Playboy entrevista Nelson Gonçalves
Uma conversa franca com
o cantor de A Volta do Boêmio sobre
sexo, drogas e rock´n´roll, assuntos que, nessa ordem, apimentaram sua agitada
vida.
O senhor espigado que
vem de um dos cômodos do apartamento, aparecendo logo depois de anunciado pela
simpática empregada, não é nem de longe o que se espera dele – uma espécie de sócio
fundador da noite e dos seus pecados mais graves. Tem uma expressão descansada
nos olhos miúdos, exalta a lavanda do banho recém-tomado e, para quem quiser
conferir, exibe enorme dosagem de vitalidade comprimida num corpo que o boxe
ainda classificaria como peso-médio. Ele, aliás, lutou mesmo a vida inteira –
inclusive nos ringues, como profissional. Mas a classificação pugilística não
condiz, absolutamente, com o homem. Nelson Gonçalves não é meio nem médio. É
excessivo, na arte e em tudo o que faz, alternando golpes de violência e
ternura, como se encarnasse o drama de suas canções. Então, percebe-se: a
grande diferença é que ele não está interpretando nada. Ele é mesmo aquilo tudo
que canta – e muito, muito mais do que se possa supor.
Como se sabe, Nelson já
cheirou a morte em carreirinhas, foi preso, bateu bastante e apanhou um tanto,
foi subestimado como artista, humilhado em gravadoras, ameaçado por bandidos e
policiais, cometeu pequenos e grandes deslizes. Mas nunca jogou a toalha.
Da varanda do
apartamento da filha mais nova, Margareth, também sua empresária, Nelson contempla
os prédios em volta, volumosos pedaços de morro que cercam o bairro da Gávea,
no Rio, e boa parte de seu próprio passado. Mudou-se provisoriamente para cá no
ano passado, após separa-se da terceira mulher, Maria Luiza, com quem vivia
desde os anos 60. Já o passado...Bem está ganhando os novos contornos do
presente, construídos, como sempre, sob forte conteúdo emocional. No momento, o
trabalho consiste em divulgar nacionalmente um CD que incluí no repertório
Cazuza, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Lobão, Marina Lima e Lulu Santos,
entre outros porta-vozes do pop nacional. Em resumo, um Nelson da pesada, só
que cantando um rock adaptado ao seu estilo e à personalidade de sua voz.
A ideia não surgiu do
acaso. Já há um bom tempo ele vinha notando, surpreso, que o público dos seus
shows estava mudando de cara. As normalistas de outrora – hoje senhoras
sobreviventes de um tempo em que o mundo chegava pelo rádio e a música vinha em
forma de pesadas “bolachas” negras de 78 rotações por minuto – foram sendo
substituídas por gente na faixa dos 25 anos para baixo. “Eles é que estão me
acompanhando mais”, constata. “Acho que se cansaram de ouvir bobagens”.
O novo disco, portanto,
seria uma forma de retribuição a esse pessoal mais novo. Não deixa de ser também
uma oportunidade de chamar a atenção da geração mais jovem para o lado saudável
da vida, uma preocupação que Nelson passou a ter desde que, um dia, após
amargar sua ruína física, moral e financeira, entre os anos de 1958 e 1966,
compreendeu com clareza o longo rastro de destruição que estava deixando para
trás. O dinheiro, as propriedades, os amigos e o sucesso – tudo tinha se
perdido. As mucosas nasais também foram corroídas. Por um milagre, salvou-se
sua voz. O ré grave e profundo que aproxima o seu timbre ao de um barítono
continuava claro e cristalino.
Acrescente-se a isso o fato de que, depois de 57 anos de carreira, a voz de Nelson não baixou um tom, como acontece com os cantores entre os 45 e 50 anos. Ao contrário: subiu um tom e meio. “Acho que Deus queria mesmo que eu continuasse a cantar”, avalia. E, historicamente, essa é outra ironia. Nos anos 40, Nelson não conseguiu ser aprovado em nenhum concurso ou teste de que participou, tendo passado por todas as grandes emissoras da época. Em sua defesa, diz que enfrentou dois problemas: a gagueira, penosamente agravada pelo nervosismo, e uma insuperável pinimba que, no Rio, então capital federal e cultural do país, se refletia em desdém dos cariocas em relação aos paulistas. O preconceito acabaria atingindo Nelson que, apesar de gaúcho, se criou em São Paulo.
“Na verdade, não sou
gago”, protege Nelson sempre que se toca no assunto. “Sou taquilárico, que é o
sujeito que pensa mais rápido do que consegue falar”. O fato é que a voz,
falada, vinha entrecortada, em disparos. Quanto ao bairrismo, Nelson também
pouco podia fazer. Nem entrar nos bares frequentados pelos artistas da época
ele conseguia. Só algum tempo depois de gravar a primeira música – Sinto-me
Bem, de Ataulfo Alves, grande sucesso em 1941 – e ganhar reconhecimento
nacional, pôde tomar ali uma cachacinha.
Mas até aí o “Lado A”
da vida de Nelson já rodara, e também não tinha sido fácil. Filho de seu Manoel
e dona Libânia, cantores mambembes portugueses, ele nasceu pobre em Santana do
Livramento, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, e continuou nos
calcanhares da necessidade por muito tempo em São Paulo, para onde a família se
mudou quando o menino tinha 2 anos de idade. Aos 6 ou 7, não se lembra ao
centro, Nelson abandonou os estudos e passou a acompanhar o pai cantando nas
feiras livres.
Só que o dinheiro, mais
curto que as calças do garoto, levou Nelson a buscar algo mais rentável. Foi,
na sequencia, engraxate, carregador de troncos de madeira, polidos de metais,
garçom e, afinal, encantou-se com o boxe.
A reputação de valente
e macho, consolidada no Rio, foi também reforçada pelas mulheres com quem se
casou e viveu de fato – Elvira Molla, Lourdinha Bittencourt e Maria Luiza
Gonçalves – e aquelas com quem dividiu a vida artística. Foram muitas e de
todos os tipos e matizes.
Nelson tem sete filhos
– cinco adotivos – e treze netos. Seu patrimônio, compreende, entre outros
bens, 26 imóveis. Parece muito bem, apesar do enfarto sofrido em outubro do ano
passado e de uma infecção pulmonar que o apanhou logo depois. Ainda tosse de
vez em quando, entre um cigarrinho e outro. “Tenho 78 anos e me sinto como um
rapaz de 25”, exagera feliz. “Posso transar todo dia”. Recondicionado por uma
prótese peniana e apoiado numa copiosa discografia, Nelson não deixa margens a
dúvidas.
Para ficar numa
contabilidade rasteira, coisa só de Guinness: já vendeu cerca de 78 milhões de
CDs, LPs, cassetes, discos de 78 rotações e compactos duplos e simples, pelos
quais recebeu quinze discos de platina e 41 de ouro; até prova em contrário, é
o artista com maior permanência numa mesma gravadora – 59 anos na BMG Brasil,
antiga RCA. Foi também o ganhador do Prêmio Nipper, só concedido pela gravadora
a uma outra pessoa até hoje, pela vendagem de discos: Elvis Presley.
Não é de estranhar que,
numa rara incursão pelos Estados Unidos, tenha tido entre seus entusiasmados
ouvintes uma legenda chamada Frank Sinatra, que segundo conta foi
cumprimenta-lo e com que saiu dali para uma boa farra nos inferninhos do
Greenwich Village. O vozeirão limpo e sem floreios bateu fundo até em gente
como o menino Caetano Veloso, em Santo Amaro da Purificação (BA), que ao
ouvi-lo cantar Maria Bethânia, do compositor pernambucano Capiba, teria
recomendado à mãe, dona Canô, dar à irmã esse nome.
Para conferir essas e
outras histórias com o próprio Nelson e entender por que é impossível riscar o
seu nome dos nossos cadernos, PLAYBOY envio ao Rio de Janeiro o jornalista Bob
Jungmann que teve um total de 12 horas de conversas de pura franqueza e emoção.
Eis o que ele achou de tudo:
“Nelson não é de meias
palavras e todo jornalista gosta disso. A entrevista rende. Mas, no caso, a
sinceridade chega a ser incômoda, áspera. Isso até que a gente perceba que essa
honestidade e despudor ao falar de si são tão próprios dele como a voz, o jeito
simples de ser e a maneira de comentar as coisas que o incomodam sem nenhuma
preocupação com tratos ou refinamentos, que poderiam pôr tudo a perder”.
“Ele não se conforma,
por exemplo, com os brilhos das roupas, os requebros, os trejeitos e maneirices
de muitos cantores e compositores que admira e com quem gravou. Nisso, não faz
concessões nem a óculos escuros, acessório que figura no seu rol de objetos
suspeitos e que eu trazia no bolso do paletó no dia em que fizemos a primeira
entrevista. ‘Você não usa, né’, perguntou. Disse que sim, mas ele não se
constrangeu: ‘É coisa de bicha, sinceramente’.
“Ele é uma pessoa tão
rude quanto doce”, diz Leninha, 50 anos, a filha mais velha, astróloga, que já
alguns anos prepara um livro sobre sua vida. ‘E na verdade ele não tem nem
ideia do tamanho do cantor que é’, assegura. Por isso, ela vem recolhendo os
muitos fiapos da história do pai, fragmentos de um todo que tenta montar com o
auxílio de sua própria memória e pegando caronas em gravações de entrevistas
que ele dá – incluindo esta.
“A melhor definição de
Nelson Gonçalves, no entanto, colhi num táxi entre o Aeroporto Santos Dumont e
a Gávea. O motorista, entrado nos 60 anos, fino no gosto musical, resolveu me
agradar colocando uma gravação de Betty Carter no toca-fitas. Perguntou se eu
gostava e eu disse que a achava muito boa. ‘E de Nelson Gonçalves, você
gosta?”, provoquei. Ele apertou um botão que cuspiu a fita para fora, vasculhou
as lembranças por alguns instantes e batucou no painel, numa entonação quase
correta: ‘...Eu quero esse corpo / que a plebe deseja / embora ele seja /
prenúncio do mal’. Feliz ao descobrir o contrário, passou a contar casos que
tinha vivido embalado ‘pelas músicas do homem’, entremeando as passagens mais
picantes com trechos antológicos da famosíssima parceria Nelson- Adelino
Moreira, que se arrastou por mais de quarenta anos.
“Cantarolei também
alguns pedaços de música, sem me dar conta do quase ridículo da situação –
passageiro e motorista soltando a voz num trânsito pesado e modorrento. Já na
Rua do Horto, próximo às majestosas palmeiras imperiais do Jardim Botânico, ele
lembrou uma passagem de uma música que só me recordava vagamente (Meu Triste Long Play), e que mais tarde
tive que pesquisar para reproduzir aqui, em alta fidelidade: ‘Ligue a sua
eletrola/ vista o seu néglige / deite-se, acabe o cigarro / que eu no cinzeiro
deixei / quero sentir que você / na maciez do seu ninho / dormiu ouvindo
baixinho / meu triste long play”.
“Virou-se então para
trás, com aquela cara de quem carrega uma certeza absoluta, e sentenciou: ‘O
homem é foda!’
“Tem toda razão: é”
PLAYBOY-
Uma das advertências que se faz a quem vai entrevista-lo é não ir de óculos
escuros, que você considera um objeto suspeito. Por quê?
NELSON GONÇALVES- Não,
eu não acho suspeito, eu considero coisa de veado mesmo (risos). E não é? Acho muito engraçado que esse pessoal, quando
começa a fazer sucesso, faz o que pode para ser entrevistado, sair nos jornais
e revistas, ir para a televisão, etc. Mas depois que ganha um pouco de fama,
bota óculos escuros, tampando a cara para ninguém ver.
PLAYBOY-
Você também implica com as roupas do pessoal e...
NELSON- (interrompendo) Há pouco tempo eu vi um
grande cantor – não vou dizer o nome, quem quiser que adivinhe – num show em
São Paulo, com uma roupa que parecia de um príncipe das Mil e Uma Noites.
Fiquei reparando coisas douradas, cheio de balangandãs e pensei: “Que porra é
essa?” Não é preconceito, entende? É que na minha época o sujeito era cantor
porque tinha voz e não porque usava fantasia. Hoje, tem cantor que só canta
emplumado e vira a bunda para as câmeras, pra mostrar. (Enfático) Ah, tenha paciência!
PLAYBOY-
Consta que você também faz sérias ressalvas a certos gêneros de música, como a
Bossa Nova.
NELSON- Gravei alguma
coisa de bossa nova, mas confesso que não gosta muito daquela divisão de
música. Sempre digo que bossa nova é música de apartamento, e eu sou cantor do
terceiro uísque. O João Gilberto, por exemplo, não tem voz nenhuma... (Imitando, bem baixinho) “Se você disser
que eu desafino, amor...” Não dá para ouvir, você tem que fazer assim (aproximando o ouvido). Bossa nova é um
ritmo que cantei por causa do Tom Jobim e do Vinícius de Moraes.
PLAYBOY-
Como era o seu relacionamento com o Tom Jobim?
NELSON- Pessoalmente
ele era um chato.
PLAYBOY-
Um chato? O Tom?
NELSON- Um chato. Era
enjoado, cheio de coisas. Além disso, ele tinha uma rusga com o Ary Barroso – e
o Ary Barroso era o Ary Barroso. Fez Aquarela
do Brasil que estourou no mundo todo. E o Tom Jobim queria ser mais do que
ele. Foi a Nova York, gravou com Sinatra, mas não adiantou, não passou o Ary. A
música brasileira mais tocada no mundo até hoje é Aquarela do Brasil. Agora, o Tom era um grande compositor. Em termos de música, era sensacional – mas
não de letras. Fazia umas letras muito bobas.
PLAYBOY-
E com o Vinícius, como era a convivência?
NELSON- Muito legal.
Até os primeiros uísques. Depois de alguns, complicava porque ele ficava
grogue. Vinícius, sim, esse era um tremendo letrista, um sujeito extremamente
inteligente. Mais ou menos como é hoje o Chico Buarque. O Chico faz mal música,
mas é um ótimo letrista.
PLAYBOY-
E o Caetano e o Gil?
NELSON- Gosto muito do Caetano
e do Gil, gravei músicas deles. Mas tenho minhas reservas pra algumas
“frescalhadas” que eles adotaram, aquelas túnicas, aquelas coisas de Filhos de
Ghandi, Filhos de Oxóssi e filhos de não sei mais quem...Aqueles turbantes...É
como esse negócio de timbalada. É bum-pá-pá-pá, bum-pá-pá-pá. Não tem nada a
ver. Música é outra coisa. Não é a toa que esse pessoal se emociona quando
acompanha minhas gravações no estúdio. Tem uns até que choram de emoção. Eles
ouvem a música deles cantada por mim e falam: “Meu Deus, eu fiz isso mesmo?”.
PLAYBOY-
Dos cantores atuais, quais os que mais o entusiasmam?
NELSON- Poucos. Aprecio
o (Agnaldo) Timóteo, que tem uma voz
boa, forte, e está cantando com mais alma e coração, agora. Do Roberto Carlos
eu gosto, mas como cantor é difícil falar, ele praticamente recita. Só que tem
muito valor como artista, lógico. E...não sei, assim, quem mais apontaria.
PLAYBOY-
E as mulheres? Ângela Maria?
NELSON- Ângela Maria já
cantou melhor, mas ainda está cantando muito bem. Mas como a Elis Regina não
tem ninguém. Era muito versátil. Foi a melhor de todas. Na minha época, tinha
outra de quem eu gostava, a Dircinha Batista, que era muito boa mesmo. Acho que
fico por aqui, sabe? Tenho pra mim que é determinado tipo de cantor, ou cantora,
só aparece uma vez por século. É como no futebol: teve o Pelé, que foi o maior,
e teve gente como o Zico, que foi bom mas não foi um Pelé. Na música, você tem
o Frank Sinatra. É uma marca. Se acabar, acabou.
PLAYBOY-
Por falar nele: você já gravou em inglês?
NELSON- Não gravei, mas
já cantei em inglês, no Rádio City Music Hall, em Nova York. O Frank Sinatra
foi lá me ouvir, e depois veio falar comigo. Disse: “Wonderful, Wonderful! Your voice is the best of the world”. Imagine
o Frank Sinatra me dizer que minha voz era a melhor do mundo. E arrematou: “It´s impossible for me to sing like you, so
simple”. (É impossível para mim cantar como você, de modo tão simples).
PLAYBOY-
Vocês se conheceram melhor ou ficou nisso?
NELSON- Fomos para umas
boatezinhas que ele conhecia, uns lugares fechados, inclusive com muita puta e
veado. Mais tarde apareceu lá a (cantora)
Maysa Matarazzo, que veio me cumprimentar e se sentou no meu colo. Sinatra quis
saber quem era, eu disse que era uma cantora brasileira. Ele olhou pra ela
sentada na minha perna e perguntou: “Ela é louca?”. Falei pra ela: “Ô Maysa, se
ajeita aí que você não está agradando o homem” (risos).
PLAYBOY-
Os fatos de sua fita transparecem nas letras de suas músicas. A propósito: você
ainda escreve?
NELSON- Claro. Tenho
muitas letras inéditas.
PLAYBOY-
Opa! Queremos ouvir uma, pelo menos. Pode ser?
NELSON- Bem, vou
recitar o trecho de uma, que se chama O
Mais. (Dando explicações preliminares).
Quando eu falo O Mais estou me
referindo ao momento maior do amor, o beijo, da saudade. É assim: “Tu és o
insensível mais de toda a emoção / Tu és, de todo o céu, o quente e o mais
inferno / Tu és, de todo o frio, o mais verão / Tu és, do mais verão, o inverno
onde me hiberno”. Mas eu acho que tem que me levar junto para explicar o que
quer dizer (risos). O Chico Buarque
me disse: “É linda, mas eu não entendi porra nenhuma” (risos).
PLAYBOY-
Mas o pior problema não seria a indigência das letras das músicas que alguns
desses cantores que você descreve cantam?
NELSON- Bem, se você
for ver, realmente tem pouquíssima gente fazendo alguma coisa que se aproveite.
Veja isso (recitando): “Menti, e como
consequência perdi teu amor e tua inocência / Sou agora uma saudade esquecida /
uma lembrança perdida / Eu sou o vazio que fica depois do amor / Sou o tédio, o
ódio / Sou o despeito / Sou tudo o que
não é direito / Eu sou o esquerdo do amor”. É minha, essa. Chama-se O Esquerdo
do Amor. Vê se fazem alguma coisa assim hoje em dia!
PLAYBOY-
Lembra Lupicínio (Rodrigues, compositor
gaúcho). A propósito, pouca gente sabe que você é gaúcho. Como foi nascer
na fronteira com o Uruguai?
NELSON- Sou filho de
portugueses, cantores ambulantes. Eles cantavam nas feiras livres, praças. Meu
pai tocava violão, minha mãe cantava e depois eles corriam aquele célebre
pires. Meu velho também fazia umas poesias e eles vendiam por uns 500 réis. Por
isso nasci em Santana do Livramento. Fui para São Paulo quando tinha 2 anos.
PLAYBOY-
Como foi a chegada à Paulicéia?
NELSON- Foi uma barra.
Ficamos uns dois anos no Canindé, mas aquilo, nos anos 20, não era brincadeira
ficava inundado a cada chuva. Em 1929 fomos para o Brás. Meu pai comprou uma
casa na Rua Almirante Barroso, 928, custou se não me engano 9 contos de réis.
Foi nessa casa que me criei.
PLAYBOY-
Muita dureza?
NELSON- Demais. Comecei
a trabalhar muito cedo. Mas como sempre cantei, desde pequenininho, era sempre
chamado para cantar na escola também. No recreio os moleques me gozavam: “Olha
o tenorzinho”. Um dia, quando a professora me escalou para cantar, falei que
não ia. Ela insistiu. Naquele vai-não-vai, joguei o tinteiro nela. Veio a
diretora, aquele forrobodó (risos).
Naquele tempo o castigo era duro! Me botaram num quarto escuro com uma caveira,
um lugar para assustar a molecada (risos).
E o chão era cheio de milho, para a gente se ajoelhar em cima. Fiquei ali um
tempo, mas achei aquilo demais. Aproveitei para quebrar o esqueleto. Arrebentei
aquela coisa toda, arrombei a porta e fui embora pra casa. Cheguei e minha mãe
estranhou (imitando sotaque lusitano):
“Já vieste? O que aconteceu para chegar tão cedo?” Ela ficou uma fera. Aí
chegou meu pai (voltando a carregar o
sotaque): “O quê? Não quiseste cantar o hino da tua pátria? Tu é muito
safado!”. Aí pegou o cinto e mandou ver pra cima de mim.
PLAYBOY-
Apanhou muito?
NELSON- Já viu, né? No
dia seguinte, ás 6 horas da manhã, ele me acordou. Me enfiou um calção, uma
blusa, pegou um caixote de cerveja vazio, os livrinhos de poesia dele, uma
bolsa que naquele tempo a gente chamava de bornal, e fomos atrás de um
ceguinho, o Toninho, que tocava bandolim. Seguimos para a feira do Pari (bairro da zona norte de São Paulo). “Chegando
lá” – ele disse – “tu sobes no caixão, eu faço a introdução no violão e tu
começas a cantar A Malandrinha. (Batucando na mesa): “És malandrinha, não
precisas trabalhar”. Não tive como escapar. Subi e cantei.
PLAYBOY-
Gostaram da sua estreia?
NELSON- Quando acabei,
todo mundo bateu palma, foi aquele negócio. Mas eu era muito pequeno. Estava
assustado como aquela gente toda em volta. Aí meu pai falou: “Agora vai correr
a bolsa, anda”. Eu pedia: “Dá aí alguma coisa para ajudar o ceguinho”. Comovia
mais o pessoal, entende? Mais adiante, parava na frente de um botequim e
cantava de novo. E assim ia.
PLAYBOY-
O dinheiro era suficiente?
NELSON- Menos para o
ceguinho.
PLAYBOY-
Como assim?
NELSON- Meu pai, que
sempre foi malandro, pegava o dinheiro e dizia, sumulando a divisão: “Para ti,
ceguinho, 1 mil réis. Para mim, outro mil réis. Para meu filho que é menorzinho
500”. Só que ele botava 500 réis pro ceguinho, 1 mil pra mim e 1 mil pra ele.
Era um roubo desgraçado (risos).
PLAYBOY-
Quanto tempo durou a embromação?
NELSON- Um ano a um ano
e meio. Até que eu cansei e disse que não queria mais cantar. Arranjei um
emprego na Tamancaria Campos, no Brás. Minha função era carregar troncos de
madeira para fazer os tamancos. Rapaz, carregava tanta madeira que criei um
calo aqui nas costas!
PLAYBOY-
Como carregador de troncos, então, você era pau pra toda obra? (Risos.)
NELSON- Era, tanto que
fui promovido para a seção de serragem dos tamancos (risos). Estava com uns 12 anos. Trabalhei lá até que meu irmão me
arranjou um emprego na Wolff Metais. Fui ser polidor. Sabe o que é isso? Você
tem que pegar umas cinco ou seis facas de uma vez numa mão e polir no esmeril.
Fica pretinho com a fagulhada que sai. Saía da fábrica umas 5 horas e ás vezes
ia bater uma bolinha perto da Estação Bresser.
PLAYBOY-
Futebol? Não consta isso em nenhuma reportagem sobre você.
NELSON- Mas eu jogava.
Foi jogando bola, inclusive, que um dia eu conheci um tal de Venâncio
Fernandes, que mais tarde se tornou campeão brasileiro de boxe na categoria
peso leve. No meio de uma pelada, ele um dia me deu uma porretada. Fui achar
ruim e ele me embolachou todo. Cheguei em casa todo ensanguentado. Meu irmão
perguntou o que tinha acontecido e fomos atrás dele. Não achamos mais. Mas
aquilo ficou na minha cabeça. Pensava: “Que merda! Ainda vou à forra”. E aí,
quando fiz 16 anos, disse para mim mesmo: “Vou jogar boxe”.
PLAYBOY-
Uma decisão tomada de sangue quente, então?
NELSON- Foi. Larguei o
emprego. Nem terminei o curso primário – vim terminar os estudos muito tempo
depois, no Rio. Fui lutar na Academia Guarani, no Tatuapé. Mas não estava
pensando no boxe como profissão. Jogava boxe para pegar o tal Venâncio.
PLAYBOY-
E como foi o confronto?
NELSON- Não houve,
porque quando eu estava pronto ele estava encerrando a carreira. De qualquer
forma, resolvi continuar lutando. Fiz de umas trinta a quarenta lutas em São
Paulo. E só perdi duas: a primeira e a última.
PLAYBOY-
Como era possível conciliar o boxe e a música?
NELSON- É que, mesmo
lutando, eu vivia cantando. Com os amigos, sozinho. Por isso me chamaram de
“pugilista-cantor” e o apelido pegou.
PLAYBOY-
Por que desistiu do boxe?
NELSON- Acontece que
fui lutar em Santos com um uruguaio chamado Acosta. Era campeão no Uruguai,
muito melhor que eu. Mas me anunciaram como “pugilista-cantor e fui pra cima. O
sujeito ia lá e –plaft! – na minha
cara. A torcida gritava: “Dá-lhe cantor” e o sujeito – plaft! – me batia. No segundo round eu já tinha levado uns quatro a
cinco sopapos, daqueles feios mesmo. Aí, pensei: “Se eu ficar aqui, nem cantor
eu vou ser mais”. Fui me aguentando o quanto pude mas o sujeito me pegou. Caí.
O juiz começou a contar. Eu disse: “Por mim, o senhor pode contar até mil, que
vou ficar aqui mesmo” (risos). Quando
me levantei, decidi: vou parar com o boxe.
PLAYBOY-
Você chegou a lutar com Éder Jofre, no Ibirapuera, não foi? Como foi o combate?
NELSON- Empatei com
ele.
PLAYBOY-
Um empate com Éder Jofre é a glória para qualquer um. Você não parou
precipitadamente?
NELSON- Não sei, mas o
fato é que depois daquela luta com o Acosta eu não queria mais.
PLAYBOY-
Bom, depois que o Nelson Gonçalves boxeur saiu de cena...
NELSON- (Cortando)...Nelson Gonçalves, não,
Antônio Sobral.
PLAYBOY-
Era o seu nome de guerra – ou melhor de luta?
NELSON- (risos) Era. Acontece que meus pais não
podiam saber que eu lutava. E se usasse meu nome verdadeiro – Antônio Gonçalves
-, minha mãe ia descobrir na hora.
PLAYBOY-
Mas por que seus pais não podiam saber?
NELSON- Primeiro,
porque não gostavam de boxe. Segundo, porque não dava para viver do boxe. Sabe
o que eu ganhava? Um cestinho de laranja e um bife desse tamanhinho. Não estou
brincando: lutava em troca de comida. Daí porque naquela luta, em Santos, eu
fiquei pensando: “Puxa, não ganho nada e ainda estou apanhando como uma
besta...Vou é cantar no rádio”.
PLAYBOY-
É sempre melhor um Nelson Gonçalves cantando do que um Antônio Sobral apanhando
(risos). Mas onde foi que você começou?
NELSON- Bem, fui
procurar uma prima da minha mulher, Tânia Carvalho, que foi cantora da Rádio
nacional. Disse que queria fazer um teste. Ele me ouviu cantar e disse: “Puxa,
você canta bem mesmo”. Aí me fez um bilhetinho para eu levar para o maestro
Gabriel Migliori, na Rádio São Paulo. Isso foi em 1938. Entreguei o bilhete
para ele e fiz um teste. Quando terminei, ele disse: “Taí, gostei de você. Vai
ser contratado. Quanto quer ganhar?”. Eu não sabia o que dizer. Disse: “Não
sei, o senhor vê aí”. Ele perguntou: “300 mil-réis por mês está bom?”
PLAYBOY-
Pra você estava, lógico.
NELSON- Se estava?
Aquilo era uma fortuna pra mim. Eu só disse baixinho: “Está bom”. Mas estava
quase berrando de alegria por dentro. Quase que desmaio. E a estreia ficou para
o programa de rádio Teatro Alegre, do
Tom Bill. O apresentador era o Aurélio Campos que mais tarde foi deputado
federal.
PLAYBOY-
Você já se sentia seguro?
NELSON- Mais ou menos.
Mas tinha ensaiado bastante. (Batucando
na mesa: “Meu primeiro amor / Vem ouvir meus ais / São lamentos d´alma...”).
Fomos para o estúdio e o Aurélio Campos me anunciou como Nelson Gonçalves. Era
a primeira vez que me chamavam assim. Eles chegaram à conclusão que Antônio
parecia nome de dono de botequim. Concordei. Quando veio a introdução da
música, o violonista, sem-vergonha, em vez de tocar em dó menos, como a gente
tinha ensaiado, começou em ré. Aí, quando eu tinha que entrar cantando, não
entrei.
PLAYBOY-
Desistiu?
NELSON- Pois é, não
entrei. Fiquei mudo. Com habilidade, o Aurélio Campos falou qualquer coisa
como: “Amados ouvintes, o cantor lamentavelmente está muito nervoso com a
estreia. Assim, hoje não deu para fazer esta apresentação, mas na semana que
vem ele volta”. Agradeci e saí do estúdio. Fui pra cima do violonista. “Como é
que você faz um negócio desse?” Fiquei louco. Na semana seguinte, avisei a ele:
“Vá lá se não erra de novo, hein? Te quebro esse violão lá no estúdio”. Ele
disse: “Pode deixar”. Tocou direito, eu entrei certinho, foi uma beleza. Cantei
três músicas. Fiquei então me apresentando na Rádio São Paulo.
PLAYBOY-
Então o seu início de carreira não foi tão ruim quanto dizem?
NELSON- Ah, rapaz,
teria sido bom se não tivesse acontecido a Segunda Guerra Mundial. Quando ela
estourou, em 1939, a rádio mandou todo mundo embora, por medida de economia.
Inclusive eu. Na verdade, não entendia o que a porra da guerra tinha a ver com
a rádio...Fui então trabalhar na Rádio Cultura. Lá, inclusive, abri um barzinho
para continuar a viver. Depois veio a Rádio Sul, onde voltei a ganhar 300
mil-réis por mês. Mas o fato é que São Paulo não tinha a mesma expressão que o
Rio tinha. Eu ouvia a Rádio Mayrink Veiga, a Rádio Nacional, e pensava: “Tenho
de ir para o Rio”.
PLAYBOY-
Se você há era bom, já cantava...
NELSON- ...Eu tinha de
arriscar. Criei coragem e peguei um trem, na segunda classe, com 20 mil-réis no
bolso. Não conhecia ninguém. Fui parar numa pensão na Rua da Alfândega. Para
dormir, num quarto com vários beliches, eram 5 mil-réis. Fiquei lá com o Zé
Bambo, Deoclides e Zé Fechado – todos artistas de circo. E já no dia seguinte
fui fazer um teste na Rádio Mayrink Veiga, com o César Ladeira.
PLAYBOY-
Que música escolheu?
NELSON- (Cantarolando) “Se eu pudesse um dia /
aos teus pés poria / toda a natureza...” Cantei bem, mas o César Ladeira disse:
“Olha, meu filho, lamento, mas não gostei”. Saí amargurado. Fui para a Rádio
Ipanema, fazer teste com o Carlos Frias. Ensaiei, cantei, e a mesma coisa: “Não
é nada disso. Pode voltar para São Paulo”.
PLAYBOY-
Como se explica uma coisa dessas?
NELSON- Havia uma rixa
muito grande entre São Paulo e Rio. Quem vinha para o Rio era chamado de
italianinho. E não tinha conversa o sujeito que não fosse daqui não tinha vez.
PLAYBOY-
A coisa chegava a esse ponto de se vetar um artista de talento?
NELSON- Chegava. Era
impressionante. Quer ver uma coisa? Fui procurar o Ary Barroso, na Rádio
Transmissora. Me apresentei, expliquei que era cantor profissional, trabalhava
etc. Ele topou me incluir entre os calouros, mas não cheguei nem à metade da
música. “Pode parar. O que é que você faz em São Paulo?” Respondi que era
cantor. “E o que você faz?”. Disse que antes lutava boxe. Ele então falou, na
minha cara: “Pois volte para São Paulo e para o boxe, que você não canta nada”.
Fiquei puto. E o pior é que eu sabia que era bom. Mas caía naquela briga entre
São Paulo e Rio e ficava bloqueado por uma panelinha.
PLAYBOY-
Era assim mesmo?
NELSON- Do jeito que
estou falando. Sem dinheiro, voltei para São Paulo de caminhão. Fui ser garçom
de um botequim que meu irmão abriu na Avenida São João. Fiquei lá uns dois
anos. Até um dia conheci os compositores Rosano Monello e Oswaldo França. Eles
me disseram que o Cássio Muniz, que tinha uma casa de eletrodomésticos na Praça
da República, compraria 10.000 discos se eu gravasse na RCA. Pô, levei um
choque.
PLAYBOY-
Seria o primeiro disco, não é?
NELSON- Seria. Teria
que gravar na Rádio Record, pegar uma carta do Cássio Muniz, vir para a RCA,
aqui no Rio e estava feito. Não tive dúvidas. Fui para a Record, gravei duas
músicas em cera. Quando ouvi, não acreditei. Tinha ficado lindo. Levei para o
Cássio, que me fez a carta, confirmando a compra de 10.000 cópias. O problema
era arranjar dinheiro para comprar roupas decentes e me segurar no Rio.
PLAYBOY-
Você não tinha grana?
NELSON- Nada, estava
duro. Sabe o que eu fiz? Fui para o caixa do botequim do meu irmão e comecei a
aumentar os preços, na hora da conta. Um tiquinho aqui, outro acolá, no fim de
alguns dias eu tinha 70 mil-réis no bolso. Me mandei e vim de novo para a pensão
da Rua da Alfândega, onde reencontrei os rapazes do circo. Fui para a RCA, na
Rua 1º de Março. O diretor de apresentação e fomos ouvir a gravação. “Muito
bom, muito bom. Você canta muito bem. Onde fez essa gravação?”. Aí desgraçou
tudo.
PLAYBOY-
Ele não tinha gostado?
NELSON- Tinha. Mas
naquela época eu era muito gago. Bastava dizer que tinha sido na Rádio Record,
em São Paulo. Mas na hora, naquele entusiasmo, nervoso, comecei a gaguejar. Ele
então olhou pra mim e disse: “Epa! Peraí! Saí daqui, seu gago sem-vergonha.
Você não é cantor porra nenhuma!” Fui posto pra fora da RCA como ladrão de
disco, acredita? (Risos.)
PLAYBOY-
É difícil acreditar.
NELSON- Mas foi assim
mesmo. Voltei pra pensão, contei o caso pro pessoal e eles se solidarizaram
comigo. Eu queria bater no seu Vitório. Fiquei num estado de nervos desgraçado.
No dia seguinte, ás 9 da manhã, eu já estava lá. Ele me viu e perguntou: “De
novo aqui, gaguinho?” Já ia partir pra cima dele, mas nesse dia estavam gravando
lá o Benedito Lacerda e seu Regional. Benedito viu a confusão e veio apartar.
Quis saber o que estava acontecendo e o Vitório contou a história. Benedito
quis ouvir o disco e depois perguntou: “É você mesmo?” Garanti que era. “Você
cantaria agora para provar?” Topei. Fomos pra o estúdio. Ele puxou em si menos
e eu ataquei. Aí ele gritou: “Chega”. Pensei: “Porra, mais um que vai dizer que
eu não presto”. Virou-se para o Vitorio Lattari e disse: “Contrata esse rapaz
que ele vai ser o maior cantor do Brasil” Ah, foi aquele alívio!
PLAYBOY-
Quantos anos você tinha?
NELSON- Dezenove. Foram
providenciar o contrato. Fui ler e vi que, no fim, eu ganharia 1 tostão por
disco. Um tostão seria quanto, hoje? Acho que 1 centavo. Fiz as contas e vi que
daria 1.300 mil-réis por trimestre. Mas marcamos a gravação assim mesmo.
PLAYBOY-
Quem vê o Nelson de hoje não imagina esse aperto todo.
NELSON- Pois é. Mas aí,
saindo do estúdio, na Rua da Carioca, encontro por acaso o Ataulfo Alves. Me
apresentei, disse que queria gravar músicas de compositores consagrados, etc.
Ele ficou intrigado, mas me mostrou um samba inédito. (Cantarolando: “Sinto-me bem quando estou na solidão...) Aprendi a
música ali, na hora. Tenho essa felicidade, esse dom. Ele não acreditou e eu
cantei. Ganhei a música.
PLAYBOY-
Sinto-me Bem foi a sua primeira
gravação em disco, não foi?
NELSON- Foi. Era um
samba sincopado – o primeiro desse tipo gravado no Brasil. Quando o disco saiu,
fui ver o movimento daquelas máquinas em que você botava um níquel e a vitrola
tocava. Lembro até hoje que a minha música era a de número 21. Em uma semana a
música tomou conta do Rio.
LENINHA- (Filha de Nelson, entrando). Posso gravar
também? Sabe, é que estou fazendo um livro sobre papai.
PLAYBOY-
Fique à vontade.
NELSON- (Retomando o assunto). Mas o problema é
que eu não cantava nas rádios. E rádio era tudo, naquele tempo. Foi o Carlos
Galhardo, inconformado, quem me levou para a Mayrink Veiga. Fomos falar com o
Cidmar Machado, que era o diretor. Carlos Galhardo disse: “Esse é o homem que
eu falei para você que vai fazer o maior sucesso no Brasil”. Cidmar mandou vir
o contrato. “Seiscentos mil-réis está bom?”, ele propôs. Fechei na hora. Pra
quem estava passando fome...
PLAYBOY-
Foi aí que você começou a ganhar dinheiro?
NELSON- Ainda não.
Estava numa merda de fazer gosto. Dormia na Praia do Flamengo, porque não tinha
onde ficar. Mas quando começou a entrar o dinheiro da gravação do disco, em vez
dos 1.300 que eu imaginava ganhar por trimestre entraram 17.300 mil-réis.
Porra, era uma fortuna. Logo depois gravei Renúncia, que estourou no Brasil
inteiro. Vendeu mais de 100.000 discos, um recorde absoluto. Daí, fiz mais de
sete sucessos seguidos. E assim gravei o primeiro LP do país, em 1955. Fiz em 3
horas o disco todo.
PLAYBOY-
Mas você não errava? A voz pode falhar, isso é normal.
NELSON- Vou dizer uma
coisa: nunca repeti uma música na hora de gravar. Não erro e a minha voz não
falha. Pelo menos, nunca falhei. E
olha que já gravei 127 LPs, umas 200 fitas cassetes, uns 200 compactos, 183
discos em 78 rotações e mais 26 CDs. Fora os álbuns, que são vendidos em
caixas. É recorde mundial.
PLAYBOY-
Você tem todos os seus discos?
NELSON- Tenho tudo,
inclusive os de 78 rotações. Agora, a BMG está remasterizando o meu repertório,
mas é muita coisa. Algumas músicas eu não me lembro mais. Outro dia, durante um
show, um sujeito pediu: “Nadir! Nadir!” Eu perguntei: “Quem é Nadir?” Era uma
música que eu tinha gravado e nem me lembrava (Cantando: ‘Nadir, oh Nadir / boneca encantadora...”) Pedi para ele
ir falando a letra na frente e ia cantando depois (risos).
PLAYBOY-
Quem era os bons cantores e compositores da época?
NELSON- Francisco Alves
era o melhor. (Exagerando.) Ele
cantava aqui na Gávea sem microfone e você escutava no Largo da Carioca. Era
voz mesmo. Depois tinha o Orlando Silva, o Sílvio Caldas, o Vicente Celestino,
o Ciro Monteiro cantando samba...
PLAYBOY-
Como você escolhia o compositor? Era uma coisa intuitiva?
NELSON- Eu gravava as
músicas que gostava, mas fiz muitas músicas também. (Cantando.) “Fica comigo
esta noite / e não te arrependerás / Lá fora o frio é um açoite / Calor aqui tu
terás...”. Escultura também é minha. Compus Ingrata,
Olhos Negros...Tenho 104 músicas
minhas gravadas. Já gravei tudo o que você já ouviu e nem imagina. Acabei de
gravar rock. É um disco pra vender mais de 500.000 cópias. Só que é um rock
romântico, à minha maneira.
PLAYBOY-
Nelson Gonçalves cantando rock não parece meio esquisito?
NELSON- Vai causar um
impacto desgraçado, rapaz. Aliás, a Polygram, quando soube, quis comprar
500.000 cópias na hora. E há pouco tempo, quando fui falar sobre o fim do
contrato com a BMG, não quiseram nem conversa. Me ofereceram um (automóvel) BMW do ano e mais dois anos
de contrato. Eu disse: “Desse jeito eu não aguento”. Não me deixam parar.
PLAYBOY-
Vamos voltar um pouco no tempo. Como era a sua vida no Rio, no começo da
carreira? Por exemplo: com quem saía nas noitadas naquela época? Saía com o
Chico Alves, que era o cantor mais popular?
NELSON- É claro que
saía. O Chico Alves era um grande amigo meu. Ele passava em casa de madrugada e
gritava: “Ô, Metralha, vamos lá pro Jockey (Club
do Rio de Janeiro)”. Eu descia, entrava no carro e íamos ver o cavalo dele,
que era o King Salmon. Ele pegava uns torrões de açúcar, botava na mão e ia pra
cocheira. Fazia assim (imitando o
chamamento): tchui, tchui, tchui. O cavalo vinha, pegava o açúcar, ele
apanhava o violão e começava a cantar: “Boa noite amor /; meu grande amor /
contigo sonharei...” (Risos).
PLAYBOU-
Isso é piada.
NELSON- Não, é verdade!
Imagina a cena: Jockey Club, ás 5 da manhã, e o Chico Alves cantando para um
cavalo.
PLAYBOY-
Com tantas histórias assim, no meio da atividade artística, como é que você
dividira a sua vida?
NELSON- A vida foi me
acontecendo, entende? Teve a vinda para o Rio, o tempo que vivi na Lapa, a
minha prisão em São Paulo...Mas a época da prisão foi a mais dura, mais
complicada.
PLAYBOY-
Não teve privilégios na prisão, já que você era famoso?
NELSON- Não, porque
acabei sendo preso por tráfico, e não por consumo, o que foi um absurdo. Eu era
viciado e não escondia isso, mas traficante, não, pô! Tanto que os promotores e
os juízes reconheceram isso depois. Mas até aí eu tive que encarar o Presídio
Tiradentes, e só quem esteve lá sabe o que é aquilo. Pra começo de conversa: ou
você mostra que é homem, ou entra como veado e tá fodido.
PLAYBOY-
Mas você chegar a ter problemas na cadeia?
NELSON- Tive muitos problemas.
Logo que cheguei, percebi que teria que me impor ou estaria perdido. Então, perguntei
a um sujeito lá quem era que mandava na nossa ala. Deram o nome dele. “Pois
então diga a ele que eu falei que ele é um veado. Pode dizer” Dia seguinte, no
pátio, pedi que me apontassem quem era ele. Fui até lá e confirmei com o
próprio. “Sou eu mesmo, por quê?” Ele veio me peitar e dei lhe um soco. Quando
caiu, dei-lhe uns pontapés, machuquei ele bastante. Saiu dali para o hospital.
Quando voltou, fui visitar o homem, que estava todo enfaixado. Ele quis saber
por que eu tinha feito aquilo. “Vamos dividir as ordens aqui, está bem?”. Ele
topou e ficamos nós dois como xerifes.
PLAYBOY-
Fazia tanta diferença ser xerife ou não?
NELSON- Claro! Por
exemplo: pertinho da nossa cela ficava uma área onde os carcereiros batiam no
pessoal e depois jogavam uns jatos de água fria na turma. Eu não conseguia
dormir ouvindo aqueles gritos: “Pelo amor de Deus, não faz isso” Uma noite não
aguentei e chamei o camarada que organizava as surras. Propus a ele pagar 200
réis para cada preso com quem ele não batesse. Fechamos o acordo e pude dormir.
A partir daí ninguém mais foi espancado na nossa ala.
PLAYBOY-
Dá para entender por que você diz que esse foi o período mais duro de sua história
(risos). Mas teve muitos outros, não?
NELSON- Minha história
tem um lado grosso e um fino. O lado fino é o da música.
PLAYBOY-
Vamos mudar de disco e falar um pouco do Nelson político. Por que você foi
candidato a deputado federal por Minas, se lançando por Caxambu? E por que não
se elegeu?
NELSON- Tenho uma
fazenda em Caxambu, recebi o título de cidadão de lá. Quer dizer, sou querido
lá. Fiz comício com o Itamar Franco, com o Aureliano Chaves, com esse pessoal
todo. Mas sabe quantos votos eu tive? Quinze mil. Dá para acreditar? E na
verdade, no primeiro dia, quando começaram a abrir as urnas, soube que tinha
mais de 160.000 votos. No segundo dia, 90.000. Algum tempo depois, 40.000. No
fim, fiquei com 15.000. Pensei: “Como é que pode?” Um dia, andando na cidade,
vieram dois camaradas falar comigo. “Nelson, desculpe vir falar com você assim,
mas sabe como é, tinha um candidato precisando mais do que você, eu peguei aí
uns noventa votos”. Aí o outro falou: “Olha, Nelson, eu também peguei 110
votos”. E então eu entendi o que tinha acontecido (Risos). Fazer o quê?
PLAYBOY-
Falaram assim na lata?
NELSON- Na lata. Nem
reclamei mais. Aquilo me deixou tão chateado que deixei que deixei a política
de lado.
PLAYBOY-
Quem eram eles? Você pode dizer?
NELSON- Não sei o nome
deles. Eram do PMDB. Mas que roubaram, roubaram. Fiquei tão chateado que nem
voltei mais a Caxambu até hoje. Preferiria mudar de assunto.
PLAYBOY-
Só mais umas coisinhas. Por exemplo: em quem você votou para presidente nas
últimas eleições?
NELSON- Não votei.
PLAYBOY-
O que você acha do Fernando Henrique?
NELSON- Eu votaria
nele. Acho que é muito bem intencionado e deve ser reeleito.
PLAYBOY-
E Paulo Maluf?
NELSON- É muito
empreendedor. Fala que faz e faz mesmo. São Paulo cresceu mais de 50% nos
últimos anos. Eu votaria nele.
PLAYBOY-
E Brizola?
NELSON- Brizola, não.
Fez os Cieps e ficou naquilo.
PLAYBOY-
Ok, vamos explorar um pouco alguns detalhes da sua vida pessoal. Você é
religioso?
NELSON- Sou, sempre
fui. Tenho muita fé. Rezo um terço todos os dias ás 6 da tarde.
PLAYBOY-
Tem algum hobby?
NELSON- Gosto de jogaer
pif-paf com uns amigos e meus filhos, pra me distrair. Acompanho futebol,
também. No boxe, não perco as grandes lutas, as grandes mordidas (referindo-se ao ataque de Mike Tyson a
Evander Hollyfield, no último confronto entre os dois pelo título mundial dos
pesos pesados, em julho de 1997). E quando era moço gostava de cavalos de
corrida.
PLAYBOY-
Cavalos também?
NELSON- Cheguei a ter
onze cavalos no Jockey. Dei nos onze de presente para um amigo. Um ano depois,
ele me deu cinco tiros. Um dos tiros me pegou de raspão na cabeça e levei
alguns pontos. Esse sujeito tinha uma gráfica, tinha dinheiro, mas era louco
por um páreo. Como eu já estava de saco cheio dos cavalos, dei os animais para
ele. Começou a apostar e perdeu tudo. E meio doido. Aí veio pra cima de mim:
“Seu filho da puta, você aprontou com os cavalos”. Achou que a culpa era minha
e me mandou chumbo. E pra me vingar, sabe o que fiz? Taquei fogo no carro dele.
Peguei gasolina, joguei em cima e incendiei. Quando ele apareceu, gritei:
“Estamos quites”.
PLAYBOY-
História assim, só na Lapa carioca. Vamos falar um pouco sobre esse período?
Queríamos saber suas relações com Madame Satã, por exemplo, já que você um dia
disse que ele era um homossexual mais homem do que todos os que você já viu?
NELSON- E é verdade.
Batia em doze policiais de uma vez, e brigava na mão. Parava uma viatura e ele
chamava. “Podem vir!”. Em questão de segundos tinha uma meia dúzia de soldados
no chão. A bicha era fogo. Como eu era cafetão e vivia ali, eu assistia isso.
PLAYBOY-
Cafetão? Até isso?
NELSON- Já fiz quase
tudo nessa vida, rapaz.
PLAYBOY-
Como era ser cafetão na Lapa, naquele tempo?
NELSON- Eu tinha que me
virar, né? Estava numa miséria desgraçada. Aí comecei com umas meninas, e o
grupo foi crescendo. Tive umas dez, no total. Como briguei com o Miguelzinho
Camisa Preta, criei fama de machão. E as mulheres passaram a pagar pra mim, entende?
Elas me davam 5 mil-réis por semana, cada uma.
PLAYBOY-
Quem era esse Miguelzinho Camisa Preta?
NELSON- Era o valente
da Lapa, naquela época. O xerife era ele. Um dia, de tardezinha, eu estava com
o ator Rodolfo Arena, já falecido, na Rua Mem de Sá, no Café Mantiqueira,
tomando uma cachaça, quando entra um mulato forte. Entrou e me deu uma trombada
assim (imitando o gesto) que derramou
minha cachaça. Virei pra ele e disse: “Que é que já, rapaz?” Ele virou-se e
respondeu: “Que é que há o quê?” Só de olhar, vi que ele tinha a intenção de me
enfiar a mão. Então, dei-lhe um direto que botou o cara no chão. Fez um barulho
– tóin! – e ele ficou no chão estendido. Me apavorei. Pensei: “Matei o homem”.
PLAYBOY-
E como saiu dessa?
NELSON- Saí dali e
desci a Mem de Sá. Por sorte me encontrei com o Madame Satã. Expliquei: “Olha,
acho que apaguei um cara lá no Mantiqueira. Vai até lá confirmar e me avisa,
porque nesse caso vou ter que me mandar”. Ele foi. Daí a algum tempo vejo que
ele vem vindo junto com o Miguelzinho. Ele disse: “Você sabe em quem você
bateu?” Respondi que não. “No Miguelzinho, rapaz. É ele quem manda aqui na
Lapa”. Olhei para o sujeito e falei: “Me desculpe, não sabia que era o senhor”.
Para minha surpresa, Miguelzinho me encarou e disse: “Não precisa pedir
desculpa, não”. Gostei de você porque foi homem. Depois que eu caí, você não me
bateu, não me chutou a cara, não me pisou, não fez comigo nenhuma covardia”.
Fizemos as pazes. Mas aí correu na Lapa essa notícia e virei uma espécie de
leão-de-chácara, apartando brigas. Só que fiquei pensando: “Não sou valente,
não sou malandro e não sou otário, então estou fazendo o que aqui?” Não podia
ficar me arriscando a morrer diariamente. Resolvi então me mudar da Lapa.
Definitivamente.
PLAYBOY-
Ou seja, a mudança encerrou um período tumultuado de sua vida, não foi? A sua
dupla com Adelino Moreira é dessa ocasião?
NELSON- Não. Estamos
falando de 1947 a 1950. Só fui encontrar o Adelino em 1952. Até lá eu gravava
músicas do Herivelto Martins, Antônio Mesquita, Ary Barroso, Pixinguinha...
PLAYBOY-
Dizem que Pixinguinha era uma das pessoas mais formidáveis de se conhecer. Você
foi amigo dele?
NELSON- Muito amigo.
Aliás, uma vez eu estava na Mayrink Veiga e soube que o Pixinguinha, o João da
Baiana e mais alguém que não me lembro estavam abrindo um botequim em frente. A
inauguração foi aquela festa. O pessoal, claro, encheu a cara. No dia seguinte,
o bar estava com as portas fechadas e nunca mais reabriu: eles tinham acabado
com o estoque. Beberam o bar todinho (risos).
PLAYBOY-
Vamos tentar manter uma certa cronologia nesta entrevista. Quando você voltou
para São Paulo? E por que isso aconteceu, já que você irradiou seu sucesso
daqui do Rio?
NELSON- Bem, em 1956,
quando ainda cantava na Rádio Nacional, uma vez estava voltando de Belo
Horizonte, depois de uma temporada de shows por Minas. Muito cansado. Cheguei e
fui dar uma volta para espairecer. Nisso, aparece uma pessoa, não vou dizer
quem era. Me olhou e perguntou: “O que é que você tem? Está parecendo cansado”.
Expliquei que estava mesmo esgotado. Ele me chamou para irmos ao bar El Greco.
Fomos ao mictório e ele tirou lá um pó, bateu com a carteira, fez uma
fileirinha, cheirou e disse: “Experimenta”. Cheirei também. Logo me passou o
cansaço. Fomos tomar um uísque e quando o cansaço voltava, a gente ia dar uma
cheiradinha. Naquela noite cheiramos umas seis vezes. Fui dormir ás 9 da manhã.
PLAYBOY-
E daí em diante...
NELSON- Achei que
aquele troço tinha me feito bem, e quando acordei fui procurar o sujeito.
Cheirei mais e isso foi se arrastando a semana inteira. Sempre que eu queria,
ia procurar o cara. Um belo dia, quando fui buscar mais pó, ele disse: “Não
tenho mais, mas tem um sujeito aí que vende”. Aí é que está o negócio. Funciona
assim: no começo, é de graça. Depois que você está viciado, tem que pagar. E
não para mais. Você só quer cheirar, cheirar e cheirar. Comecei a não querer ir
aos shows, a não querer a cantar. Passado algum tempo cheguei à conclusão de
que não podia ficar mais no Rio, porque aqui não conseguiria me livrar da
droga. Tinha uma turma de umas cinquenta pessoas que estava metida na coisa e
com elas conseguia alimentar o meu vício. Resolvi ir para São Paulo.
PLAYBOY-
Mas foi em São Paulo que você foi preso.
NELSON- Foi, mas a
intenção era parar. Fui, primeiro, para um hotel. Depois, comprei uma casa no
Parque Continental, em Osasco (município
da zona oeste, na área metropolitana da Capital). Em seguida, comprei uma
casa no (bairro do) Brooklyn. Fui
preso nessa casa, em 1965.
PLAYBOY-
Como aconteceu?
NELSON- A pessoa de
quem eu comprava o pó me denunciou. Deixei de comprar dele e ele então foi à
polícia, dizendo que eu tinha 1 quilo de cocaína em casa e que estava vendendo,
o que era mentira. Os policiais arrombaram minha porta e me algemaram. Fiquei
uma noite na delegacia e no dia seguinte fui para o Presídio Tiradentes. Um ou
dois meses depois fui julgamento e ficou esclarecida a história. Pude provar
que não traficante. De lá fui fazer tratamento numa casa de saúde e depois fui
para cara, onde fiquei me recuperando.
LENINHA- (Interferindo) É importante destacar que
papai teve uma coragem extraordinária, uma força de vontade extraordinária, uma
força de vontade impressionante para continuar afastado das drogas. Sofreu
demais.
NELSON- É verdade.
Aluguei uma casa na Rua João Moura, em Pinheiros, me tranquei no quarto e
joguei a chave pra minha mulher. Recebia a comida por baixo da porta. Se não
fosse assim, ia cheirar de novo. Com acompanhamento médico, ficava o tempo todo
dopado, para o meu organismo reagir à abstinência da droga. Amarguei o inferno
durante seis meses. Dormia, no máximo, uns 20 minutos por noite, e ainda assim
sentado. Até que um dia comecei a melhorar. Cheguei a dormir 3 horas seguidas.
Comuniquei ao médico, que veio em casa e me receitou outros calmantes. Aí dormi
bem, pela primeira vez em muito tempo. Acordei umas 6 da manhã, fui até o
quintal e vi um padeiro entregando o leite, uma mulher varrendo a calçada. Foi
a visão mais linda que eu já tive. Comecei a chorar. Pensei: “A vida está
aqui”. Ganhei uma alma nova. Passei a fazer uns vinte shows por mês. A música
foi minha terapia.
PLAYBOY-
Mas como foi a volta do boêmio às paradas de sucesso?
NELSON- Quando estava
na casa de saúde fui visitado por um diretor da RCA, o Paulo Rocco. Queria que
eu gravasse uns fados. Expliquei que ainda estava em tratamento, mas ele
conseguiu me tirar de lá para fazer essas gravações. (Cantando) “Não queiras gostar de mim sem que eu te peça...” (Nem às Paredes Confesso). Saí de
madrugada, fui até a Avenida São João, gravei e voltei algumas horas depois
para a casa de saúde. Só esse disco vendeu, num mês 60.000 cópias.
PLAYBOY-
O que prova que você continuava cantando bem, apesar do tempo em que esteve
viciado.
NELSON- Mas o fato de
ter sido preso e internado para tratamento pesou demais. A partir dali ninguém
queria saber mais de mim. Lembro que tinha uma apresentação já contratada no
extinto canal 9, TV Excelsior, e o dono do programa, de quem também não vou
falar o nome, vetou, dizendo: “No meu programa, não entra viciado nem ex-presidiário”.
Minha mulher saiu de lá chorando. Fomos então à Tupi e ela contou o que tinha
acontecido para o (Luciano) Calegari. Ele levou a história para o Sílvio
Santos, que mandou me contratar por um mês e me apresentar uma vez por semana
num programa aos domingos. Foi daí que meu nome entrou de novo em evidência.
PLAYBOY-
Em resumo, você foi ficando raízes de novo em São Paulo.
NELSON- Juntei algum
dinheiro. Já tinha aquela casa no Parque Continental, com piscina, aquela casa
do Brooklin...Comprei um carro, contratei motorista. Mas os traficantes e a
própria polícia não me deixavam em paz. Eles não acreditavam que eu tinha
parado com tudo. Por isso fui pedir a bênção ao dom Agnelo Rossi, que era o
cardeal-arcebispo de São Paulo. Me comprometi com ele a ajudar a construir o
Hospital Infantil do Ipiranga, vendendo simbolicamente uns tijolinhos, nos meus
shows. Nesse dia, por coincidência, foi lá o (marechal Arthur da) Costa e Silva (então presidente da República). Fui falar com ele sobre essa
perseguição dos traficantes e da polícia. A televisão estava filmando. Ele
então me abraçou, virou-se para as câmaras e disse: “Este homem aqui é um
patrimônio nacional e meu amigo. Deixem ele em paz”. Pronto. A pressão acabou e
voltei a cantar normalmente...
PLAYBOY-
Qual foi o lugar mais esquisito em que você cantou?
NELSON- Ih, já cantei
em cada lugar...Uma vez, voltando de Manaus, tive que cantar no avião. O
embarque era ás 4 e meia da manhã. Quando me sentei, meio escondidinho, um
sujeito me viu e gritou: “É ele!” Virou aquela balbúrdia a bordo e fizeram um
coro: “Canta! Canta! Canta!” O comandante mandou me chamar e falou: “Acho
melhor você pegar esse microfone e mandar ver, senão o avião cai” (risos).
PLAYBOY-
Essas coisas acontecem com frequência?
NELSON- Acontecem.
Estou me lembrando agora de uma viagem que fiz de São Paulo para Curitiba, de
ônibus. Ia dar um show lá e voltar. Na divisa com o Paraná, tinha uma barreira
policial. Entraram uns guardas pedindo documento pra todo mundo. Eu não tinha
levado nada. Expliquei: “Sou o cantor Nelson Gonçalves, mas não trouxe nenhum
documento”. O guarda achou que eu estava mentindo e começou a engrossar. E eu,
que já sou gago, fiquei nervoso. Quando fico nervoso e tento falar, ninguém
entende nada – só eu (risos). Discute
daqui, discute dali, ele propôs: “Canta aí pra gente ver se é o Nelson mesmo;
se for, você passa; se não for, fica em cana aqui e vamos te dar um cacete”.
Cantei Renúncia. Quando acabei, o
sujeito ainda não estava convencido: “Escuta aqui, gaguinho, tu não és o Nelson
mas imitou ele muito bem. Só por isso vou deixar passar” (risos).
PLAYBOY-
E a perseguição feminina? Todo mundo sabe que você foi muito assediado.
NELSON- É, não nego.
Algumas não conseguia evitar mesmo. Dava uma ou duas com elas e caía fora. Vou
lhe dizer uma coisa: tenho 78 anos e me sinto com 25. Está dito tudo, certo?
LENINHA- Papai, já que
estamos lembrando essas histórias, conta aquela da mulher do coronel (Em tom de confidência.) Ele se
encontrava com um coronel e a mulher dele e depois alguém tinha que ficar
tapeando o coronel enquanto ele transava com ela (risos).
NELSON- É, era
engraçado, porque ás vezes eu ficava lá, na boa, e aquilo virava um sufoco pra
quem ficava enrolando o homem, sem assunto (risos).
PLAYBOY-
As mulheres ainda o assediam muito nos shows?
NELSON- Durante os
shows e depois também, no camarim. Outro dia uma mulher pediu a alguém pra
fotografar enquanto ela me agarrava e tascava um tremendo beijo. Quando vi, o
marido estava lá olhando. Pensei: “Puta merda, ainda vou me dar mal...” (Risos).
LENINHA- A verdade é
que o papai era muito assediado. Eu tinha uns 15 anos e ficava impressionada
com aquilo. Algumas moças vinham oferecer a virgindade para ele, lembra, papai?
NELSON- (Encabulado)
Lembro. É que infelizmente se espalhou o boato...
LENINHA- (Visivelmente
preocupada com o rumo da conversa) Quer que eu saia, papai?
NELSON- É, acho melhor.
(Retomando, em tom de confidência, enquanto Leninha vai para a cozinha.)
Contaram por aí que eu tenho o membro muito grande. E tenho mesmo: são 22
centímetros de comprimento. E é grosso: dá 19 centímetros de circunferência.
Tanto que uso uma sunga apertada pro negócio ficar preso pro lado de cima. E no
palco, depois da apresentação, elas vem me cumprimentar, abraçar, alisar. Nem
sempre aguento e fico excitado, fica muito visível. Isso morreu de boca entre
elas e...
PLAYBOY-
Você foi um dos precursores da prótese peniana, não é? Funciona?
NELSON- Claro que
funciona! A libido está na cabeça. Só não dá certo se o sujeito não tiver tesão
aqui em cima. E isso eu tenho demais.
PLAYBOY-
Ficou famosa uma história com a Elba Ramalho. Como foi?
NELSON- A gente foi
gravar junto. No estúdio, quando cruzou as pernas, falei: “Minha filha, você
está gostosa demais”. Um cara lá disse: “Ô Nelson, daqui a pouco você está
passando a mão nas pernas da mulher”. Ela disse: “Deixa ele passar, o que é que
tem?” Passei e disse, brincando: Faço
isso como profissional” (risos). Mas
foi uma brincadeira, sem qualquer malícia.
PLAYBOY-
Qual é a melhor mulher do Brasil?
NELSON- Vou de
preferência nacional: Vera Fischer. Pelo tchan dela (risos). E quanto mais o tempo passa mais ela fica bonita.
PLAYBOY-
Houve alguma artista por quem você tivesse se apaixonado?
NELSON- Teve a Lurdinha
Bittencourt, cantora, com quem fui casado. A Beth White, americana, que foi uma
paixão muito grande e que se suicidou.
LENINHA- (Retornando e
aproveitando a oportunidade.) É bom ele contar, porque houve gente, na época,
que achou que foi ele quem a matou.
PLAYBOY-
Nossa!
NELSON- Acontece que
ela tinha muito ciúme de mim. Uma noite eu disse que ia sair. Pediu: “Não sai”.
Mas expliquei que voltava logo, só ia bater um papo e logo estava de volta. Ela
concordou e eu saí. Quando estou na porta ouço aquele barulhão – bum! Corri pra
dentro de casa e quando vi ela estava com o corpo todo em chamas. Tinha jogado
álcool e ateado fogo. Peguei o cobertor, enrolei, mas ela já havia se queimado
toda. Levei para o Hospital São Sebastião, mas depois de cinco dias ela não
resistiu. Morreu segurando a minha mão e dizendo: “Que bobagem que eu fiz, não
foi, amor?”.
PLAYBOY-
Bem, mas isso já foi aqui no Rio. Por que você retornou para cá?
NELSON- Voltei em 1969
porque o Rio, na época, ainda tinha grande importância para a carreira de um
artista.
PLAYBOY-
Qual foi o maior público que você já enfrentou?
NELSON- (Pensativo.)
Não estou certo, mas acho que foi em São Luís do Maranhão, numa praça. Disseram
que tinha mais de 20.000 pessoas. E pra complicar, naquele dia havia greve dos
músicos. Ninguém podia tocar um violão, nada. Tive que cantar durante 1 hora e
meia batucando numa caixa de fósforos. Em Recife, no Teatro Guararapes, foi um
problema também, porque ficou abarrotado. No Brasil todo é assim – casa lotada.
PLAYBOY-
Você tem ideia de quantos shows já deu em toda a carreira?
NELSON- Não, não dá pra
saber. Já subi em jegue pra me apresentar numa cidade, no Ceará, já andei
dezenas de quilômetros pra ir de Icó a Natal, no Rio Grande do Norte, já
percorri este país todinho. Conheço mais o Brasil do que qualquer caminhoneiro.
Olha, não dá nem pra dizer o número de vezes que fiquei sem dormir, sem comer,
pra não cancelar um compromisso.
PLAYBOY-
Mas isso ás vezes acontece com um artista. Adiar show não é coisa tão rara.
NELSON- Comigo, não. É
muito difícil. Me lembro que uma vez ia fazer uma apresentação no Norte ou
Nordeste. Cheguei ao aeroporto, olhei o avião e cismei. Disse: “Não vou, não”.
Me disseram que, nesse caso, teria que pagar uma multa pesada. Disse que
pagava, mas não ia. Vim pra casa. O avião decolou e logo depois caiu, matando
todo mundo.
PLAYBOY-
Além de uma peça de 1986 sobre a sua vida, com o Diogo Vilela, o Agnaldo
Timóteo está homenageando você com um disco só com músicas suas. Como você se
sente?
NELSON- Encabulado.
Gostei da peça, embora só mostre uma parte da minha vida. O grosso, mesmo, não
conta. E com relação ao Agnaldo Timóteo fico muito feliz: agora ele está conseguindo
vender disco (risos). Falando sério, ele canta bem. Conseguiu gravar minhas
músicas sem deformar, como eu cantava. Ficou muito bonito.
PLAYBOY-
Para encerrar: como você se definiria?
NELSON- Não sou melhor
do que ninguém, mas não sou par: sou ímpar.
Publicado originalmente
na revista Playboy em março de 1998
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