terça-feira, 23 de junho de 2015

Nelson Gonçalves regressa à boemia simultaneamente em cinema e DVD

Nelson Gonçalves regressa à boemia simultaneamente em cinema e DVD



Docudrama narra a trajetória artística e pessoal do ídolo da Era do Rádio

Por Jaime Biaggio

Só a objetividade do documentário talvez acabasse amortecendo as possibilidades dramáticas da história. Só as licenças poéticas da ficção talvez fizessem soar inverossímil uma meia dúzia de lances que parecem inventados (até porque alguns realmente foram, e pelo próprio protagonista). Fato é que o docudrama, um misto de depoimentos e imagens de arquivo com cenas ficcionalizadas, foi o formato escolhido para “Nelson Gonçalves”. Dirigido por Elizeu Ewald e produzido pelo mesmo Diler Trindade dos produtos cinematográficos da Xuxa, o filme, em cartaz exclusivamente no Odeon BR e prestes a sair em DVD, é auto-explicado pelo título.

Auto-explicado, mas jamais auto-resumido. A vida do consagrado ícone da Música Popular Boêmia, morto em 18 de abril de 1998, aos 78 anos, de parada cardíaca, não se resume em duas palavras. Antes de vir para o Rio tentar a sorte como cantor de rádio, o gaúcho Nelson, esquentado desde sempre, tentara ganhar a vida sopapeando os outros como boxeador (jurava ele ter disputado 33 lutas, só perdendo a primeira e a última). Já consagrado, chegou a ganhar um extra como cafetão, a ser preso como traficante, a afundar no vício da cocaína. Todas essas histórias são relembradas na tela em depoimentos de pessoas que conviveram com ele, como Sérgio Cabral, Cauby Peixoto e Arthur Moreira Lima, e na parte ficcional por Alexandre Borges.

- O docudrama foi o formato pretendido desde o início – afirma o diretor. – É um exercício de linguagem fantástico e uma tendência cada vez maior.

Se o formato narrativo do filme é aquele pretendido desde o início, a ideia de levar a história para o cinema é mais recente. “Nelson Gonçalves”, nasceu como série em três capítulos para a TV, tanto que foi todo rodado em vídeo (não o badalado vídeo digital: analógico mesmo). A possibilidade da tela grande nasceu, num típico lance de Nelson Gonçalves, de um contratempo. No caso, a dificuldade de fechar um contrato de exibição com alguma emissora em 1999 (o esqueleto do filme está pronto desde então, o que se percebe nos depoimentos, da cabeça raspada de Lobão, atualmente já coberta novamente por uma cabeleira, à presença do jornalista Albino Pinheiro, falecido exatamente em 1999).

Diretor teve liberdade de tocar em temas delicados

- O projeto teve início no primeiro semestre de 1998- lembra Ewald. – Assinamos o contrato com Nelson duas ou três semanas antes dele morrer. A produção teve início em 1999, com dois meses de pesquisa de imagens de arquivo levou quase seis meses.

O processo, supervisionado por Margareth Gonçalves, filha do cantor, que consta dos créditos como produtora associada, se pautou pela absoluta transparência, algo bastante raro em biografias autorizadas. Como Nelson jamais escondeu os detalhes mais escabrosos de sua vida, como o período de três meses trancado num quarto sofrendo crises de abstinência para se livrar do vício da cocaína, não houve quaisquer saias-justas na apuração dos fatos.

- Sempre deixei claro para o Nelson que era a versão dele, mas que eu teria um papel de autor no filme, decidindo o que entraria e o que seria cortado – diz Ewald, que preferiu centrar o foco na carreira artística. – Mas ele nos deu a liberdade de tocar mesmo em assuntos que não gostaria de lembrar, como no caso da Beth White, a mulher que se matou por ciúme dele.

O suicídio de Beth White é um dos vários episódios da vida de Nelson reproduzidos ficcionalmente pelo diretor. Outras passagens dramatizadas foram a invasão do escritório da RCA, que acabou lhe valendo um contrato de assombrosos 58 anos com a gravadora, e a dura da polícia por estar sem documentos, contornada com a melhor identificação possível para Nelson: a voz.


Publicado originalmente no jornal O Globo em 28 de julho de 2001

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