Por Hiroito Moraes
Joanides
Bocage, aquele velho
conhecido nosso dos tempos de meninos-moços, daquelas estórias com as filhas do
rei, onde surgia com as mais inverossímeis, ridículas e maquiavélicas tramoias
para e até conseguir “aquilo” das ditas princesas, é o personagem que mais me
lembra o Osny.
As embrulhadas que o
cérebro de Osny bolava, visando tirar dinheiro, mansamente, do próximo (e do
distante também), eram obras-primas do logro e da artimanha. Profundo
conhecedor da alma humana, psicólogo que era por natureza, bastava-lhe a troca
de poucas palavras com uma pessoa, para que ficasse sabendo, com exatidão, qual
a faceta daquela personalidade seria mais vulnerável à aplicação de um logro,
qual o tipo de golpe que melhor se aplicaria ao caso, bem como a avaliação
instantânea do quanto poderia ser-lhe tomado. Que era unicamente nesse aspecto
que os seres humanos lhe interessavam. Com isso, não raramente na vida sofria o
Osny atentados de morte (um dos quais de minha parte e que estarei narrando ao
final) ou espancamentos violentos, dos quais sempre saía, anda que por vezes
aos pedaços, para a consumação de novos golpes, novas embrulhadas.
De uma feita, foi o
Malaguti quem o levou – depois de ter sido por ele “passado para trás”, num
negócio qualquer – a um “passeio”, alta madrugada, pelas matas de periferia.
Descrever o Malaguti faz-se meio difícil. Que ele não era humano, isso fica
fora de qualquer dúvida. Valente, mas de uma valentia parida pela demência,
terrivelmente sanguinário e perverso, viveu toda a vida extorquindo ou
assaltando os demais integrantes do “submundo”. Fraco de corpo, nunca usou um
revólver, sendo a faca e a navalha as suas armas. Mas todos aqueles que por
estarem de revólver na mão chegaram a supor que poderiam facilmente vencê-lo,
desenganaram-se a seguir. Nenhum deles conseguiu Pará-lo antes que lhes
atolasse peito adentro a faca que empunhava, ou que lhes retalhasse aos golpes
da navalha que brandia. Só depois disso é que, se baleado houvesse sido, se
dignava a parar ou cair. Antes, nunca. Foi, do “submundo” paulistano de então.
Morreu baleado (pelas costas, é claro), em Caxias, no Rio de Janeiro – para
onde fora, após ter fugido da Casa de Custódia de Taubaté - quando assaltava,
sozinho, uma roda de jogo, formada exclusivamente por delinquentes, dos mais
valentes. E, nesse dia, diz-se, portas e janelas, no Inferno, foram trancadas e
trameladas, antes que tão indesejável novo habitante ali fosse bater. Mas creio
que Malaguti lá chegando, sem bater à porta, foi logo arrombando-a a socos e
pontapés.
Nem a essa “coisa”, a
essa síntese de um monstro, deixou o Osny de ludibriar. Custou-lhe caro, porém,
pois, do “passeio” a que foi levado, voltou em estado que eufemisticamente
poderia ser chamado de “grave”. Para levar a efeito, é lógico, novos e
formidáveis ludíbrios.
Em outra ocasião, foram
os portugueses, donos do bar mais “quente” da Boca, na esquina da Gusmões com a
Triunfo, que, creio que cansados de se verem engrupidos o Osny, resolveram de
vez acabar com aquela “máquina humana de embrulhar o próximo”.
Assim, um belo dia,
quando ainda no furor do mais recente logro, ao se depararem com a descarada
presença do Osny, junto ao balcão, pedindo uma bebida, que certamente pagaria
com o dinheiro que dias antes lhes houvera tomado, não tiveram dúvidas ou
vacilações. Baixando rapidamente as portas do estabelecimento, com aquelas
compridas barras de ferro, próprias a isso, passaram a delas se valer para
massacrá-lo. Tiraram-no dali, misteriosamente, ainda com vida, só que em estado
“pastoso”. Afora as costelas quebradas e outros “pequenos” ferimentos que tais,
tinha os dois braços literalmente esmigalhados. Os ossos dos braços, por se
apresentarem inconsertáveis, através de meia-dúzia de espaçadas e complicadas
operações, foram sendo substituídos por tubos, placas e parafusos de metal. O
conserto, ao todo, estendeu-se por mais de um ano, permanecendo, assim, durante
todo esse tempo, com os dois membros engessados, desde os nós dos dedos às
articulações do ombro. Creiam-se, talvez devido à inatividade física, foi esse
um dos seus períodos mais férteis na criação vigarística.
Não obstante a
imoralidade intrínseca à minha condição de delinquente, ou talvez por isso
mesmo, não sei, fui sempre um tipo estupidificado pelo senso de lealdade.
Parece que na transformação por que houve que passar o meu condicionamento
moral (familiar-religioso), no seu processo de ajustamento às condições
anômalas do meio criminal, o enraizado preceito de respeito ao próximo, e por
extensão aos seus bens, encurtou-se dentro da minha idiossincrasia, passando a
vigorar apenas em relação àqueles a quem preso por um qualquer laço afetivo.
Limitados assim a um campo de manifestação tão restrito, os meus sentimentos de
solidariedade e probidade se sublimaram na razão direta da afetividade
particular de cada caso. Em outras palavras, embora não hesitasse em faltar à
honestidade, em detrimento direto ou indireto, de um ou vários de meus
concidadãos, seria, mesmo dentro do crime, virtualmente incapaz de trair ou
fraudar alguém a quem estivesse unido por qualquer laço afetivo. (E não vá se
vislumbrar aqui mostras de jactância, pois estou a citar essa minha faceta
muito mais como aleijão que como virtude).
Já com o Osny, tudo
isso funcionava exatamente ao contrário. Sendo para ele um dever de cada um
para consigo mesmo o burlar o próximo, em proveito próprio, sempre que possível,
e em sendo as pessoas de nossas relações, as mais amigas, as que se apresentam
como mais fáceis de virem a ser ludibriadas; no círculo de suas relações é que
usualmente buscava as vítimas do seu dever. Esse estranho “senso de dever”,
porém, diga-se a bem da verdade, não possuía nele um caráter unilateral. Isso
não. Fosse ele o chutado num negócio qualquer, e sua reação, única, seria de
maior admiração e respeito, por que houvesse conseguido ludibriá-lo.
Tão antagônicos modos
de ser e sentir não impediram que por vários anos permanecêssemos tão ligados
um ao outro. De parte dele, a aconselhar essa ligação, havia, acima de tudo, o
interesse, o bom negócio que se lhe representava em ser o meu sócio, ou meu
lugar-tenente, pois que, nessa qualidade, passava a usufruir de um respeito que
absolutamente não gozava, por si só, no círculo do “submundo”. Mas, afora o
lado interesseiro da coisa, sei que sentia por mim uma ponta de afeito – isso
lá à moda dele. De minha parte, penso que o um pouco de cultura que ele
possuía, e ainda a sua admirável inteligência tenham sido fatores que me
predispuseram à sua amizade, à nossa camaradagem.
Essa nossa camaradagem, porém, nunca foi aquele “manso lago azul, sem ondas, nem espumas...” Por meia-dúzia de vezes na vida, apesar de todos os meus cuidados, conseguiu o Osny ludibriar-me em transações de monta. E, em quase todas essas oportunidades, para ressarcir-me dos prejuízos, tive simplesmente que...assaltá-lo.
Certa ocasião, depois
de nos “apropriarmos” de um valioso lote de joias, que um ladrãozinho intentava
“intrujar” na Boca, deixando-me a ver navios, o Osny sumiu por vários meses,
levando consigo, claro está, a minha parte das joias. Foi para Londrina, em
viagem de recreação, de onde voltou nada tendo ele do momento que lhe pudesse
tomar por conta do “chute” que me dera, arquivei o episódio na pasta de “casos
pendentes”. Passado uns tempos, em noite de sorte numa roda de jogo, o Osny
praticamente “limpou” os parceiros de crepe, levando considerável quantia em
dinheiro. A notícia correu a Boca, chegando aos meus ouvidos lá pela madrugada;
pelo que, logo aos primeiros raios da aurora, ei-me adentrando (não muito
placidamente) a porta do quarto de hotel no qual o meu sócio, depois de correr
as boates festejando a boa-sorte, fora se recolher na companhia da mais bela “dama
da noite” que encontrara. Armas na mão, expliquei então a um Osny meio bêbado e
de cuecas, que do dinheiro que possuísse eu iria levar a quantia de “x”, que
era em quanto orçara a minha parte das joias, ainda que para isso houvesse que
dar-lhe uns tiros. A importância eu levaria de qualquer forma, ficando a seu
critério apenas a necessidade ou não dos tiros. Sabidamente dispensou-se dos
tiros.
Era assim ou mais ou
menos assim, que transcorria a nossa “camaradagem” através os anos, até que em
1963, valendo-me da oportunidade que me deu, com o armar-se de uma navalha para
enfrentar-me, desfechei os tiros, que desde há muito tempo, por amplo
merecimento, lhe estavam destinados. Mas essa história virá a seu tempo, como
já disse, dentro da ordem cronológica dos acontecimentos.
Trecho
de Boca do Lixo (1977), publicado originalmente em por Hiroito de Moraes
Joanides (1936-1992), um dos grandes bandidos da história de São Paulo cuja
trajetória está sendo retratada no longa-metragem Boca.
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