quarta-feira, 13 de março de 2019

Amores de Noel: Ceci


CECI



Por Almirante

Em junho de 1934, o Cabaré Apolo, na Lapa, se engalanava para receber e homenagear Noel Rosa, devido aos marcantes sucessos de suas produções musicais. Era véspera de São João e a presença do compositor consistia uma das atrações que a casa prometia para aquela noite.

À sua chegada, Noel foi alvo de ruidosa manifestação. Sua atenção desviou-se, contudo, para certa figura “mignon”, cabelos castanhos, cujos modos recatados constratavam naquele ambiente festivo.

A jovem nascera em Campos, à 16 de maio de 1918 e chamava-se Juraci Correia de Morais, mas todos a conheciam simplesmente como Ceci.

Formosa e acessível, era uma das dançarinas mais requestadas do Apolo. Noel também se deixou impressionar, e dela não mais se afastou desde aquele instante. Acompanhou-a, à saída, e no carro de Papagaio conduziu-a à rua Barão de São Félix, para a casa em que residia com uma tia.

Como a apaixonada se conservasse em sua profissão, a fim de não sofrer as agonias de vê-la cumprir sua obrigação, abraçada a uns e outros, volteando a noite inteira, ouvindo galanteios e inconveniências, Noel se demorava pelos cafés, pelas esquinas da Lapa, até a hora em que o cabaré cerrava suas portas.

Não tardou, porém, que o ciúme lhe ferisse o coração, sempre incrédulo com as explicações de Ceci sobre suas naturais ausências. Daí nasceu o belo samba “Pra Que Mentir?”, de parceria com Vadico:

Pra que mentir?
Se tu ainda não tens esse dom
De saber iludir?
Pra que? Pra que mentir?
Se não há necessidade de me trair?
Pra que mentir?
Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?
Pra que mentir?
Se eu sei que gostas de outro,
Que te quis
Que não te quer.

Pra que mentir tanto assim
Se tu sabes que eu já sei
Que tu não gostas de mim?
Tu sabes que eu te quero,
Apesar de ser traído
Pelo teu ódio sincero,
Ou por teu amor fungido?


Diariamente Noel discutia com sua amada, mas, por fim, as pazes voltavam. E seus debates resultaram numa nova produção, o samba “O Maior Castigo Que Eu Te Dou”:

O maior castigo que eu te dou
É não te bater
Pois sei que gostas de apanhar
Não há ninguém mais calmo do que eu sou
Nem há maior prazer
De que te ver me provocar

Não dar importância
Á sua implicância
Muito pouco me custou
Eu vou cantar em versos
Os teus instintos perversos
É esse mais um castigo que eu te dou

A porta sem tranca
Te dar carta branca
Para ir onde eu não vou
Eu juro que desejo
Fugir de teu falso beijo
É esse o maior castigo que eu te dou.

Naquele ano, Noel esforçou-se o máximo, com o objetivo de aumentar suas rendas, quer sobre direitos autorais, quer de espetáculos em cinemas ou circos, podendo, assim, manter as despesas normais no seu chalé. Entretanto, o pequeno colégio de dona Marta esfacelava-se aos poucos e seu pai, na iminência de ser recolhido a uma clínica. Para o cúmulo, o dr. Edgar Graça Melo, velho amigo da família, impôs que Noel mudasse de clima, pois seu pulmão poderia ser fulminado. (vide cap. Belo Horizonte).

Num certo dia de março de 1935, Ceci recebeu a triste notícia de que Noel estava às ultimas, à morte, em Minas. Desesperada, rumou para a rua Teodoro da Silva, à noite, sendo atendida pela dona Marta, que lhe deu consoladoras notícias:

- Graças a Deus, Noel está muito bem. Está gordo, rosado, e até sábado chegará ao Rio. Com certeza, vai voltar a cantar no Rádio, no domingo.

Realmente Noel regressou de Belo Horizonte, acompanhado de sua esposa. Dona Marta informou:

- Anteontem esteve aqui uma senhora que eu não conheço, procurando por você.

- Como era ela?- indagou Noel.

- Era bonita, bem vestida, elegante, de chapéu. Com certeza era uma sua fã. Mostrou-se muita satisfeita quando disse que você está completamente bom.

Noel percebeu tudo. Era Ceci. E sem demora escreveu alguns versos, orientando as regras da melodia, a fim de que no dia seguinte o pianista Vadico completasse suas frases. E no “Programa Suburbano”, da Rádio Guanabara, a certa altura, o locutor Allah Xavier de Souza anunciou, retumbante como sempre:

- Noel Rosa acaba de regressar de Belo Horizonte, e criou uma nova série de sambas, de abafar! Em primeiro lugar, apresentará um samba seu, fresquinho, tirado a poucas horas do forno. Chama-se “Ilustre Visita”, versos seus com melodia completada por Vadico.

Seu título definitivo foi mudado, posteriormente, para “Só Pode Ser Você”. Seus versos significativos são como que um relatório completo da presença de Ceci em visita ao seu chalé. É que a própria dona Marta, admirada da elegância de dama, trajada a cetim, de chapéu e com maneiras distintas, indicou-a como uma “ilustre visita”:

Compreendi seu gesto
Você entrou
Naquele meu chalé modesto
Porque pretendia
Somente saber
Qual era o dia
Em que eu deixaria de viver;
Mas eu estava fora,
Você mandou lembranças,
E foi logo embora
Sem dizer qual
O primeiro nome
De tal visita
Mais cruel,
Mais bonita
Que sincera.

E pelas informações que recebi
Já vi
Que essa ilustre visita era você
Não existe nesta vida
Pessoa mais fingida
Do que você


Meses depois, em maio, Noel sofreu enorme choque emocional com a morte de seu pai, em circunstâncias trágicas, razão porque jamais revelou esse fato a ninguém, nem mesmo a seus companheiros mais íntimos. Sua vida descontrolou-se totalmente, tendo somente como único consolo a bebida, e entregando-se por inteiro, de novo, a seu grande amor – Ceci.

Sua inspiração cessou, e durante algum tempo não mais criou quaisquer versos ou melodias. As rendas de seus programas radiofônicos e as minguadas vendas de seus discos tornaram-se ridículas, e em certo dia, Ceci pediu-lhe o necessário para a confecção de um vestido especial, “soirée” indispensável para seu trabalho nos cabarés. O “exagero” do pedido acordou suas sátiras humorísticas surgindo assim o samba “Cem Mil Réis” ou “Voê me Pediu”, de parceria com Vadico.

Nos inícios de 1936, convidado para produzir o filme “Cidade Mulher”, de Carmen Santos, Noel lançou ali seis músicas inéditas (vide cap. “Cinema”). Permanecia toda a noite nas filmagens realizadas no Cassino Beira-Mar. De madrugada, terminadas as funções nos cabarés, aguardava Ceci conduzindo-a para assistir às várias tomadas do filme.

Antigamente, nas aproximações do Carnaval, as cantigas eram lançadas com a maior antecedência. Canções gravadas e editadas já eram apresentadas em setembro, outubro, novembro, para que o público melhor fixasse suas melodias e seus versos para o ano seguinte. Assim, nos fins de outubro, o próprio Noel apresentava dois sambas referentes aos amores de Ceci; o primeiro, de parceria com Vadico: “Quantos Beijos”:

Quantos beijos...
Quando eu saia
Meu Deus, quanta hipocrisia
Meu amor fiel você traia
Só eu é que não sabia
Ai, ai, meu Deus, mas...

Não andava com dinheiro todo dia
Para sempre dar o que você queria
Mas quando eu satisfazia os meus desejos
Quantas juras...Quantos beijos.

Não esqueço aquelas frases sem sentido
Que você dizia sempre ao meu ouvido
Você porém mentia em todos os ensejos
Quantas juras...Quantos beijos


O segundo só Noel, com versos sarcásticos, tentando dar provas falsas e tolas de um amor esquecido ou abandonado: “Quem Ri Melhor...”:

Pobre de quem
Já sofreu neste mundo
A dor de um amor profundo...
Eu vivo bem sem amor à ninguém...
Ser infeliz é sofrer por alguém...
Zombo de quem sofre assim:
Quem me fez chorar, hoje chora por mim
Quem ri melhor é quem ri no fim

Felicidade...
É o vil metal quem dá...
Honestidade
Ninguém sabe onde está
Acaba mal quem é ruim...
Pois quem me fez chorar
Hoje chora por mim:
Quem ri melhor é quem ri no fim

Sabendo disso
Eu não quero rir primeiro
Pois o feitiço
Vira contra o feiticeiro...
Eu vivo bem pensando assim...
Pois quem me fez chorar, hoje
Chora por mim:
Quem ri melhor é quem ri no fim


A 11 de dezembro de 1936, aniversário de Noel, Ceci recebeu convite para uma ceia na Taberna da Glória, ela que então trabalhava na Caverna, dancing existente no sótão do Cassino Beira-Mar...E Noel completamente febril, tentava dizer ironias e contar piadas, tomando cervejas geladas...

Seu estado se agravava, mas aparentemente se demonstrava despreocupado com a própria vida. Seu riso, porém, era cada vez mais triste. Um abcesso, rasgado pelo dentista Bruno de Moraes, insistiu para que novamente mudasse de ares. Por fim, seguiu, em fevereiro pra Friburgo.

Regressando ao Rio, visitou Ceci e, tristemente, lhe deu os versos de um de seus recentes sambas, inteiramente dedicado a ela, chamado “Último Desejo”:

Nosso amor que eu não esqueço,
E que teve seu começo,
Numa festa de São João,
Morre hoje sem foguete
Sem retrato...Sem bilhete...
Sem luar...Sem violão...
Perto de você me calo
Tudo penso...Nada falo...
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero o seu beijo
Mas meu último desejo
Você não pode negar.

Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não,
Diga que você me adora...
Que você lamenta e chora
A nossa separação.
Ás pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que o meu lar é um botequim...
Que eu atrasei sua vida,
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim.


Certa madrugada, Ceci encontrou-se com Hélio, irmão de Noel, em companhia de um seu primo-irmão, sendo convidada a ceiar. Palestrando a respeito da situação do doente, a certa altura, inopinadamente, o primo-irmão fez-lhe uma desfeita, atirando-lhe ao rosto um copo cheio de cerveja, taxando-a de culpada da moléstia do compositor. Dias depois Noel procurou-a, pedindo-lhe desculpas pelo ato impensado de seu primo. Foi a última vez que viu Noel Rosa.


Publicado originalmente em ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1963.

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