na cidade. A gente fazia um circuito que passava pelo Cine Ouro, Art Palácio, Olido, Metro, Marabá. Nisso, ele me chamou pra ser continuísta no Extremos do Prazer. Na Embrapi, todos os filmes eram realizados com um orçamento bem pequeno. Esse longa tinha um roteiro simples e foi feito com poucos atores numa única locação. O Carlão era muito econômico, sempre criterioso pra usar o negativo. Trabalhávamos com um orçamento bastante reduzido.

VSP- Nesse primeiro trabalho com ele, você percebia o trabalho autoral dele?

EA= Nesse filme mesmo, ele coloca várias citações metalinguísticas. Tem uma cena em que o personagem fala que o importante é mostrar o corpo pra falar da alma.  Na mesma cena, o personagem está olhando pra um espelho que está estrategicamente colocado numa coluna. Aí no espelho aparece o Carlão segurando a câmera. Uma coisa que não se fazia no cinema da Boca.

VSP- Como era ele no set?

EA- Ele sempre foi uma pessoa muito generosa. Fazia isso sem ser vaidoso, era algo espontâneo nele.  O Reichenbach chegava ao extremo de ser generoso em relação ao processo de criação. Ele compartilhava o mecanismo que ele tinha de criar, que era muito de improvisação, espontâneo. Uma coisa que eu sempre admirei nele foi essa capacidade de improvisar dentro de uma circunstância limitadora. Tem grandes diretores do cinema americano que não conseguem isso. Nisso, ele procurava seguir muito aqueles realizadores do cinema B como Samuel Fuller, Roger Corman, Nicholas Ray, Budd Boetticher.

VSP- Alma Corsária e Garotas do ABC foram filmes com maiores orçamentos. Você sentiu algo diferente nele ao fazer esses trabalhos?

EA- Alma Corsária era um filme bem pessoal dele. É um trabalho que mostra a relação profunda de amizade entre duas pessoas. Já o Garotas foi planejado originalmente em cinco longas-metragens. Mas não conseguimos verba para isso. Então, ele mesclou parte de todas as histórias numa única produção. Agora ele sempre trabalhou com o mesmo entusiasmo. Seja um filme com boas condições ou nenhuma.

VSP- O que você achou dessa carta que a ministra Ana de Holanda escreveu sobre o Carlão?

EA- Achei de um preconceito inacreditável. Mais que o preconceito, uma ignorância que incomoda vindo de uma ministra. Ela vinha fazendo vários comentários, várias ações equivocadas. Mas essa nota de pesar do Carlão foi um desastre. Esse preconceito que ela demonstrou eu sinto em muita gente do cinema de São Paulo que certamente não admitiria publicamente. Todos veem técnicos oriundos da Boca com desdém. O preconceito está calcado na ignorância. Mas no caso dela demonstrou burrice, falta de conhecimento do que está falando.

VSP- Na sua opinião, qual é o principal legado que o Carlão deixa pro cinema brasileiro?

EA- Ele vivia a vida. Não era só uma coisa teórica intelectual que pega o que ouviu falar, toma com verniz e entrega. Eu andava pela cidade com o Carlão pelos lugares mais ferrados. Então, a gente via o morador de rua, não é uma coisa de quem mora numa área nobre da cidade e fica ali sentado no seu apartamento, lê o livro, vê televisão e nunca andou pelo centro. Se você fala pra uma pessoa dessas: “Vamos andar no centro”, o cara fica com medo achando que vai ser estuprado, morto. Na periferia, então, parece que é o fim do mundo. O Carlão andava nesses lugares e tinha contato com as pessoas. Não era apenas um intelectual acadêmico que fica sentado na sua sala. Ele mesclava a erudição com o popular, com a vida real.

Nenhum comentário: