domingo, 30 de março de 2014

Marcos Rey, o escritor



É possível viver apenas de literatura no Brasil? Embora muito receoso, sabendo que até agora só Jorge Amado conseguiu realizar essa proeza, o escritor Marcos Rey vai tentar. Abandona mais de vinte anos de rádio e televisão, alguns de cinema, para viver em função de um sonho romântico que já quebrou a cara de muita gente de talento. No Brasil, a ideia pode parecer absurda, mas o fato é que os livros de Marcos Rey alcançam vendagem acima da média, tendência que vem se acentuando. O razoável êxito de O Pêndulo da Noite, coincidindo com as reedições de Memórias de um Gigolô e O Enterro da Cafetina e a tradução dos dois primeiros para o inglês, com opção para outros idiomas, o interesse que o cinema continua demonstrando pela adaptação de seus contos, o lançamento de mais dois livros, Soy Loco por ti, América e The São Paulo Affair, realmente aproximam Marcos Rey da possibilidade de profissionalização. E ele já se atirou a essa aventura, ao lado de sua mulher, Palma, e da sua dálmata Virgínia Ebbony Spots, trabalhando fulltime para apressar o sucesso (ou fracasso) de sua experiência

Lui: Você vive de sexo ou de literatura?

Marcos: Se você fizesse essa pergunta a um médico ginecologista, que fosse também escritor, ele responderia: vivo de sexo. E, nesse caso, eu também, pois as pornochanchadas que escrevi para o cinema foram encomendadas, tarefas pagas que nada tiveram a ver com minha carreira literária. Se me marquei como autor de pornochanchadas foi porque a adaptação de Memórias de um Gigolô e O Enterro da Cafetina, feitas por Alberto Pieralisi, praticamente inauguraram o gênero. Mais tarde, encomendaram-me roteiros especialmente escritos para o cinema, e, como precisava de dinheiro, topei a parada, e com incrível sucesso. Acabei tornando-me o único roteirista profissional do país. Mas meus bons roteiros não consegui vender e os que consegui não foram produzidos por não serem comerciais. Isto significa: acabei sendo uma vítima da própria onda que ajudei a criar.

Lui: A pornochanchada continua na ordem do dia?
                                        
Marcos: Não, propriamente. Agora o que dá pé são pornochanchadas de luxo como Dona Flor e Xica da Silva. Mas aí também sou um precursor com algo muito melhor, que foi o filme Sedução, escrito em parceria com Fauzi Mansur, seu produtor. Acho que Sedução foi uma ótima comédia erótica e que não foi ainda superada, embora a crítica de São Paulo, sempre tão preconceituosa, não lhe reconhecesse o valor. Mas, respondendo, a pornochanchada está em decadência, como todos esperávamos, depois de ter dado bases financeiras ao nosso cinema e possibilitando a preparação de técnicos e diretores de nível profissional. Fala-se e enaltece-se a fase da Atlântida, como marco do cinema nacional. A pornô foi mais pródiga e consequente.

Lui: Você gosta de escrever pornochanchadas?

Marcos: Gosto de escrever contos e romances. Escrevi, como disse, para ganhar dinheiro, embora disso não me envergonhe. Vergonhosa, a meu ver, é a atitude de um certo crítico de cinema ultraexigente, que sempre combateu a pornochanchada, e que agora, quando ela agoniza, adere a ela de corpo e alma, para produzir não sucessos como eu, mas fracassos. Mas já que estou com a mão na massa, é bom saberem que muitos dos meus livros e contos não foram adaptados para o cinema por mim. Minha peça teatral, inédita, Living e WC, foi no cinema Ainda Agarro Esta Vizinha, adaptado pelo Vianinha, que, depois, escreveu uma peça- Alegro Desbun – muito parecida com a minha. Mas, depois, defendendo-se em carta, ele explicou a mim e ao mundo que o teatro vale pelo seu “desenho psicológico e não pela estória”...Daí por diante, para evitar equívocos dessa natureza, decidi adaptar eu mesmo meus argumentos.

Lui: Você é desses que não perdem os seus filmes?

Marcos: O cinema é para mim arte dependente. Como a telenovela, que adapta ou plagia quase tudo. Meu sucesso no cinema foi ocasional. Eu sou um escritor e não acredito que a literatura esteja nos estertores. Todo bom filme é baseado em contos ou livros. As exceções são raríssimas. Ah, meus livros? Assisti a alguns.

Lui: Você costuma ser personagem dos seus livros?

Marcos: Quase todo livro é autobiográfico. Scott Fitzgerald fazia mais: escrevi sempre a mesma estória, talvez à procura de um final mais feliz. O autor não se livra de suas próprias experiências. Como Hitchcock nos seus filmes, ele sempre dá as caras. Disfarçado ou não, mas aparece.

Lui: Você aborda muito o baixo mundo. Pode se abrir: foi gigolô?

Marcos: Pertenço à classe média e tive uma rígida formação presbiteriana. Minha mãe queria que eu fosse um pastor de almas e cheguei a pensar nisso. Mas como o reverendo Jim Case, de As Vinhas da Ira, não saberia para onde conduzir o rebanho. Mas também que não se iludam com minha cara de santo. Aos vinte anos saí de casa para ir à China e parei na rua da Lapa, no Rio de Janeiro, onde vivi dois anos convivendo com todo o marginalato e fazendo croquis dos meus primeiros contos de bas-fonds, enquanto, para viver, traduzia Bambi, Banca de Neve e outros livros então editados pela Melhoramentos.

Lui: Conheceu Madame Satã?
                              
Marcos: Conheci, mas como não trabalho com esse artigo, muitas vezes tive que levantar os braços, na virada da rua Moraes e Vale para chegar à minha pensão. Satã era o dono do quarteirão e não tinha nada do boa-praça que hoje costumam pintar para dar mais charme ao nosso folclore. Acho que é lá que nasceram os personagens de Memórias de um Gigolô e O Enterro da Cafetina, o que é uma traição: um escritor tipicamente paulistano inspirar-se no Rio.

Palma: Conte a estória das cartas.

Lui: É. Conte tal estória.

Marcos: Isso está nas Memórias de um Gigolô. Um dia fui procurado por uma prostituta para que lhe escrevesse uma carta de amor. A carta fez sucesso e seu gigolô voltou para casa. Daí, outras fizeram o mesmo pedido, o que me obrigou a fazer o que tento agora: profissionalizar-me. Claro que não pensava em criar um sindicato de redatores de cartas prostitucionais, mas isso me ajudou a manter-me no Rio e a comprar muitos livros. O certo é que eu fui o único a exercer tal profissão e duvido que alguém um dia possa fazê-lo como tal consciência e êxito.

Lui: Fale mais da Lapa.

Marcos: Esses dois anos foram ricos em experiências, de leitura e trabalho. Não acredito que basta viver a vida para alguém tornar-se escritor. Havia uma livraria de aluguel na Rodrigo Silva. Eu não saía de lá. E todos os dias frequentava a Biblioteca Nacional. Creio que ninguém a conhecia melhor que eu. À noite, porém, enquanto o médico dormia, o monstro saia e eu aprontava.

Lui: Espere, o dinheiro das cartas foi o único que arrancou das prostitutas?

Marcos: A gente sempre faz o que sabe. Nessa especialidade havia gente melhor. Depois faturava com traduções, contos e artigos que publicava nas revistas Leitura e Oriente. Publicava também na Folha da Manhã, onde meu irmão, Mário Donato, era secretário.

Lui: Você falava do monstro.

Marcos: Mr. Hide? O próprio Stevenson tinha um Mr. Hide no guarda-roupa. Não tive na Lapa a sorte dos heróis das pornochanchadas, se é isso o que quer saber. A guerra acabara e o dinheiro era o dólar. A charla não valia nada. Elas só perdiam tempo com os marines. Por isso (conto essa?) uma vez vi uma mina dar o meu dinheiro a um cafiolo na Gomes Freire. Me senti humilhado e aquela noite, durante horas, fui seguindo o gigolô até que, quando ele passava pela rua Taylor, eu já com umas e outras na cabeça, ataquei de surpresa, fugindo à rotina de bom menino. Não recuperei o dinheiro, mas na contenda sobrou um relógio, que guardei como troféu, durante algum tempo.

Lui: Voltar a São Paulo foi muito triste?

Marcos: Uma úlcera no estômago me trouxe de volta. Mas logo depois entrava na Rádio Excelsior, onde comecei a ganhar bons salários como redator de rádio. Depois, a partir de 1955, a televisão.

Lui: Havia censura nessa época?

Marcos: Havia, mas camarada. O censor, que se chamava Russomano, ia à emissora, tomava café com a gente, e procurava mostrar-se um bom sujeito. Pouca censura e nenhum Ibope, praga, a meu ver, muito pior que a censura. O mal da censura hoje, o maior, é criar falsos ídolos. Quando ela proíbe, o autor vira gênio. Por outro lado, quando ela proíbe, o autor é um imbecil e um vendido. A peça mais forte apresentada no ano passado foi minha: Os Parceiros. Mas, como a censura permitiu, a crítica ignorou. Porém, o mal maior é o Ibope na televisão. A Globo, por exemplo, estava decidida a melhorar o nível das novelas das 7. De repente uma telenovela considerada da pior categoria emplacou. Resultado: concluiu-se que era bobagem melhorar o nível, e era mesmo. O que o Ibope consagra fica, enriquece. Se uma boa telenovela não der índice, miau.

Lui: O que você acha da participação do intelectual na televisão?

Marcos: Bobagem. É, eu disse bobagem. O intelectual não muda a televisão. Ela que muda o intelectual. Quando ele começa a ganhar um belo salário, afrouxa, entra no sistema e só quer saber quanto a novela está dando de audiência. O negócio é transar com o sistema. Se não fosse assim, haveria muitos intelectuais, digo, escritores na televisão. Se não há, é porque não é o lugar deles. Depois o escritor não entra fácil em corriolas, e sem pertencer a uma panela, a um velho grupo, ele pode entrar, mas não fica.

Lui: Você tem queixas da televisão?

Marcos: Vivi na televisão e talvez volte um dia. Mas, por menos elitista que uma pessoa seja, é força a reconhecer que o cafajestismo criou reduto em algumas das emissoras. Principalmente no que se refere ao respeito às leis trabalhistas. Na Excelsior fui demitido só porque outra emissora anunciou que eu escreveria um programa para ela. Mas demitido sem nenhum aviso e sem o pagamento de nenhum direito. Na Record deram a outro uma novela que eu bolara e que estava registrada em meu nome. Noutra, me recusei a desenvolver o papel de uma atriz na qual o diretor estava de olho. E me dei mal com isso. E atualmente processo a Tupi por quitação sem acerto de contas.

Lui: Mas não era você que dava tremendas festas, ainda bem recentemente?

Marcos: Durante uns três anos eu e Palma demos uma de “Belos e Malditos”, oferecendo Open House todos os sábados. Mas não era só para gente de televisão. Compareciam atores de teatro, cinema e escritores. O espírito do Grande Gatsby encostou em mim e eu troquei por algum tempo uma visa reclusa por futilidades do mundo etílico. Toda experiência na vida de um escritor é boa. E aquela era uma experiência visual que se coadunava com meu terraço. Anos mais tarde, eu usaria aquele material para escrever Soy Loco Por ti, América, livro de contos que será publicado ainda esse ano. Mas, continuando com o Open House, depois de atingir seu esplendor, quando Egídio Eccio começou a me chamar de Scott, foi acabando, a porta fechou, e esgotou a experiência e a adega...

Lui: Você deixou muitos amigos na televisão?

Marcos: Muitos

Lui: Quantos?

Marcos: Dois. Mas desde que terminou minha última novela não os vi mais.

Lui: E o cinema, que tal o ambiente? Pode pichar.

Marcos: Não picho. O ambiente do cinema é ótimo, como tudo que está em início. Um exemplo: nunca vi uma luta corporal na televisão e rádio em 28 anos. A puxada de tapete se faz na sombra e na calada da noite. No cinema ainda se briga, vi algumas. Isso significa coragem e sinceridade. Por outro lado o produtor de cinema é um homem que arrisca seu próprio dinheiro, vende o apartamento, o Fusca, tira o filho da escola, sacrifica-se. Luta por uma causa comum, o cinema nacional. Faz autocrítica; dificilmente endeusa o seu trabalho. Pelo contrário, é o primeiro a apontar as falhas, quando na televisão o clima é o da mediocridade satisfeita. A maioria sabe cumprir seus compromissos. Fiz 32 filmes e nunca levei um único cano. Jece Valadão? Sempre me pagou. Pagam pouco, mas pagam, e o fato é que não estacionaram: heroicamente os produtores estão criando uma indústria, que logo mais será tão organizada como o futebol ou as escolas de samba.

Lui: Você também foi publicitário. Por que saiu?

Marcos: Eis ai uma coisa que fiz muito bem, desde que entrei, em 1956. Fui quem bolou, nos anúncios de geladeira, destacar a porta utilizável. Criei o “Espaço Integral Brastemp”, na ocasião copiado por todos os concorrentes. Mais tarde, criei o anúncio humorístico na televisão, os intervalos comerciais do programa Noites Cariocas, com Amândio Silva Filho – isso antes do teipe. Fui redator de grandes agências e cuidei de contas como Willys, General Eletric, Nestlé, Brastemp e muitas outras. Depois me coube provar que o Gordini era melhor que o Volks. E provei, né?

Lui: Por que saiu da publicidade?

Marcos: Há uma história aí. A Editora Civilização Brasileira tinha aprovado O Enterro da Cafetina, mas eu precisava incluir mais três contos para dar um volume de bom tamanho. Mas não tinha tempo para isso e o prazo se esgotando. Um dia, comentei com minha mulher: “Um dia abandono a publicidade para ter mais tempo para escrever”. Ela perguntou: “Quando pretende fazer isso?”. Respondi: “Daqui a uns dez anos”. Ela: “Por que não abandona amanhã? A gente vende o carro e se aguenta”. Foi o que fiz.

Lui: E aquele conto, o Bar dos Cento e Tantos Dias, corresponde a realidade que viveu na época?

Marcos: Sim, a fase do Paribar. Isso foi quando tentei voltar algum tempo depois. Não foi mole.

Lui: Isso pode acontecer outra vez?

Marcos: Não venha me dar mau agouro.

Lui: Qual dos três ramos é o mais corrupto ou desagradável: televisão, publicidade ou cinema?

Marcos: O cinema é o mais puro e ingênuo, onde persiste o idealismo em estado bruto ou latente. E é também onde mais pessoas caem do cavalo.

Lui: E na revolução sexual você acredita?

Marcos: Acho que a revolução sexual é feita na capa das revistas. A maioria continua sendo quadrada e provinciana. Acho que a geração anterior a essa, a dos pais, dos homens que passaram dos quarenta, foi mais liberal e avançada. Foi existencialista, com toda razão, e tinha a Chiquita Bacana como símbolo. A de hoje é assexuada e barulhenta.

Lui: Mas você foi visto no New York City, no Rio, dançando numa discoteca com algumas garotas. Verdade?

Marcos: É verdade. Fui lá fazer uma pesquisa sociológica.

Lui: Você é favorável a emancipação da mulher?

Marcos: Sou e sinto não ser vinte anos mais moço para ser mais ainda. Ai eu ia ser um líder da emancipação com sede própria, farol de neblina e tudo mais. Na verdade, o homem, além do seu aspecto repulsivo, é muito mau-caráter. Creio inclusive que toda a administração do país deveria estar nas mãos das mulheres. Aposto que haveria, então, democracia. Eu só não votaria num sapatão para presidente da República.

Lui: E com sua filha, você seria um pai liberal?

Marcos: Seria não, sou. Virgininha teve onze filhos e se quiser pode ter mais onze. Só não pode ser com um vira-lata porque eles não têm saldo médio.

Lui: O que acha do casamento?

Marcos: Com exceção do meu- e a Palma que está aqui presente não me deixa mentir -, o casamento é uma droga. O homem, por mais honesto que seja, morre sonhando com um harém. Ter uma mulher só é a maior tragédia da vida do homem. O coitado fica complexado, diminuído, começa a sentir dores nos tornozelos, no baixo-ventre, no joelho esquerdo, não entendo por que no joelho esquerdo, no antebraço e depois a coisa ataca o coração e mata. Todos os homens, não falo dos machões, que são suspeitos, sonham com um harém.

Lui: Então você aceita Freud integralmente?

Marcos: Foi Hollywood que passou essa imagem. Antes o sexo não era o sonho da classe média. Era privilégio de raros. O cinema que o popularizou, como a publicidade promoveu a geladeira, o liquidificador e os eletrodomésticos todos. Depois, para Freud, o sexo era uma doença, uma tara; imaginem, os homens apaixonados pela própria mãe! Essa é a maior falta de imaginação que já vi. Queria generalizar uma aberração! Sou contra, contríssimo!

Lui: Um tema atual: acha que todas as mães deveriam amamentar seus bebês?

Marcos: Não, não, não!

Lui: O que você diz do divórcio?

Marcos: Nas próximas décadas o divórcio não seria apenas facultativo como obrigatório. Haverá uma lei que divorciará os casais compulsoriamente depois de cinco anos de casados. E as barreiras legais serão tantas e complicadas que mesmo se amando os casais não conseguirão continuar juntos. Pode dar cadeia, pra quem insistir.

Lui: Você acha, como MacLuhan, que o mundo ainda será uma aldeia global?

Marcos: Esse é o grande sonho do Boni.

Lui: Voltando a um assunto já falado, o que falta na televisão?

Marcos: Me deem a direção geral de uma, e eu mostro. Antes, não.

Lui: Por que ainda não fez o chamado teatro de protesto?

Marcos: Ainda não, mas dá uma nota, não?

Lui: Como você vê o problema da poluição?

Marcos: O que vocês querem, que deixe de fumar? As minhas fábricas já tem filtro antipoluição. Já viu alguém me acusar nos jornais de poluir o ambiente? Já?

Lui:E sobre a preservação do verde?

Marcos: Fui muito amarrado ao verde, ao selvagem. Quando jovem, frequentava a African Boate, a Savage, o Jungle Bar e o restaurante Cacciatore.

Lui: Você começou a escrever cedo. Teve mestres?

Marcos: Tive, é claro. Meu irmão, o escritor Mario Donato, sempre orientou minhas leituras. Sou um grande leitor, o que é raro num escritor. O escritor, depois do analfabeto, é quem menos lê no Brasil. Livro e música. Gershwin, Art Tatum e Billie Holyday exerceram em mim influência maior que alguns escritores. Outro mestre, que conheci no fim da vida, foi Oswald de Andrade, de quem fui o último discípulo e para quem eu era “mais que a esperança: a crença”. Escrevia um livro de perguntas e respostas quando Oswald morreu. Fui o último a entrevista-lo e um dos seus confidentes. Morreu arrependido por ter feito uma piada que o separou de Mário de Andrade. Para ele, Mário, Machado e Euclides tinham sido os maiores. Garantia ter inventado Antônio de Alcântara Machado e que, portanto, era um blefe. Alguns escritores brasileiros famosíssimos, ele nem conseguiu ler. Eram uns chatos. Gostava que gostassem de sua poesia. Sua vaidade era ser poeta e julgava-se injustiçado. Costumávamos passear pelo seu bairro, no Fiat dirigido por Antonieta d´Alkimin, sua mulher. Não temia a morte; simplesmente a detestava.

Lui: Como foi sua formação literária?

Marcos: Intensa e apaixonada. Meu pai, encadernador, antes de eu nascer, já formava uma biblioteca. Ele foi chefe das oficinas da Editora Monteiro Lobato, e por isso fui uma das primeiras crianças a ter livros do escritor nas mãos. O cheiro da tinta, dos livros recém-saídos do prelo, é minha lembrança mais antiga. Nasci entre livros, já lidos pelo meu irmão mais velho. Aos oito anos não imaginava que pudesse ser outra coisa porque nada mais me interessava. Já na infância conheci alguns escritores pessoalmente como Orígenes Lessa, e amigos do Mário como Edgard Cavalheiro, Fernando Goes e quase todos daquela jovem geração que antecedia a minha.

Lui: E os autores que o influenciaram?

Marcos: Certamente passei por Anatole France, Wilde e Eça. Machado foi a primeira das paixões mais duradouras. Na juventude descobri os escritores norte-americanos e logo em tornei doutor em literatura americana: Hemingway, Steinbeck, Caldwell, Saroyan, O´Hara, Dorothy Parker, James Cain, Faulkner, Dos Passos e todos eles. Com os americanos aprendi que a vivência pode nortear a inspiração, e que é na vida que está a essência da arte. Verdade simples, mas que o escritor teima em esquecer. Outros autores também me influenciaram ou estimularam como o pouco lembrado Julian Green e Liam O`Flaherty. Estão todos em minha biblioteca, lidos, relidos e consultados com a maior frequência.

Lui: Como você explica o novo impulso que está tomando a literatura brasileira numa época de visível recesso cultural?

Marcos: Lembro que foi durante a ditadura que surgiu no Brasil uma leva de escritores notáveis: Jorge Amado, Graciliano, Rachel, Amando Fontes, Lins do Rego e outros. É sempre nos períodos de repressão, censura e cala-boca que a arte subterraneamente se revigora, evolui e encontra novos caminhos. É o que acontece, agora. Vivemos uma fase de auspiciosa e desinibida criação literária.

Lui: Então diga o que acha da literatura atual?

Marcos: Temos grandes valores, alguns ainda no início de grandes voos. Posso citar alguns: João Antônio, Loyola, Mafra Carboniere, Waldyr Nader, Aguinaldo Silva, Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Márcia Denser e muitos outros. O mal, a meu ver, é que muitos se deixam atrair pelo realismo fantástico, imitando Gabriel Garcia Marquez e Cortázar, quando o caminho me parece ser o da realidade fantástica. Temos todo um território com seu presente e o passado para explorar, e basta olharmos para frente para vermos nossos temas e estórias.

Lui: E você, como se situa no contexto?

Marcos: Sou um escritor do asfalto que tenta reabilitar o prazer de se ler uma boa estória. Não estou defendendo a estória pela estória, como Maugham, mas acho que um romance deve ser mais que um exercício de estilo. O leitor quer mais, e não é nenhuma desonra satisfazê-lo.

Lui: Você se julga um autor nacional, já que usa temas universais?

Marcos: Nunca serei brasileiro no sentido em que foi José Lins do Rego. Sou um escritor metropolitano, não por escolha mas por determinação do meu atestado de nascimento. Não serei um “espanta-leitor” como o cáustico João Antonio apelidou os escritores de laboratório.

Lui: Você aparece na Extra-Realidade Nacional como um dos malditos. Julga-se um deles?

Marcos: Não aceito a denominação caso ela surja como mero atrativo promocional. No entanto, O Pêndulo da Noite não pode ser lido pelos que se deleitam com água-com-açúcar. Por falar nesse livro, Mustang Cor de Sangue, um dos contos, está sendo filmado e parece que sairá coisa boa.

Lui: E as editoras? Como procedem com o escritor?

Marcos: Quem se mete com livros geralmente é gente honesta. Os malandros preferem lidar com outros objetos. O que sucede é que frequentemente as editoras abrem falência e, quando as editoras liquidam, os direitos autorais evaporam. Isso já me aconteceu duas vezes, e deve acontecer com a maioria dos escritores. Na verdade, há poucas editoras sólidas, que tem condições de prestar contas com pontualidade. Ainda permanece a crença de que publicar um livro é um grande favor que se faz ao autor. Mas a culpa, faço questão de frisar, não cabe a editores, mas à situação de indigência do livro no Brasil.

Lui: Como você acha que se deveria fazer para popularizar o livro?

Marcos: Na marra. Foi o que eu disse. As emissoras de rádio e televisão deveriam ser obrigadas a difundir o livro, já que não fazem com vontade própria. Poucos, como o Ney Gonçalves Dias e o Fausto Canova em São Paulo, fazem promoção de autores de livros. As emissoras deveriam ter um horário para essa divulgação, retomando a linha dos programas do inesquecível Cid Franco. As editoras não dispõem de recursos para pagar publicidade. Mas tudo isso seria solucionado se existisse um Ministério da Cultura, plano que se discutiu e abandonou. Educação é uma coisa, cultura é outra.

Lui: A profissão de escritor é então marginal?

Marcos: Pior que isso: não é uma profissão. Para alguns autores é um hobby; para outros uma compulsão. Pode ser um vício cujo tratamento as ditaduras geralmente fazem com prisão, e pancada. No Brasil o escritor exerce outras profissões para viver. Catador de papel é uma delas. Parte vai para a publicidade, para os empregos públicos e profissões liberais. Mas o status de milionário é, sem dúvida, o que melhor convém a um romancista, mesmo que lute por reivindicações. Uma mocidade sofredora e uma maturidade cínica e confortável é a grande receita para o gênio.

Lui: Você acredita que a literatura brasileira terá vez no cenário mundial como já tem a de outros países sul-americanos?

Marcos: Bem, o Jorge é um sucesso em muitos países. Mas ele é uma espécie de Carmen Miranda da literatura, representa o exotismo do Brasil, e o que escreve corresponde à imagem que se faz do nosso país lá fora. Quanto aos modismos vigentes, dificilmente terão o mesmo êxito, pois estarão chegando atrasados. Mas acredito que alguns, os mais originais, e os outros que revelam outros aspectos do Brasil possam chegar lá. Porém tudo isso é muito lotérico e minha bola de cristal quebrou-se na última mudança.

Lui: Como você faz para escrever?

Marcos: Sento e escrevo. Ás vezes escrevo de pé. Mas quase sempre e obsessivamente da esquerda para a direita. Anotem, novatos.

Publicado originalmente na revista Lui número 15 em junho de 1978

Um comentário:

Anônimo disse...

Mto bom! Parabéns por recuperar essa entrevista! abs

Aguilar