sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Luchetti e Mojica


Por André Barcinski e Ivan Finotti


Em abril de 1966, uma carta de Sérgio Lima, diretor da Cinemateca Brasileira, chegou à casa de seu amigo Rubens Francisco Luchetti, em Ribeirão Preto. Lima havia sido apresentado a Mojica e, sabendo do interesse de Luchetti pelo cinema de horror, sugeria marcar um encontro entre os dois. “Já falamos do senhor para Mojica e tenho certeza que seria delirante o vosso encontro”, dizia a carta. Mal sabia Lima que acabaria promovendo, com aquele convite casual, o encontro entre os artistas que, pouco depois, seriam reconhecidos como o rei do cinema de terror no Brasil e o maior escritor pulp do país. Seria o início de uma grande amizade e de uma parceria extraordinária.

Quando conheceu Mojica, Luchetti já era famoso entre os fãs de histórias policiais e de horror. Ele havia escrito diversos livros nesses gêneros e, em 1961, apresentara na TV Tupi a série policial Quem Foi?, um programa ao vivo no qual o espectador tentava solucionar um mistério proposto.

Luchetti assistiu Á Meia-Noite Levarei Sua Alma no Cine São Jorge, em Ribeirão Preto (depois transformado, como tantos outros, em igreja evangélica). Voltou para casa zonzo. Nunca vira nada tão blasfemo, tão subversivo. Viu em Mojica um misto de ator shakesperiano com canastrão mexicano, capaz de subir numa mesa e fazer um longo discurso com a voz empostada, tal qual os personagens do bardo inglês e, na cena seguinte, descambar para um melodrama indigno do mais mambembe teatrinho suburbano.

Grande entusiasta do experimentalismo do cinema (Luchetti foi um dos criadores do Centro Experimental de Cinema de Ribeirão Preto), ele admirou o estilo único do filme e a quebra do formalismo carta que tanto o irritava no cinema brasileiro. O que mais o impressionou, no entanto, foi a brasilidade do personagem. Mesmo quando usava clichês do gênero horror, como a bruxa, a floresta, o cemitério e as badaladas do sino. Mojica adaptava-os à realidade brasileira. O cemitério de Zé do Caixão não era arrumadinho como os dos filmes ingleses ou americanos, mas imundo; a bruxa de Mojica era maltrapilha, corcunda, e se parecia como qualquer mulher velha e feia que existisse pelos quatro cantos do Brasil.

Luchetti, que semanas antes havia vaticinado, em artigo no jornal ribeiropretano Diário da Manhã, a impossibilidade de se criar um personagem de terror autenticamente brasileiro, pelo fato de o país não ter tradição alguma no gênero, teve de rever sua opinião. O horror já não era mais um “gênero exclusiva e genuinamente anglo-saxão”, como ele havia escrito. Agora havia Zé do Caixão, o primeiro personagem de horror criado na América Latina.

Luchetti estava, portanto, ansiosíssimo para conhecer Mojica. Há anos vinha tentando trabalhar em cinema, sem resultado. Ele havia mandado dezenas de roteiros para produtoras como Atlântida e Maristela, mas seu estilo e sua preferência por temas como horror e crime não pareciam bater com o gosto dos chefões do cinema nacional. Quem sabe com Mojica não teria uma chance?

Sérgio Lima telefonou para Luchetti e marcou o encontro numa elegante casa de chá da rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo. As distintas senhoras que frequentavam o local quase engasgaram o chá com torradas quando viram Mojica, todo de preto e com aquelas unhas enormes, entrando no recinto. O bate-papo foi frio: Luchetti falou de sua experiência em TV e dos livros que havia escrito. Mojica quase não abriu a boca. Deu o endereço de seu estúdio e disse: “Passa lá no sábado que vem”.

Luchetti achou que daquele mato não saía coelho. Mojica já era um conhecido diretor de cinema, e ele não passava de um joão-ninguém do interior. Não teria chance de vencer em uma indústria dominada por panelinhas e favorecimentos. Mesmo assim, resolveu arriscar. No sábado marcado, foi até o endereço que Mojica havia lhe dado. Parou na frente do prédio, conferiu mais uma vez o número e achou que havia algo de errado. Era uma sinagoga! Mas uma plaquinha na porta- Cia. Cinematográfica Ibéria- indicava que o tal “estúdio” de Mojica era ali mesmo. Nunca vira lugar tão furreca: a porta não tinha fechadura, as janelas estavam todas quebradas e a pintura já tinha visto melhores dias. Ele subiu as escadas, tomando cuidado para não tropeçar nos degraus lascados. Chegou a uma pequena sala, onde uma secretária trabalhava numa escrivaninha que parecia ter sido achada no lixo. Era Nilce.

Poucos minutos depois chegou Mojica, acompanhado por Augusto Pereira. Ele cumprimentou Luchetti e o levou para ver os cenários de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Luchetti viu a floresta montada no quintal e o inferno de gelo. Ficou decepcionado com os cenários chinfrins (quando assistiu ao filme, meses depois, não acreditou que aquelas cenas impactantes haviam sido rodadas em cenários tão vagabundos). Mojica apresentou-o a vários alunos como “nosso novo colaborador”.

- Você veio em boa hora. Estou com financiamento para fazer um filme e quero que você escreva o roteiro!

Luchetti quase caiu de costas. Mojica continuou:

- Vai ser um filme de três episódios, de meia hora cada, chamado O Estranho Mundo de Zé do Caixão.

- O senhor tem o argumento escrito?

- Não tenho não, mas vamos sentar ali um instantinho que eu te conto como são as histórias...

Mojica levou-o para um canto e, em poucos minutos, fez um resumo do que queria:

- O primeiro episódio é sobre um velho que constrói bonecas com olhos humanos. Nessa história põe uns playboys, uns motoqueiros, que esse pessoal tá na moda, né? O segundo é sobre um cara bem pobre que se apaixona por uma moça da alta sociedade. Só que ela morre e ele acaba transando com o cadáver dela no caixão. A terceira história é sobre um casal que ridiculariza o Zé do Caixão num programa de TV. Daí ele leva o casal para sua mansão e tortura os dois, para provar que o instinto sempre supera a razão.

- Só isso?

- Só. Use essas ideias e me escreva um roteiro bem caprichado!

Luchetti não acreditou em sua sorte. Saíra de casa certo que o cinema era um sonho impossível e voltaram empregado! Assim que chegou em casa, pôs papel na máquina de escrever e trabalhou furiosamente nas histórias. Nove dias depois, havia terminado o roteiro de O Estranho Mundo de Zé do Caixão.

Retirado de Barcinski, André. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo; editora 34, 1998.

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