segunda-feira, 25 de junho de 2018

O Imaginário da Boca parte I: Introdução


O Imaginário da Boca parte I: Introdução

Por Inimá Ferreira Simões
Seleção e transcrição: Matheus Trunk



Entre edifícios descuidados do antigo bairro de Santa Efigênia, na animação de algumas ruas ocupadas por distribuidoras e produtoras, frequentadas por profissionais de cinema, intelectuais e jornalistas, a Boca tornou-se conhecida como um espaço de convivência e trabalho e como termo de referência para certas formas de fazer cinema.

O estudo Imaginário da Boca vem reconhece-la não como uma entidade, nem como uma organização fechada e definida por regras determinadas. Verifica que os filmes produzidos na Boca não configuram um conjunto homogêneo que o trabalho ali realizado não é conscientemente controlado. Refuta ainda, a possibilidade de explicar o cinema da Boca simplesmente pelas relações econômicas que o presidem. Nisto reside a contribuição deste texto, que numa aproximação aos trabalhadores do cinema, busca esclarecer a relação que estabelecem com aquilo que fazem.

Com toda propriedade, a Boca ressurge como lugar do paladar, do gosto, de articulação de pronúncia e fala. O Imaginário da Boca se detém no sabor da produção mais recente, de 1978 a 1980, particularmente no universo da pornochanchada. Evitando o reducionismo, que encontra neste tipo de filme somente o produto espúrio, procura recuperar a humanidade das pessoas envolvidas nesta atividade.

E já que gosto se discute, o texto oferece elementos necessários à reflexão sobre as imagens que apresentam e representam o universo vivido através do trabalho e do desejo. Dizia um grande mestre, que só a má apropriação do trabalho nos permite falar em mau gosto. O estudo do imaginário da Boca deixa entrever que este processo de elaboração simbólica por meio de fazer cinema, é uma maneira determinada de apropriação da matéria da vida e uma maneira determinada de apropriação do trabalho. Esclarece como a Boca ou as preferências do gosto são inequivocamente históricas. A palavra final cabe aos leitores.



Introdução

Na época de seu lançamento em 1973, o filme As Mulheres Amam por Conveniência não despertou maiores atenções. E nem havia motivos. Tratava-se de um filme brasileiro realizado com recursos limitados e de intenções inequivocamente comerciais. A referência ao mesmo fica por conta da historinha contada: um jovem técnico de cinema – interpretado pelo atual diretor/produtor Tony Vieira – participa das filmagens que se realizam numa fazenda e se apaixona pela atriz principal. É correspondido até o final dos trabalhos quando, repentinamente, a moça prefere ficar com o rico fazendeiro. O rapaz sofre um baque mas sua força de vontade e determinação levam-no a superar a fase difícil, tanto assim que, algum tempo depois, já consegue dirigir o seu próprio projeto. Um filme que estreia em noite de gala, sob aplausos e admiração geral. Por sobre os ombros dos fãs (no Brasil ??), ele percebe a presença triste e ar de abandono daquela moça que o rejeitara. O “mais recente ídolo do cinema nacional” escapa dos admiradores, ouve uma confissão de arrependimento e tudo termina bem.

Como se percebe, é uma história idêntica a milhares de outras, cuja única peculiaridade é o fato do personagem principal ser apresentado como profissional de cinema. Justamente aí reside o interesse pelo fácil. Seria fácil demais justificar a sua existência apenas como resposta operacional a uma demanda detectada no mercado. A hipótese levantada na apresentação do projeto “O imaginário da Boca”, sugeria que a solução – homem esforçado + moça sinceramente arrependida – atendia não só ás fantasias do público espectador, mas também àquelas dos autores. Ocorreria então uma identificação ao nível do imaginário que se confirmada ao final da pesquisa, traria novos elementos para a compreensão do êxito comercial dos filmes – pornochanchadas em sua maioria – produzidos na Boca de Cinema de São Paulo.


A Boca, que se tornara no decorrer da década passada, o maior núcleo de produção cinematográfica do país, permanecia até o início da pesquisa como um campo praticamente virgem à investigação. O alheamento demonstrado pela elite cultural revelaria, de tabela, um mecanismo acionado com assustadora frequência no Brasil: o não reconhecimento como recurso para anular a importância de um dado fenômeno. A necessidade de superar o tratamento superficial e generalizante na abordagem que se fazia dos filmes ali produzidos, onde um fracasso eventual de bilheteria se transformava em indicador seguro da derrocada de um gênero (no caso específico, a pornochanchada), orientou os trabalhos da pesquisa no sentido de ouvir os profissionais, acompanhar de perto suas atividades e observar paralelamente as reações da crítica e do público, frente aos filmes exibidos no circuito comercial.

A tarefa de ouvir/conversar com os profissionais de cinema não ocorreu sem problemas. Logo de início ficou claro que os entrevistados tomavam posição frente ao pesquisador, e exercitavam seus mecanismos de defesa com maior ou menor grau de sofisticação e eficiência. Custódio Gomes, por exemplo, não discutiu a pertinência das questões, preferindo responder como aluno obediente. Já Oswaldo Massaini, produtor consagrado e homem com acesso fácil aos meios de comunicação de massa, se sentiu à vontade para manifestar inúmeros pontos de vista, questionar as posições do interlocutor e depois de considera-lo a altura, comentar: “...no decorrer de minha carreira fui granjeando uma conceituação importante até o ponto de você me procurar para uma entrevista”. O pesquisador estava aprovado.

Tais constatações confirmaram a necessidade de ponderar as respostas obtidas, pelo risco latente de confundir o material de imaginário referente a cinema e universo da Boca, com a imagem que o entrevistado formava a respeito do pesquisador. De qualquer forma, o profissional de cinema se via na contingência de se “explicar”, segundo algumas formas básicas: o desprezo pelo próprio trabalho, numa posição claramente defensiva; preocupação em evoluir até uma posição harmoniosa com a visão mais acadêmica de cultura; e finalmente, há os que assumiram a postura de homens solitários (como os mocinhos do faroeste), em luta constante contra os obstáculos – dificuldade de conseguir dinheiro, hostilidade dos meios intelectuais, indiferença a imprensa, etc. Três alternativas do indivíduo e seu modo de ser em relação à cultura estabelecida.

O período que vai de 1978 até quase a metade de 1980, marcou um relacionamento ininterrupto com a Boca, que enriqueceu a visão do pesquisador ao mesmo tempo que tornou-se impossível manter uma postura neutra (ou científica se preferirem), pois o envolvimento emocional se mostrou inevitável.

Além dos depoimentos, foram reunidos textos da imprensa diária que focalizavam, ainda que indiretamente, a produção da Boca, releases de produtores, fotos, relatórios de exibição, diagnósticos do Sindicato dos Produtores, roteiros e documentos de época. Não faltou inclusive o comparecimento a algumas filmagens, e presença em uma ou outra avant-première. Sem falar, naturalmente, da atividade cotidiana de ver os filmes nas salas do centro da cidade.

O que se tentou nesse texto final da pesquisa, foi elaborar um perfil – o mais aproximado possível – deste universo cinematográfico em suas múltiplas instâncias, onde convivem o grande produtor e os técnicos que trabalham, na maioria das vezes, sem nenhuma garantia e a troco de ofertas aviltantes; a garota do bairro distante a sonhar com o estrelato, e a atriz que recebe 200 mil cruzeiros por sua participação num filme; o diretor estreante com o velho artesão já sem maiores ilusões, e que faz do cinismo a sua melhor defesa, e daí por diante. Em outras palavras, um pequeno mundo – aliás, único no país – onde só se respira cinema, e rico em diferenciações interna e nuançado o suficiente para não atingirmos num primeiro momento toda a sua complexidade.

Publicado originalmente em O imaginário da boca, por Inimá Ferreira Simões. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informação e Documentação Artísticas, Centro de Documentação e Informação sobre Arte Brasileira Contemporânea, 1981. (Cadernos, 6)

3 comentários:

ANTONIO NAVARRO disse...

EU, ANTONIO NAVARRO FIZ PARTE DESTE MELHOR MOMENTO, TRABALHEI COM TONI VIEIRA E TIVE OPORTUNIDADE DE TRABALHAR COM ANSELMO DUARTE NO FILME OS TROMBADINHAS E MUITOS OUTROS ATORES DA BOCA DO LIXO

Anônimo disse...

Matheus vc tbm possui o livro O Olhar Pornô, tbm do Inimà Simões ?
Abç
Rodrigo Alves ( 1176 )

ADEMAR AMANCIO disse...

Excelente inventário da Boca,parabéns pelo post.