sábado, 4 de julho de 2015

Mil canções



Mil canções






Por Tárik de Souza



Ele não costuma errar. Nem mesmo quando grava em estúdio, com uma infinidade de recursos técnicos à disposição. Mas, ao cantar o samba “Nossa História” na gravação do programa “Clube dos Artistas”, levado ao ar na última sexta-feira pela Rede Tupi de Televisão, o cantor Nelson Gonçalves entrou fora do tom. Teve que parar e depois recomeçar – de forma impecável. Mais tarde, enquanto corrigia o vídeo-tape, suprimindo a entrada acidentada, o produtor do programa, José Messias, dava a explicação para o surpreendente tropeço do grande ídolo nacional: “Foi emoção. Afinal, é a milésima...”.



De fato, Nelson estava emocionado. Era a primeira vez que cantava em público o samba escolhido para marcar seu recorde indiscutível: 1.000 canções diferentes gravadas em 35 anos de carreira. “Nossa História” foi selecionada pelo próprio Nelson entre quatro músicas tiradas de um total de 517, vindas de todo o Brasil para o concurso “A Milésima Canção Para Nelson Gonçalves”, promovido pelo “Clube dos Artistas”. E além de render o prêmio de 20.000 cruzeiros a seus autores, Jorge Costa e Paulo Machado, abre o lado B do próximo LP do cantor, nas lojas dia 2 de junho: “Nelson Até 2001”. No disco, junto aos infalíveis sambas-canção de Adelino Moreira, incluíram-se preciosidades como “Vida Noturna”, de João Bosco e Aldir Blanc; “Fim de Caso” de Dolores Duran; “Castigo”, de Lupicínio Rodrigues e “Eu e a Brisa”, de Johnny Alf.



Meio gago- Com 23 LPs no catálogo permanente na RCA (ele gravou 78), Nelson representa um dos maiores e mais estáveis faturamentos da gravadora. Sua primeira gravação, o 78 rotações “Sinto-me Bem”, música de Ataulfo Alves, lançada em agosto de 1941, vendeu 18.000 cópias numa época em que a marca de 2.000 discos vendidos significava absoluto sucesso nacional. Canções como “A Volta do Boêmio”, “Caminhemos” e “Segredo”, entre outras, na voz poderosa de Nelson Gonçalves, já ultrapassaram, em diversas gravações, a casa dos 2 milhões de cópias vendidas.



Agora, ás vésperas de completas 57 anos, Nelson Gonçalves ainda se mantém como um fenômeno de sucesso e popularidade. Na RCA, divide os maiores faturamentos com Martinho da Vila. Sua agenda de shows (35.000 cruzeiros por apresentação) em clubes e auditórios de todo o país está sem datas vagas até janeiro de 1977. E ele precisou cancelar os compromissos marcados de outubro deste ano a janeiro do próximo para poder realizar um projeto totalmente novo em sua carreira: um show de teatro, “Nelson Gonçalves Canta e Conta Sua Vida”, espécie de revisão crítica de seu trabalho artístico, dirigido pela atriz e professora de teatro Miriam Muniz, que encenou “Falso Brilhante”, de Elis Regina. “E aí sim”, diz Nelson com seu jeito atropelado e meio gago de falar, “talvez utilize em recurso que nunca precisei para me promover: a máquina de divulgação”.



Machão – Na verdade, o sucesso de Nelson Gonçalves deve-se fundamentalmente às suas virtudes de cantor. A voz potente, excepcionalmente afinada, mostra-se capaz até hoje, de recursos quase ilimitados. E a interpretação dramática confirma plenamente aquela postura machista que tanto o aproxima de seu público. Adelino Moreira, autor dos seus principais sucessos, diz que “as pessoas se identificam muito com as minhas letras. Ás vezes chegam para mim e dizem: “Parece que você se inspirou na minha vida”. No entanto, Adelino confessou a VEJA que muitas vezes se inspira na vida do próprio Nelson para compor. E conta que uma vez, numa festa, o cantor interessou-se por uma moça e escreveu um bilhete para ela, num guardanapo. “Como bom machão, em vez de passar o recado com discrição que o assunto merece, Nelson fez uma bolinha de papel e a atirou sobre o busto da jovem”.



Gaúcho de Santana de Livramento, criado no Brás, em São Paulo, pai de dez filhos (oito adotivos), cheio de anéis nos dedos e o nome gravado na pulseira do relógio, Nelson confirma sua aversão a certas “modernidades”. Canta sempre de terno escuro ou smoking, não admite calças justas e já devolveu um terno sem bolsos ao alfaiate: “Onde é que eu ia botar o cigarro e o isqueiro?”. Nunca se deixou maquilar, nem mesmo em programas de televisão, onde o pancake é praticamente indispensável. E anda assustado com o comportamento de alguns fãs, como desabafou a Valdir Zwetsch, da VEJA: “Tem uns caras, homens mesmo, que chegam depois de um show, chorando de emoção, e querendo me beijar na boca! Dizem: ‘Deixa eu beijar a boca de onde sai essa voz maravilhosa’. Onde já seu viu?”.



Extravagância- Enquanto a maioria dos artistas brasileiros lança um LP por ano, Nelson Gonçalves lança anualmente três. “Posso fazer isso porque meu público é fiel e está habituado. O cara chega na loja, pede meu último disco, manda embrulhar e só vai ouvir em casa. Nem ouve antes, pois já sabe que vai gostar”. E mais: Nelson se diz “surpreso e grato” por estar atingindo outro tipo de público. “Talvez por causa da onda de nostalgia, a verdade é que os jovens estão fazendo uma revisão da música brasileira e infalivelmente acabam me encontrando. Vou a clubes onde só tem garotada, cantando junto comigo meus maiores sucessos”.



Além da necessidade de alimentar esse público, fiel e crescente, com novas gravações, ele conta com outro trunfo que permite a extravagância de três discos novos por ano: reúne qualidades de um verdadeiro mestre da arte de gravar. Habituado aos esquemas primitivos de gravação em um canal só e matriz de cera, que não admitiam erros, Nelson acostumou-se a nunca repetir uma sessão de estúdio. Trabalhar com ele, dizem os técnicos, é uma tranquilidade: basta trocar a base em playback que Nelson abre a garganta e solta a voz, no tom e inflexão exatos. Ás vezes, terminada a canção, passa imediatamente para a seguinte, sem nem ouvir o que registrou antes, tão seguro está do resultado. Em um só dia grava um LP inteiro.



Alfredo Corleto, gerente de divulgação e promoção da RCA, testemunhou uma dessas sessões, em 1970, durante a regravação do LP “Nelson Interpreta Noel”. “Ele entrou no estúdio ás 14h15 e, entre papos e cafezinhos, saiu ás 18h30. O disco estava prontinho, voz de Nelson e base de Caçulinha. Só faltava enxertar alguns arranjos de orquestra”.



Parar de cantar- No ano passado, Nelson vendeu perto de 800.000 discos e renovou seu contrato com a gravadora por mais cinco anos. E começou a colocar em prática sua ideia de um arquivo musical, capaz de garantir novos lançamentos seus até o fim do século. Sua intenção é parar de cantar daqui no máximo cinco anos. Mas até lá, gravando duas ou três músicas por mês, terá vinte LPs inéditos prontos, permitindo à RCA lançar um ano por ano, de 1981 a 2001. Nessa linha de trabalho, já tem dezessete canções gravadas, voz e base, faltando só a orquestração, “que será sempre feita na época do lançamento, de acordo com as tendências musicais em voga”.



Um verdadeiro golpe de mestre, explicando lucidamente pelo próprio Nelson: “Eu penso viver até os 80 anos, e quero que o público que sempre me acompanhou tenha o que ouvir enquanto eu estiver vivo. E, além de não privar meus fãs de coisas novas, poderei me aposentar com uns cinquenta ou sessenta salários mínimos mensais só pelos direitos de execução e vendagem dos discos. Mais os vinte salários mínimos do INPS, acho que dá para garantir meu dia de amanhã. E há ainda o risco de uma dessas músicas estourar...Então, eu ganharia uma fábula – sem estar cantando. No máximo, fazendo umas dublagens por aí...”



Mas, por que parar de cantar daqui a cinco anos se sua voz se mantém firme e vigorosa há mais de três décadas? “Eu quero descansar. Este mês só passei dois dias na minha casa em Niterói. Inaugurei a piscina em janeiro e até agora só consegui tomar dois banhos. Então, vou parar para curtir minha família, viajar, ir para a Europa, aproveitar um pouco”.



Se quisesse, ele diz, “podia até parar agora que não ia passar necessidade”. Sua renda mensal está em torno de 100.000 cruzeiros. Mas ocorre que o cantor que comove multidões ainda gosta muito de subir num palco e cantar dramaticamente para os fiéis e apaixonados fãs. “É isso que me fascina. No ano passado, eu fiquei em primeiro lugar nas paradas de sucesso da Bélgica com Naquela Mesa e isso não me disse nada. Bélgica, Alemanha, Estados Unidos, nada disso me interessa. O que eu quero é ser o primeiro lugar no Brás, segundo na Mooca, primeiro no Meier, terceiro em Cascadura, segundo em Ribeirão Preto...Eu cantei na ilha do Bananal e vi índio nu com disco meu embaixo do braço. Isso é que vale.”



Publicado originalmente na revista Veja em 26 de maio de 1976

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