sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Tempo de iniciação II: Osny



Por Hiroito Moraes Joanides


Bocage, aquele velho conhecido nosso dos tempos de meninos-moços, daquelas estórias com as filhas do rei, onde surgia com as mais inverossímeis, ridículas e maquiavélicas tramoias para e até conseguir “aquilo” das ditas princesas, é o personagem que mais me lembra o Osny.

As embrulhadas que o cérebro de Osny bolava, visando tirar dinheiro, mansamente, do próximo (e do distante também), eram obras-primas do logro e da artimanha. Profundo conhecedor da alma humana, psicólogo que era por natureza, bastava-lhe a troca de poucas palavras com uma pessoa, para que ficasse sabendo, com exatidão, qual a faceta daquela personalidade seria mais vulnerável à aplicação de um logro, qual o tipo de golpe que melhor se aplicaria ao caso, bem como a avaliação instantânea do quanto poderia ser-lhe tomado. Que era unicamente nesse aspecto que os seres humanos lhe interessavam. Com isso, não raramente na vida sofria o Osny atentados de morte (um dos quais de minha parte e que estarei narrando ao final) ou espancamentos violentos, dos quais sempre saía, anda que por vezes aos pedaços, para a consumação de novos golpes, novas embrulhadas.

De uma feita, foi o Malaguti quem o levou – depois de ter sido por ele “passado para trás”, num negócio qualquer – a um “passeio”, alta madrugada, pelas matas de periferia. Descrever o Malaguti faz-se meio difícil. Que ele não era humano, isso fica fora de qualquer dúvida. Valente, mas de uma valentia parida pela demência, terrivelmente sanguinário e perverso, viveu toda a vida extorquindo ou assaltando os demais integrantes do “submundo”. Fraco de corpo, nunca usou um revólver, sendo a faca e a navalha as suas armas. Mas todos aqueles que por estarem de revólver na mão chegaram a supor que poderiam facilmente vencê-lo, desenganaram-se a seguir. Nenhum deles conseguiu Pará-lo antes que lhes atolasse peito adentro a faca que empunhava, ou que lhes retalhasse aos golpes da navalha que brandia. Só depois disso é que, se baleado houvesse sido, se dignava a parar ou cair. Antes, nunca. Foi, do “submundo” paulistano de então. Morreu baleado (pelas costas, é claro), em Caxias, no Rio de Janeiro – para onde fora, após ter fugido da Casa de Custódia de Taubaté - quando assaltava, sozinho, uma roda de jogo, formada exclusivamente por delinquentes, dos mais valentes. E, nesse dia, diz-se, portas e janelas, no Inferno, foram trancadas e trameladas, antes que tão indesejável novo habitante ali fosse bater. Mas creio que Malaguti lá chegando, sem bater à porta, foi logo arrombando-a a socos e pontapés.

Nem a essa “coisa”, a essa síntese de um monstro, deixou o Osny de ludibriar. Custou-lhe caro, porém, pois, do “passeio” a que foi levado, voltou em estado que eufemisticamente poderia ser chamado de “grave”. Para levar a efeito, é lógico, novos e formidáveis ludíbrios.

Em outra ocasião, foram os portugueses, donos do bar mais “quente” da Boca, na esquina da Gusmões com a Triunfo, que, creio que cansados de se verem engrupidos o Osny, resolveram de vez acabar com aquela “máquina humana de embrulhar o próximo”.

Assim, um belo dia, quando ainda no furor do mais recente logro, ao se depararem com a descarada presença do Osny, junto ao balcão, pedindo uma bebida, que certamente pagaria com o dinheiro que dias antes lhes houvera tomado, não tiveram dúvidas ou vacilações. Baixando rapidamente as portas do estabelecimento, com aquelas compridas barras de ferro, próprias a isso, passaram a delas se valer para massacrá-lo. Tiraram-no dali, misteriosamente, ainda com vida, só que em estado “pastoso”. Afora as costelas quebradas e outros “pequenos” ferimentos que tais, tinha os dois braços literalmente esmigalhados. Os ossos dos braços, por se apresentarem inconsertáveis, através de meia-dúzia de espaçadas e complicadas operações, foram sendo substituídos por tubos, placas e parafusos de metal. O conserto, ao todo, estendeu-se por mais de um ano, permanecendo, assim, durante todo esse tempo, com os dois membros engessados, desde os nós dos dedos às articulações do ombro. Creiam-se, talvez devido à inatividade física, foi esse um dos seus períodos mais férteis na criação vigarística.

Não obstante a imoralidade intrínseca à minha condição de delinquente, ou talvez por isso mesmo, não sei, fui sempre um tipo estupidificado pelo senso de lealdade. Parece que na transformação por que houve que passar o meu condicionamento moral (familiar-religioso), no seu processo de ajustamento às condições anômalas do meio criminal, o enraizado preceito de respeito ao próximo, e por extensão aos seus bens, encurtou-se dentro da minha idiossincrasia, passando a vigorar apenas em relação àqueles a quem preso por um qualquer laço afetivo. Limitados assim a um campo de manifestação tão restrito, os meus sentimentos de solidariedade e probidade se sublimaram na razão direta da afetividade particular de cada caso. Em outras palavras, embora não hesitasse em faltar à honestidade, em detrimento direto ou indireto, de um ou vários de meus concidadãos, seria, mesmo dentro do crime, virtualmente incapaz de trair ou fraudar alguém a quem estivesse unido por qualquer laço afetivo. (E não vá se vislumbrar aqui mostras de jactância, pois estou a citar essa minha faceta muito mais como aleijão que como virtude).

Já com o Osny, tudo isso funcionava exatamente ao contrário. Sendo para ele um dever de cada um para consigo mesmo o burlar o próximo, em proveito próprio, sempre que possível, e em sendo as pessoas de nossas relações, as mais amigas, as que se apresentam como mais fáceis de virem a ser ludibriadas; no círculo de suas relações é que usualmente buscava as vítimas do seu dever. Esse estranho “senso de dever”, porém, diga-se a bem da verdade, não possuía nele um caráter unilateral. Isso não. Fosse ele o chutado num negócio qualquer, e sua reação, única, seria de maior admiração e respeito, por que houvesse conseguido ludibriá-lo.

Tão antagônicos modos de ser e sentir não impediram que por vários anos permanecêssemos tão ligados um ao outro. De parte dele, a aconselhar essa ligação, havia, acima de tudo, o interesse, o bom negócio que se lhe representava em ser o meu sócio, ou meu lugar-tenente, pois que, nessa qualidade, passava a usufruir de um respeito que absolutamente não gozava, por si só, no círculo do “submundo”. Mas, afora o lado interesseiro da coisa, sei que sentia por mim uma ponta de afeito – isso lá à moda dele. De minha parte, penso que o um pouco de cultura que ele possuía, e ainda a sua admirável inteligência tenham sido fatores que me predispuseram à sua amizade, à nossa camaradagem.

Essa nossa camaradagem, porém, nunca foi aquele “manso lago azul, sem ondas, nem espumas...” Por meia-dúzia de vezes na vida, apesar de todos os meus cuidados, conseguiu o Osny ludibriar-me em transações de monta. E, em quase todas essas oportunidades, para ressarcir-me dos prejuízos, tive simplesmente que...assaltá-lo.

Certa ocasião, depois de nos “apropriarmos” de um valioso lote de joias, que um ladrãozinho intentava “intrujar” na Boca, deixando-me a ver navios, o Osny sumiu por vários meses, levando consigo, claro está, a minha parte das joias. Foi para Londrina, em viagem de recreação, de onde voltou nada tendo ele do momento que lhe pudesse tomar por conta do “chute” que me dera, arquivei o episódio na pasta de “casos pendentes”. Passado uns tempos, em noite de sorte numa roda de jogo, o Osny praticamente “limpou” os parceiros de crepe, levando considerável quantia em dinheiro. A notícia correu a Boca, chegando aos meus ouvidos lá pela madrugada; pelo que, logo aos primeiros raios da aurora, ei-me adentrando (não muito placidamente) a porta do quarto de hotel no qual o meu sócio, depois de correr as boates festejando a boa-sorte, fora se recolher na companhia da mais bela “dama da noite” que encontrara. Armas na mão, expliquei então a um Osny meio bêbado e de cuecas, que do dinheiro que possuísse eu iria levar a quantia de “x”, que era em quanto orçara a minha parte das joias, ainda que para isso houvesse que dar-lhe uns tiros. A importância eu levaria de qualquer forma, ficando a seu critério apenas a necessidade ou não dos tiros. Sabidamente dispensou-se dos tiros.

Era assim ou mais ou menos assim, que transcorria a nossa “camaradagem” através os anos, até que em 1963, valendo-me da oportunidade que me deu, com o armar-se de uma navalha para enfrentar-me, desfechei os tiros, que desde há muito tempo, por amplo merecimento, lhe estavam destinados. Mas essa história virá a seu tempo, como já disse, dentro da ordem cronológica dos acontecimentos.  

Trecho de Boca do Lixo (1977), publicado originalmente em por Hiroito de Moraes Joanides (1936-1992), um dos grandes bandidos da história de São Paulo cuja trajetória está sendo retratada no longa-metragem Boca.

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