segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Entrevista com Moreira da Silva (Ele Ela, janeiro de 1997)


ENTREVISTA




MOREIRA DA SILVA- O Tal do samba de breque

Por Álvaro da Costa e Silva e Macedo Rodrigues

Viúvo, aos 94 anos – completará 95 no dia da mentira, primeiro de abril -, Moreira da Silva quer experimentar algumas ervas que lhe permitiam fazer “o Bráulio dar uns pulinhos”, como diz. Isto, porque, ainda hoje, quando deixa o apartamento do Catumbi, no Rio, trajando camisa de algodão, terno de linha S-120, gravata, sapato duas cores e chapéu panamá, as mulheres não lhe deixam paz. A ELE ELA o último dos malandros fala das muitas conquistas, da carreira de mais de 60 anos, os tempos áureos da Lapa, de alguns desafetos e do amor ao Brasil. Com sabedoria, humor e até alguns breques de improviso.

Que lembranças o senhor guarda da infância?

Eu comia bolo de milho com guaraná para inchar a barriga e enganar a fome. Fui uma criança sofrida pra caramba. Primeiro, morreu meu pai, nem cheguei a conhecê-lo. Depois, perdi meu padrasto, a pessoa que em ensinou a ler e fazer conta. Aos 11 anos, tive de me virar e fui trabalhar numa fábrica de meia. Minha mãe era cozinheira, ganhava muito pouco, quase não dava para nosso sustento. Lembro que cheguei a morar num galpão, num lugar sem água, cheio de valas, onde viviam duas famílias amontoadas. Aos 17 anos, era um garotão cheio de gás e malnutrido. Fui à festa da Penha, porque morava lá perto, e encontrei um bom crioulo. Ele improvisou um fogão de lata e fez uma sopa de repolho. Aquilo me pareceu um banquete, nunca mais esqueci.

O senhor tomou contato com a malandragem nessa época?

Não conheci os malandros. Conheci pessoas espertas que trabalhavam na estiva e que tinham suas roupinhas legais para danças nas gafieiras, além da turma do carteado e da gigolagem. Mas, quando fiz 18 anos, fui levado para ser ajudante de não-sei-o-quê e pude assumir o sustento da minha família. Me lembro do tempo em que era motorista de praça; Peguei um cara e depois uma prostituta, a pedido do cara. Fui deixa-los na Vista Chinesa. Mas quem comeu a mulher fui eu. O camarada estava dormindo, meio de porre, e eu acabei comendo. Mais tarde, essa mulher se tornou minha amiga. Me lembro de que, na maré braba, dinheiro muito curto, eu dormia com ela na Rua Joaquim Silva, na Lapa. Ao acordar, não me deixava ir trabalhar, me mandava pegar dinheiro na gaveta. Caí no mau caminho.

Muitas destas aventuras estão narradas no livro Moreira da Silva- O Último dos Malandros, do jornalista Alexandre Augusto, lançado pela Editora Record. O que achou da sua biografia escrita em vida?

Só teve uma falhazinha: eu comprei uma música por um conto e 300 e ele escreveu que paguei um conto e quatrocentos. No mais, é um excelente livro. Tudo o que me aconteceu está escrito lá, com todos os detalhes. Agradeço ao Alexandre Augusto, um jovem baiano que fez um trabalho honesto sobre a minha vida.



E o senhor comprou muita música?

Isso é antigo, vem desde o tempo de andar pra frente. O sujeito não tinha dinheiro e vendia. É que nem jornalista, que vende artigos, crônicas e quem assina é outro. Ele vende a inteligência. Esse Paulo Coelho não vendeu uma porrada de livro? Ficou milionário, mas diz que é um mago. Uma vez, me encontrei na madrugada com um rapaz, o Geraldo Pereira. Ele estava precisando pagar o quarto onde morava e me pediu um conto e 300 mil réis, em troca de uma parceria. Era dinheiro pra chuchu. Fiz um acordo verbal que vale até hoje.

Bem todo mundo conta quando compra um samba...

Eu conto porque é a verdade. E já vendi também, já dei parceria por dinheiro. Quem não conta é imbecil e hipócrita. Sempre aconteceu, desde os tempos da música erudita. Aquele surdo, o Beethoven, vendeu os direitos todos.

Como era o Geraldo Pereira, que o senhor citou?

O Geraldo era um escuro simpático, educado, gostava de um chopinho. Assim como você, Macedo, mostra a língua branca aí. Um chopinho de vez em quando não tem problema, o que estraga a saúde é beber em demasia. De repente, o Geraldo fez tanta música bonita! Aliás, dei a ele uma parceria, com autorização do Wilson Batista, o famoso samba Acertei no Milhar. O Wilson concordou, desde que ele trabalhasse a música, desde que ajudasse na divulgação. Antigamente, isso era comum.

Dizem que o Madame Satã matou o Geraldo numa briga em frente ao restaurante Capela, na Lapa?

Não acredito. Há muita lenda em torno do Madame Satã. Eu não admito que um homem sozinho brigue com seis policiais armados, como dizem dele por aí. Que que há, ninguém é besta! O policial dá-lhe um tiro e pronto...Isso é mentira. Por sinal, esse Satã era bissexual, dava também à vontade.

E o Wilson Batista, como era?

Um bom vivant. No final da vida, começou a fumar, a cheirar e foi mais cedo. Uma pena.

Camisa de algodão, terno de linho S-120 de fabricação inglesa ou irlandesa, gravata apertada, sapato duas cores e chapéu panamá. Esse era o uniforme do malandro?
Esse era uma vestimenta tradicional aqui no Brasil. Nesse clima quente, nego cismo em vestir-se assim, vá entender. Eu uso até hoje, mas naquele tempo tinha mais gente, todo mundo alinhadíssimo. Aí veio uma turma americana aqui fazer não sei o quê. Entraram no cinema de calção, bagunçou o coreto do brasileiro, porque o brasileiro é esnobe, gosta de imitar a América do Norte, de macaquear o gringo. O exemplo são eles. Eu me conservei assim.

O senhor era bom no carteado?

Nunca fui um exímio carteador. Já joguei baralho e tal, mas não nasci para ficar rico jogando. Teve uma época em que eu joguei sena e quina por mais de dois anos e nunca acertei nada a não ser um terno.



Em compensação, deu uma baita sorte na carreira artística.

Nem sempre, tive alguns altos e baixos, mas nunca desisti. Comecei a gravar mais ou menos em 1931. Antes, cantava nas horas vagas, em casas de família, aniversários, batizados. Até que um dia me levaram na Odeon para gravar duas músicas afro-brasileiras que não fizeram sucesso. Mas, logo a seguir, gravei Arrasta a Sandália, meu primeiro sucesso mesmo, um estouro de verdade. A partir daí, não parei mais. Meu mais recente trabalho, Os Três Malandros in Concert, com o Dicró e o Bezerra da Silva, é de 1995. É meu 26º disco.

Mas no amor, o senhor não pode negar que deu sorte. Fez até um samba, 1.296 Mulheres, dando conta de algumas conquistas.

Quando um artista está em cartaz, sobre mulher. Se você não machucar, vão chama-lo de veado. Velho como estou, eles ainda ficam dando em cima. Basta eu sair na rua que acontece o diabo a quatro. Fui mulherengo, sou obrigado a confessar. Tirei alguns cabaços. Depois de tirar, não expulsava a menina da cama nem a chamava de galinha. Eu a tratava bem, para que não fosse se queixar com os pais. Se a menina chegasse em casa chorando, ia me entregar na certa: “Foi o Moreira quem introduziu”.

O senhor...

Pode me chamar de você que sou jovem, espiritualmente dizendo.

Você, então, até bem pouco tempo estava fazendo mal às moças?

É verdade, tive uma mocinha depois de ficar viúvo. Mas a mandei embora. Era uma mercenária, não me deixava juntar um níquel. Até hoje ela me procura. Dei casa em Saracuruna, duas televisões a cores, dois freezers. Ela passou bem ao meu lado, é a chamada manutenção. Mas a mandei arrumar outro ombro pra chorar. Era tarada, tarada, tarada, não era uma mulher normal. Me fazia de tudo aqui nesta poltrona, eu na horizontal e ela na vertical. Até frago assado. Língua também. Língua, da parte dela, que fique bem claro. Mas, de lá para cá, eu descansei. Gozei pela última vez em 94. Estou com vontade de experimentar essa tal de catuaba, que andam anunciando por aí. Vamos ver se o Bráulio resolve dar uns pulinhos. Porque tive problemas de saúde, na próstata, nos testículos também. Covarde sei que me podem chamar, mas o médico disse que eu precisava operar, o que se há de fazer? Mas deixaram as bolinhas de gude.


O Nelson Gonçalves fez uma operação uma prótese no pênis.

Sei como é, colocou um canivete lá. O Zé Kéti também colocou. Não gosta da ideia. O que tem dado certo comigo são esses telefonemas eróticas. Passo horas ouvindo sacanagem nas minhas longas noite de insônia.

Foi em uma noite de insônia que surgiu o samba de breque?

Foi por acaso. Vem da parada do inglês, o break. Cantei Na Subida do Morro praticamente falando, sem acompanhamento, por mais de um minuto. Agradou o público na hora. Sempre tive a cabeça boa. Quando estou no palco, invento uns troços, mexo com a plateia, conto piada. A turma ri pra caramba. Eu digo: “Pode rir, depois eu vou pegar o meu cachê”.

Como nasceu o personagem Kid Morengueira?

“Começa o filme com o garoto/ Um telegrama do Arizona onde tem bandido de lascar” (cantando). Foi na época da minha ligação com o publicitário Miguel Gustavo, um cara inteligente que tinha o tino do sucesso. Ele foi autor de jingles antológicos...

Parece que o Miguel Gustavo tinha um cachorro chamado Morengueira...,

O que é isso, rapaz? Estás me chamando de cachorro? Não tinha cachorro nenhum.

E as expressões em inglês e francês?

Aprendi na esquina da vida, esperando a descida de quem subiu e fazendo o confronto entre o malandro pronto e o otário que nasceu pra milionário. Comment ça va, mon amour? Francês, inglês, árabe. Meu grande amigo Hilton Abi-Rihan é árabe. E tive, durante muitos anos, uma amante árabe, que dizia coisas em seu idioma quando estávamos na cama. Ela morreu e me deixou um apartamento. Amor é assim.

A sua mulher tinha conhecimento dessa sua amante?

Tomou conhecimento depois, me perdoou. A cama perdoa tudo. Batom na cueca é fogo, o resto você pode desculpar. “Minha filha, foi um deslize, eu te amo acima de tudo e coisa e tal”.



Me lembro de que, num depoimento no Museu do Carnaval, o senhor...

Senhor não. Você, você. Eu quero intimidade.

Você disse que havia uma chinelada na Araci de Almeida.

Isso tem muitos anos. Levei-a para o Posto Seis, perto do Forte Copacabana. Sentamos num casebre. Ela me pedia para leva-la no cinema, mas eu sabia que, no fundo, queria outra coisa. Então, fomos no piçurico. Primeira vez, eu quis fazer normal, papai-e-mamãe, aquelas coisas. Ela colocou as pernas no meu peito, virando-se e dizendo que não era ali. Fiquei aborrecido e disse: “Vamos embora”. No outro domingo, ela insistiu e vi que era marcha-ré sem debrear. Levei-a para um hotel lá na Frei Caneca.

Não teve erro?

Na bunda. Ela gozou, virou-se de lado, me deu beijinhos no pescoço. Mas nessa época eu era jovem.

E ela também.

Uma belezinha mais jovem que eu. Mas foi só aquela vez. O Noel também pegou.

Fale do seu lado de cantor romântico, naquele tempo em que cantor tinha de inchar a veia do pescoço.

Gravei Cigano, do Lupicínio Rodrigues. Faz sucesso até hoje. Era assim: “Cigano, abandonei o meu bando/ Só para viver cantando”.

Você era comparado ao Jorge Veiga.

O Jorge Veiga era diferente. Tinha uma paradinha gostosa, mas era diferente.

Existiu uma rivalidade entre os dois?

Ele criou esse ambiente. Tenho certeza de que ele vai voltar pra esse mundo, porque acredito em reencarnação. Então, é melhor abafar o caso. Fui ao enterro dele.

Qual o assunto que hoje merece um samba de breque?

Tenho um samba inédito que fala de ecologia. Andam falando muito sobre isso e quem não sabe tem de aprender. Também fiz uma homenagem ao Noel: “Poeta igual a você nunca mais/ Não desfazendo os artistas do presente e do futuro/ Estou dizendo o que meu coração sente/ Não é mentira, é verdade/ Vem, amor, depressa porque eu estou sofrendo/ Nunca mais quero você longe de mim/ Sua ausência é o princípio do meu fim/ Vem agora, vem correndo, amor, porque eu estou sofrendo”.

O que você achou do episódio Tiririca? Antes, não se podia brincar mais? Você gravou Olha o Padilha, um samba que tinha versos assim: “Esta macaca ao teu lado/ É uma mina mais forte/ Que o Banco do Brasil/ Eu manjo de longe este tiziu” .

Acho o Tiririca maravilhoso. O Brasil é composto de mestiços, mas não entendi o grilo do crioulo. Tiririca se veste engraçado, é um palhaço, tira onda em cima disso. Podem censurá-lo, mas as crianças gostam e, quando elas gostam, é porque o negócio é bom. Gostava também muitíssimo dos Mamonas. Eram inteligentes. Rapaziada jovem, ganhavam dinheiro, mas andavam num jatinho.

Você tem medo de avião?

Medo não tenho porque viajo sempre.; Mas esses jatinhos, não sei não.

O que você acha das músicas baiana e sertaneja?

É brasileiro e tal, são criações do povo, gosto. Gosto de qualquer música do mundo.

Mas falou mal uma vez do Caetano Veloso

Porque ele censurou o Ary Barroso. Quem é ele para censurar o Ary Barroso? Esse cara é um otário e é bissexual, ele dá. A Bahia é a mãe do Brasil, é adorada, mas o Caetano não é do tempo “do lá vai cocô”, quando não tinha esgoto. Caetano censurou a expressão “mulato inzoneiro”, disse que não existia. Porra, como esse cara quer censurar o Ary com aquela vozinha pequena? Nem ele, nem o João Gilberto. Cantor para mim é Pavarotti, Vicente Celestino, Orlando Silva, Francisco Alves, Nelson Gonçalves. Agora ficam esses merdas por aí falando bobagem...Admiro o negócio do bumbum, esses troços vêm da Bahia, esse negócio da tanajura.

A Carla do Tchan! Tem bunda boa, não acha?

Pra quem gosta. Nunca gostei muito. Quando era jovem, a gente apelava...

Trepar é bom? Você aconselha? Sua longevidade vem daí?

Não, isso é genético. Não tenho problema de glicose, essas coisas aí. Sou filho de português com crioula e deu isso aí, com o cabelo duro pra caramba. Única coisa ruim é a caspa e a seborreia.

E o Flamengo? Qual o melhor de todos os tempos?

Ele é o campeão. Futebol não é ganhar sempre. Perder ou ganhar é um detalhe. É chato perder, mas é um detalhe. Por exemplo, hoje ele está ruim. Mas amanhã pode dar a volta por cima.

Qual o maior jogador do Flamengo de todos os tempos? Fausto, Doutor Rubens, Dida, Zico?

Uma porção deles, I don´t remember.

Quem você acha que é o seu sucessor?

Sei lá, não apareceu ninguém até agora. Sou um autodidata, se quiser eu digo uma palavra aqui e depois não sei o que significa. Persializar, por exemplo, que porra é essa? Você sabem? Fui procurar no dicionário e não encontrei. Já reparou que, quando o cara quer alguma coisa, ele fala queria. Queria é errado, o certo é quereria. Eu quero, eu quero. O quê? Money para mim.

O Brasil?

É maravilhoso, essa terra que nem todo mundo sabe o tamanho, mas eu sei. Isso é quase um continente e a maioria não sabe nem o tamanho. Quando era rapaz, sabia o hino de cor. Agora, vai ser obrigatório, hoje só sei cantar lendo, é complicado, com palavras difíceis. Mas é lindo. Pena que tem muita gente indo para a América do Norte, para Miami. Eu não abandono minha terra por nada. Em Portugal, certa vez, bateu uma saudade imensa, fiquei doido para voltar.

Se um japonês chegasse e falasse: “Vamos embora, você vai ganhar rios de dinheiro, ficar com todas as gueixas”.

De jeito nenhum, adoro minha pátria. Morro de saudades quando saio do Rio de Janeiro, não sei como a pessoa pode imigrar e emigrar. Como disse o Caymmi, o cara vem da Bahia e fica morrendo de saudade. Não é verdade, Macedo?


Publicado originalmente na revista Ele Ela em janeiro de 1997

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