quinta-feira, 4 de outubro de 2012

CHAGUINHA


Estivemos em campo de filmagens de O Consolador de Viúvas (título provisório), filme dirigido por J. Avelar, produção de Augusto de Cervantes.

Num intervalo dos trabalhos, vimos todos os atores reunidos numa “rodinha”, soltando gostosas gargalhadas. Um minuto depois, saiu do grupinho um rapaz descalço, calças largas, camisa desabotoada e sem arrumação. Não nos conhecíamos, mas ele olhou rindo pra mim e avisou:

- Olha o cachorro!

Olhei rápido, e vi realmente um cachorro enorme, mas...dormindo!

- Não era para se assustar. Ele está dormindo...

Risadas estouraram e eu me vi atrapalhado. O rapaz chegou-se a mim, também desopilando, me pegou pelo ombro e ri também.

- Eu trabalho em revista, e...

- Prazer! Eu trabalho em teatro, cinema, televisão, e também já fui de circo. Estou levando vantagem...

As brincadeiras de Chaguinha eram puras e espontâneas. Daí nossa primeira pergunta:

- O humorista tem que ter improvisação, ou só com um texto já dá conta do recado?

Tomou ares de sério. Ele sabia até onde podia brincar.

- É uma condição indispensável, a improvisação. Um humorista de texto não pode sobreviver. A improvisação é imprescindível porque a piada tem que ser solta, espontânea. E para cada tipo de público ao qual esse artista se dirige, existe uma forma diferente de contar as coisas. Ele tem que saber de tudo isso...

- E a cara ajuda?

- Ah, humorista tem que ter “cara”. O tipo físico também é fundamental. Veja eu: 1,44m de altura, 70 quilos, barrigudinho, perna torta...só o meu tipo já não é uma piada?

- E essa roupa espalhafatosa que você está usando?

- É de cena. Sou um mordomo aloprado em O Consolador de Viúvas. Um tipo engraçadíssimo, que gosto muito...

Chaguinha, ou José Gabriel Chagas, está na carreira artística já cerca de 30 anos. Começou em circo, como “escada” (ator que coadjuva o principal – geralmente o “palhaço” – e trabalha na preparação das piadas). Viajou muito pelo Brasil, e com isso ganhou muita vivência.

- Com quem já trabalhou, no seu tempo de circo?

Ele fala com saudades.

- Eta tempinho bom...lá, sim, a gente tinha amigos...trabalhei com muita gente, mas se você quer que eu diga os mais conhecidos do público vamos lá: Arrelia, Pimentinha, Dedé Santana, Dino Santana...

Quando a televisão apareceu, o circo se inibiu. Atualmente, a não ser esporadicamente, não se vê mais as tradicionais “casas de lona”. Parece que o circo é a modalidade de arte condenada à extinção.

- Foi a concorrência da televisão que abateu o circo?

- Não, não foi exatamente concorrência. Foi mais que isso: a televisão tirou o artista do circo, e trouxe para si. Não sei se você sabe, mas o verdadeiro artista é, invariavelmente, aquele que teve suas origens no circo. Nasceu com arte no sangue. Veja bem: ele não teve nenhuma escola, nenhuma oportunidade de angarias conhecimentos artísticos fora de seu meio, por absoluta falta de tempo. É um idealista que vive 24 horas por dia pela sua profissão, entregue de corpo e alma. Só ganhou o conhecimento empírico. E se um dia ele subiu num picadeiro e agradou a um público, está realizado, graças a si mesmo...

Se o artista de circo optou pela televisão, foi por várias razões. Talvez as mais fortes tenham sido o dinheiro maior e mais seguro que passaria a receber, e o acomodamento, a não necessidade de aventura em viagens e excursões, indefinidamente.

- Você foi mais um que aderiu a televisão?

- No meu tempo de circo, eu era apenas “escada”. Como vi que o mercado de trabalho estava diminuindo, tentei, mesmo como ator de segundo plano, me infiltrar na televisão.

A consciência profissional de Chaguinha fê-lo aprimorar-se como ator em uma escola de arte dramática, na época importante, dirigida por Vida Alves. Com esse curso, e com a bagagem que já tinha, o cômico num instante estava na TV.

- E conseguiu se destacar?

- Não, fui infeliz. Primeiro, por causa de eu não ser tão conhecido como os principais homens que começaram, praticamente, a televisão no Brasil: Lima Duarte, Carlos Zara, Hamilton Fernandes, Percy Ayres. Depois, pelo fato de nunca ser escalado para fazer comédia, que era o que eu queria.  Decepcionei-me um pouco.

- Aí, abandonou definitivamente a televisão?

- Não posso dizer que abandonei. “Tirei umas férias”. Foi assim: eu estava num impasse quando recebi a visita do falecido Sérgio Cardoso em minha casa me convidando para substituir o Fúlvio Stefanini na peça de teatro O Soldado Tanaka. Não tinha nada a ver com o humorismo, o papel (um advogado de defesa), mas topei. No elenco, ainda estava o Tarcísio Meira.

- Essa peça o entusiasmou e você partiu só para o teatro?

- Não foi bem assim: o próprio Sérgio Cardoso me aconselhou a tentar shows em boate, já que isso era o meu forte. Daí passei para a famosa – na época – “O Canto do Galo”, e representei muito tempo quadros humorísticos, ao lado do Simplício.

Voltou para a televisão Record, onde ficou como contratado entre 1969 e 1972. Ali participou, entre outros, dos programas Praça da Alegria e Hotel do Sossego, junto com o falecido Manoel da Nóbrega.

- Hoje, firmado como humorista acha que daria conta do recado se fosse preciso representar qualquer outro estilo?

- O ator brasileiro por si só já é versátil. Eu daria conta, sim. Num dramalhão, principalmente. Mas também eu daria muito trabalho ao diretor, pois – como todos os outros humoristas veteranos – tenho vícios próprios do estilo...

Em cinema ainda não fez nenhum trabalho que pudesse considerar de grande importância. Acredita que seu papel em O Consolador de Viúvas possa vir a ser, mas só o dirá quando ver o resultado na tela.

Por volta de 1962, foi convidado por Dionísio de Azevedo para fazer uma “pontinha” no filme Lampião, o Rei do Cangaço, de Carlos Coimbra. Mas como as filmagens seriam em Recife, e Chaguinha estava impossibilitado de sair de São Paulo, não aceitou. Semanas mais tarde foi procurado pelo mesmo Dionísio, que lhe explicou que faltaram alguns planos do filme, e seriam feitos em Jundiaí. E queriam Chaguinha no elenco. Já que a locação, agora, era perto de São Paulo, ele foi e assim teve sua estreia no cinema.

Quase dez anos depois, quando representava no Teatro Natal, viu uma equipe de filmagens trabalhando na avenida São João. Reconheceram-no e o convidaram a fazer outra “pontinha”. Ele fez e agradou (papel de um homossexual festivo- contou uma piada própria). O filme era Maridos Em Férias, de Konstatin Ktackzenko, e o humorista esteve ao lado de Mário Benvenutti.

Em 1973 teve a oportunidade para fazer o que seria seu melhor papel no cinema: um mudinho, groon de hotel, no filme A Virgem e o Machão (dirigido pelo mesmo J. Avelar, do atual Consolador de Viúvas). Frustrou-se, porém, quando viu toda a sua participação – onde tinha se entregue com todo empenho, cortada pela Censura.

Aí está alguma coisa do nosso bom Chaguinha, o moço simples, o moço modesto, mas idealista, forte, confiante, que espera melhores dias para as artes no Brasil, e para o próprio ator.

J. Avelar o chamou para entrar na próxima tomada de cena.

Como que ligado por um botão, Chaguinha deixou seu comportamento circunspecto, e o vimos encarnando a personalidade do engraçado mordomo. Levantou-se, avisando:

- Cuidado com o cachorro. Ele pode acordar...

Saiu bamboleando as pernas tortas, e rindo matreiramente.

Publicado originalmente na revista Cinema em Close Up, Mek Editores. Este blog espera que o nome de Minami Keizi (1945-2009) e demais colaboradores da Cinema em Close Up sejam tidos como gigantes do cinema brasileiro.

Um comentário:

Unknown disse...

Entre tantas outras historias fantásticas da vida deste homem e ator extraordinário.
Chaguinha nos deixou ano passado em 03/12/2014