sábado, 18 de julho de 2015

Nelson Gonçalves, o último dos cantores românticos



Nelson Gonçalves, o último dos cantores românticos


O músico, que morreu no sábado, tinha planos para gravar o seu último disco na virada do século



Norma Couri, especial para o Estado



O último disco estava planejado para o ano 2000. Não deu. Nelson Gonçalves morreu de parada cardíaca ás 20h45 de sábado, a três meses dos 79 anos, a menos de dois anos do fim do século que seria selado com o último disco de sua carreira. Há muitos anos o último cantor romântico se acostumou a gravar uma faixa de quebra para cada disco. As extras vinham sendo arquivadas e o disco tinha até título: Nelson Ano 2000. Ia sair pela BMC Ariola, antiga RCA Victor na qual ele foi rei.



Sobrevivente da última geração de cantores românticos, membro da turma de ouro do Brasil formada por Vicente Celestino, Francisco Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva, Nelson Gonçalves não apaga só a voz grave e elegante. Apaga um estilo, uma época.



Anterior ao play-back, nunca repetiu uma gravação. Seus maiores sucessos se chamavam Normalista ou um emocionado Ela me Beijou e hoje ninguém mais sabe o que é isso. Caetano Veloso era criança quando ouviu Nelson Gonçalves cantar Maria Betânia, de Capiba, e assim decidiu o nome da irmãzinha. Era o kitsch cafona mais autêntico do Brasil, com bigodinho bem cuidado e brilhantina no cabelo.



Conheceu o inferno e o céu, os farrapos e a riqueza, a loucura e a fama. Ficou na miséria antes de acumular 19 apartamentos, uma casa em Itaipu, duas fazendas em Caxambu, mais quatro imóveis. Emplacou na subida quando Orlando Silva entrava em decadência, entrou na moda e saiu dela. O vozeirão foi destronado pelo cool da Bossa Nova. Nos anos 90 voltou a ser referência de roqueiro e músico pop, virou livro, foi tema de peça. Planejava virar filme e escrever a autobiografia Esta É a Minha Vida.



Nelson Gonçalves ainda era Antônio quando cantava na rua, em cima de caixote de sabão, com o pai que se fazia de ceguinho para recolher dinheiro para o menino. Virou cantor há 60 anos. Antes foi engraxate, barbeiro, mecânico, sapateiro, jornaleiro, peso meio-médio de boxe, garçom na esquina da Avenida São João com a Alameda Nothmann, gigolô na Lapa carioca.



Rei do rádio, em 1966 foi apanhado com 200 gramas de cocaína e preso. Viciado, ficou trancado por seis meses em casa pela mulher, tinha alucinações com ratos e dragões e batia nela. Um dia abriu a janela e espantou-se com o leiteiro, o jornaleiro, a vida cotidiana da cidade. Era 1968, estava com 53 quilos e curado. “Homem não é quem fica viciado, homem é quem larga o vício”, dizia. Virou uma espécie de porto seguro para os viciados do meio artístico brasileiro.



Último machão – O último cantor romântico era também o último machão. Achava óculos escuros coisa de homossexual, brinquinho nem se fala. Com uma prótese peniana, aos 75 anos dizia ter o mesmo vigor sexual dos 25, Casado três vezes – com Elvira Molla, Lourdinha Bittencourt, Maria Luiza Gonçalves -, tinha sete filhos, cinco adotivos e morava com uma das filhas, Margareth, também empresária do pai.



Nunca quis aposentar-se. Tentou ser deputado federal e vereador, não conseguiu ser eleito. Orgulhava-se de ter visto índio nu com seu disco debaixo do braço na Ilha do Bananal, profissionais da zona do meretrício com coleções de seus sucessos. E também por ter sido elogiado por Sinatra em pessoa quando cantou nos Estados Unidos. Orgulhava-se ainda da boemia, de ter nocauteado o imbatível Miguelzinho num bar da Lapa, de nunca ter chutado homem deitado e de seus melodramas de folhetim. Orgulhava-se da voz que, aos 78 anos, não havia baixado nenhum tom.



Gago, dizia: “Penso mais rápido do que consigo falar”. Por isso mesmo foi apelidado de Metralha. Mas tinha a voz mais cristalina quando cantava. Corrigia os cantores: João Gilberto, Lulu Santos, Lobão, Renato Russo. Entre os homens só refrescava Sinatra, Tony Bennett, Stevie Wonder, das mulheres gostava de Gal, Ângela Maria, Fafá de Belém.



Recuperado de um enfarte, enfrentava a vida lembrando o passado de valentia e uma penca de Corações de Jesus, medalhinha de Nossa Senhora das Graças, crucifixo, escapulário, tudo com três guias de Ogum, Xangô, Oxalá. Valeu: só Elvis Presley recebeu o Prêmio Nipper na gravadora BMG, na qual há décadas é campeão de vendas. Deixa bolachas de 78 rotações, LPs, compactos simples e duplos, caixinhas de CD – uns 2 mil sucessos pelos quais recebeu 15 discos de platina e 41 de ouro por quase 80 milhões de cópias vendidas. Fez história na música popular brasileira.



Nelson Gonçalves é de um tempo em que cantor sabia cantar, compositor sabia escrever e se dizia coisa com coisa. O lugar do besteirol, da pornografia, dos decibéis excessivos e da grosseria era na lata do lixo. Mas esse tempo foi há muito tempo e ninguém se lembra mais. O primeiro sucesso foi há 57 anos – Sinto-me Bem, de Ataulfo Alves. Seu festival de hits fala de coisas que ninguém mais sabe o que é.




Por exemplo, na música Meu Triste Long Play: “Ligue a sua eletrola/ Vista o seu negligê/, Deite-se, acabe o cigarro/, Que eu no cinzeiro deixei/, Quero sentir que você /, Na maciez do seu ninho/ Dormiu ouvindo bem baixinho/ O meu triste long-play”. E alguém ainda está conectado com camisola do dia?



Mas no que Nelson deve parecer mais surpreendente para essa meninada é nos sentimentos. Ele cantava frases desse impacto: “Eu quero esse corpo/ Que a plebe deseja/ Embora ele seja/ Prenúncio do mal”. E, naturalmente, Meu Desejo: “Tenho desejos de ver em prantos/ Magoá-la tanto com a minha ira”. Ou Meu Vício É Você: “Boneca de trapo/ Pedaço de vida/ Que vive perdida no mundo a rolar/ Farrapo de gente/ Que inconsciente/ Peca só por prazer”. Onde ele machucava a dor-de-cotovelo alheia era em Nossa História: “Se você sair/ Fecha a porta por favor/ Se a nossa história está morta/ Tudo acabou/ Não é a primeira vez/ Que sofro por teu amor/ Estou ficando freguês dessa dor”. Ele desbancava: “Maria Pureza/ Só tinha pureza no seu sobrenome”.



Nelson tinha estatura de Elvis ou Sinatra para os brasileiros, cantando no ouvido dos feridos do amor, dos abandonados, dos atraiçoados pela mulher amada e mexendo fundo com a vaidade do macho latino. A Volta do Boêmio, Deusa do Asfalto, Louquinha para Casar, Êxtase, Os Anjos, Calafrio, Hoje Quem Paga Sou Eu, Ela me Beijou.



Fez uma famosa parceria com Adelino Moreira, cantou Benedito Lacerda e David Nasser (Normalista), Ari Barroso, Herivelto Martins, Wilson Batista. Irritava-se quando diziam que ele imitava Orlando Silva. Muitos cantores tentaram imitá-lo. Na década de 90, foi reverenciado por Nelson Motta e Marisa Monte, cantado por Lobão que compôs A Deusa do Amor para ele. Virou aquela coisa que os brasileiros só costumam aplicar aos estrangeiros cult. Nelson viu essa volta sem espantou. Ele sabia. Dizia: “Sou o último a cantar assim”.



Cadilac 98 – Ficou para sempre a vontade de pedir que ele repetisse a proeza de cantar em frente de uma vela que não tremulava com seu bafo, de falar sobre a amizade com dom Paulo Evaristo Arns, de ver o “treoitão” que ele dizia tirar da cintura. Também de ver uma parte da autobiografia que estava escrevendo auxiliado por Lena, as faixas do disco que planejava para o ano 2000, o Cadilac 98 com traseira de turbina de avião com que ele sonhava desfilar nas ruas, e de ouvir, pela última vez, o rei da voz.



Publicado originalmente no O Estado de São Paulo em 20 de abril de 1998

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Excelente matéria.Obrigado por postar.