ENTREVISTA
MOREIRA DA SILVA- O Tal
do samba de breque
Por Álvaro da Costa e
Silva e Macedo Rodrigues
Viúvo, aos 94 anos –
completará 95 no dia da mentira, primeiro de abril -, Moreira da Silva quer
experimentar algumas ervas que lhe permitiam fazer “o Bráulio dar uns
pulinhos”, como diz. Isto, porque, ainda hoje, quando deixa o apartamento do
Catumbi, no Rio, trajando camisa de algodão, terno de linha S-120, gravata,
sapato duas cores e chapéu panamá, as mulheres não lhe deixam paz. A ELE ELA o
último dos malandros fala das muitas conquistas, da carreira de mais de 60
anos, os tempos áureos da Lapa, de alguns desafetos e do amor ao Brasil. Com
sabedoria, humor e até alguns breques de improviso.
Que
lembranças o senhor guarda da infância?
Eu comia bolo de milho
com guaraná para inchar a barriga e enganar a fome. Fui uma criança sofrida pra
caramba. Primeiro, morreu meu pai, nem cheguei a conhecê-lo. Depois, perdi meu
padrasto, a pessoa que em ensinou a ler e fazer conta. Aos 11 anos, tive de me
virar e fui trabalhar numa fábrica de meia. Minha mãe era cozinheira, ganhava
muito pouco, quase não dava para nosso sustento. Lembro que cheguei a morar num
galpão, num lugar sem água, cheio de valas, onde viviam duas famílias
amontoadas. Aos 17 anos, era um garotão cheio de gás e malnutrido. Fui à festa
da Penha, porque morava lá perto, e encontrei um bom crioulo. Ele improvisou um
fogão de lata e fez uma sopa de repolho. Aquilo me pareceu um banquete, nunca
mais esqueci.
O
senhor tomou contato com a malandragem nessa época?
Não conheci os
malandros. Conheci pessoas espertas que trabalhavam na estiva e que tinham suas
roupinhas legais para danças nas gafieiras, além da turma do carteado e da gigolagem.
Mas, quando fiz 18 anos, fui levado para ser ajudante de não-sei-o-quê e pude
assumir o sustento da minha família. Me lembro do tempo em que era motorista de
praça; Peguei um cara e depois uma prostituta, a pedido do cara. Fui deixa-los
na Vista Chinesa. Mas quem comeu a mulher fui eu. O camarada estava dormindo,
meio de porre, e eu acabei comendo. Mais tarde, essa mulher se tornou minha
amiga. Me lembro de que, na maré braba, dinheiro muito curto, eu dormia com ela
na Rua Joaquim Silva, na Lapa. Ao acordar, não me deixava ir trabalhar, me
mandava pegar dinheiro na gaveta. Caí no mau caminho.
Muitas
destas aventuras estão narradas no livro
Moreira da Silva- O Último dos Malandros, do jornalista Alexandre Augusto,
lançado pela Editora Record. O que achou da sua biografia escrita em vida?
Só teve uma falhazinha:
eu comprei uma música por um conto e 300 e ele escreveu que paguei um conto e
quatrocentos. No mais, é um excelente livro. Tudo o que me aconteceu está
escrito lá, com todos os detalhes. Agradeço ao Alexandre Augusto, um jovem
baiano que fez um trabalho honesto sobre a minha vida.
E
o senhor comprou muita música?
Isso é antigo, vem
desde o tempo de andar pra frente. O sujeito não tinha dinheiro e vendia. É que
nem jornalista, que vende artigos, crônicas e quem assina é outro. Ele vende a
inteligência. Esse Paulo Coelho não vendeu uma porrada de livro? Ficou
milionário, mas diz que é um mago. Uma vez, me encontrei na madrugada com um
rapaz, o Geraldo Pereira. Ele estava precisando pagar o quarto onde morava e me
pediu um conto e 300 mil réis, em troca de uma parceria. Era dinheiro pra
chuchu. Fiz um acordo verbal que vale até hoje.
Bem
todo mundo conta quando compra um samba...
Eu conto porque é a verdade.
E já vendi também, já dei parceria por dinheiro. Quem não conta é imbecil e
hipócrita. Sempre aconteceu, desde os tempos da música erudita. Aquele surdo, o
Beethoven, vendeu os direitos todos.
Como
era o Geraldo Pereira, que o senhor citou?
O Geraldo era um escuro
simpático, educado, gostava de um chopinho. Assim como você, Macedo, mostra a
língua branca aí. Um chopinho de vez em quando não tem problema, o que estraga
a saúde é beber em demasia. De repente, o Geraldo fez tanta música bonita!
Aliás, dei a ele uma parceria, com autorização do Wilson Batista, o famoso
samba Acertei no Milhar. O Wilson
concordou, desde que ele trabalhasse a música, desde que ajudasse na
divulgação. Antigamente, isso era comum.
Dizem
que o Madame Satã matou o Geraldo numa briga em frente ao restaurante Capela,
na Lapa?
Não acredito. Há muita
lenda em torno do Madame Satã. Eu não admito que um homem sozinho brigue com
seis policiais armados, como dizem dele por aí. Que que há, ninguém é besta! O
policial dá-lhe um tiro e pronto...Isso é mentira. Por sinal, esse Satã era
bissexual, dava também à vontade.
E
o Wilson Batista, como era?
Um bom vivant. No final da vida, começou a fumar, a cheirar e foi mais
cedo. Uma pena.
Camisa
de algodão, terno de linho S-120 de fabricação inglesa ou irlandesa, gravata
apertada, sapato duas cores e chapéu panamá. Esse era o uniforme do malandro?
Esse era uma vestimenta
tradicional aqui no Brasil. Nesse clima quente, nego cismo em vestir-se assim,
vá entender. Eu uso até hoje, mas naquele tempo tinha mais gente, todo mundo
alinhadíssimo. Aí veio uma turma americana aqui fazer não sei o quê. Entraram
no cinema de calção, bagunçou o coreto do brasileiro, porque o brasileiro é
esnobe, gosta de imitar a América do Norte, de macaquear o gringo. O exemplo
são eles. Eu me conservei assim.
O
senhor era bom no carteado?
Nunca fui um exímio
carteador. Já joguei baralho e tal, mas não nasci para ficar rico jogando. Teve
uma época em que eu joguei sena e quina por mais de dois anos e nunca acertei
nada a não ser um terno.
Em
compensação, deu uma baita sorte na carreira artística.
Nem sempre, tive alguns
altos e baixos, mas nunca desisti. Comecei a gravar mais ou menos em 1931.
Antes, cantava nas horas vagas, em casas de família, aniversários, batizados.
Até que um dia me levaram na Odeon para gravar duas músicas afro-brasileiras
que não fizeram sucesso. Mas, logo a seguir, gravei Arrasta a Sandália, meu
primeiro sucesso mesmo, um estouro de verdade. A partir daí, não parei mais.
Meu mais recente trabalho, Os Três
Malandros in Concert, com o Dicró e o Bezerra da Silva, é de 1995. É meu
26º disco.
Mas
no amor, o senhor não pode negar que deu sorte. Fez até um samba, 1.296 Mulheres, dando conta de algumas
conquistas.
Quando um artista está
em cartaz, sobre mulher. Se você não machucar, vão chama-lo de veado. Velho
como estou, eles ainda ficam dando em cima. Basta eu sair na rua que acontece o
diabo a quatro. Fui mulherengo, sou obrigado a confessar. Tirei alguns cabaços.
Depois de tirar, não expulsava a menina da cama nem a chamava de galinha. Eu a
tratava bem, para que não fosse se queixar com os pais. Se a menina chegasse em
casa chorando, ia me entregar na certa: “Foi o Moreira quem introduziu”.
O
senhor...
Pode me chamar de você
que sou jovem, espiritualmente dizendo.
Você,
então, até bem pouco tempo estava fazendo mal às moças?
É verdade, tive uma
mocinha depois de ficar viúvo. Mas a mandei embora. Era uma mercenária, não me
deixava juntar um níquel. Até hoje ela me procura. Dei casa em Saracuruna, duas
televisões a cores, dois freezers.
Ela passou bem ao meu lado, é a chamada manutenção. Mas a mandei arrumar outro
ombro pra chorar. Era tarada, tarada, tarada, não era uma mulher normal. Me
fazia de tudo aqui nesta poltrona, eu na horizontal e ela na vertical. Até
frago assado. Língua também. Língua, da parte dela, que fique bem claro. Mas,
de lá para cá, eu descansei. Gozei pela última vez em 94. Estou com vontade de
experimentar essa tal de catuaba, que andam anunciando por aí. Vamos ver se o
Bráulio resolve dar uns pulinhos. Porque tive problemas de saúde, na próstata,
nos testículos também. Covarde sei que me podem chamar, mas o médico disse que
eu precisava operar, o que se há de fazer? Mas deixaram as bolinhas de gude.
O
Nelson Gonçalves fez uma operação uma prótese no pênis.
Sei como é, colocou um
canivete lá. O Zé Kéti também colocou. Não gosta da ideia. O que tem dado certo
comigo são esses telefonemas eróticas. Passo horas ouvindo sacanagem nas minhas
longas noite de insônia.
Foi
em uma noite de insônia que surgiu o samba de breque?
Foi por acaso. Vem da
parada do inglês, o break. Cantei Na Subida do Morro praticamente falando, sem
acompanhamento, por mais de um minuto. Agradou o público na hora. Sempre tive a
cabeça boa. Quando estou no palco, invento uns troços, mexo com a plateia,
conto piada. A turma ri pra caramba. Eu digo: “Pode rir, depois eu vou pegar o
meu cachê”.
Como
nasceu o personagem Kid Morengueira?
“Começa o filme com o
garoto/ Um telegrama do Arizona onde tem bandido de lascar” (cantando). Foi na época da minha ligação
com o publicitário Miguel Gustavo, um cara inteligente que tinha o tino do
sucesso. Ele foi autor de jingles
antológicos...
Parece
que o Miguel Gustavo tinha um cachorro chamado Morengueira...,
O que é isso, rapaz?
Estás me chamando de cachorro? Não tinha cachorro nenhum.
E
as expressões em inglês e francês?
Aprendi na esquina da
vida, esperando a descida de quem subiu e fazendo o confronto entre o malandro
pronto e o otário que nasceu pra milionário. Comment ça va, mon amour? Francês, inglês, árabe. Meu grande amigo
Hilton Abi-Rihan é árabe. E tive, durante muitos anos, uma amante árabe, que
dizia coisas em seu idioma quando estávamos na cama. Ela morreu e me deixou um
apartamento. Amor é assim.
A
sua mulher tinha conhecimento dessa sua amante?
Tomou conhecimento
depois, me perdoou. A cama perdoa tudo. Batom na cueca é fogo, o resto você
pode desculpar. “Minha filha, foi um deslize, eu te amo acima de tudo e coisa e
tal”.
Me
lembro de que, num depoimento no Museu do Carnaval, o senhor...
Senhor não. Você, você.
Eu quero intimidade.
Você
disse que havia uma chinelada na Araci de Almeida.
Isso tem muitos anos.
Levei-a para o Posto Seis, perto do Forte Copacabana. Sentamos num casebre. Ela
me pedia para leva-la no cinema, mas eu sabia que, no fundo, queria outra
coisa. Então, fomos no piçurico. Primeira vez, eu quis fazer normal,
papai-e-mamãe, aquelas coisas. Ela colocou as pernas no meu peito, virando-se e
dizendo que não era ali. Fiquei aborrecido e disse: “Vamos embora”. No outro
domingo, ela insistiu e vi que era marcha-ré sem debrear. Levei-a para um hotel
lá na Frei Caneca.
Não
teve erro?
Na bunda. Ela gozou,
virou-se de lado, me deu beijinhos no pescoço. Mas nessa época eu era jovem.
E
ela também.
Uma belezinha mais
jovem que eu. Mas foi só aquela vez. O Noel também pegou.
Fale
do seu lado de cantor romântico, naquele tempo em que cantor tinha de inchar a
veia do pescoço.
Gravei Cigano, do Lupicínio Rodrigues. Faz
sucesso até hoje. Era assim: “Cigano, abandonei o meu bando/ Só para viver
cantando”.
Você
era comparado ao Jorge Veiga.
O Jorge Veiga era
diferente. Tinha uma paradinha gostosa, mas era diferente.
Existiu
uma rivalidade entre os dois?
Ele criou esse
ambiente. Tenho certeza de que ele vai voltar pra esse mundo, porque acredito
em reencarnação. Então, é melhor abafar o caso. Fui ao enterro dele.
Qual
o assunto que hoje merece um samba de breque?
Tenho um samba inédito
que fala de ecologia. Andam falando muito sobre isso e quem não sabe tem de
aprender. Também fiz uma homenagem ao Noel: “Poeta igual a você nunca mais/ Não
desfazendo os artistas do presente e do futuro/ Estou dizendo o que meu coração
sente/ Não é mentira, é verdade/ Vem, amor, depressa porque eu estou sofrendo/
Nunca mais quero você longe de mim/ Sua ausência é o princípio do meu fim/ Vem
agora, vem correndo, amor, porque eu estou sofrendo”.
O
que você achou do episódio Tiririca? Antes, não se podia brincar mais? Você
gravou Olha o Padilha, um samba que
tinha versos assim: “Esta macaca ao teu lado/ É uma mina mais forte/ Que o
Banco do Brasil/ Eu manjo de longe este tiziu” .
Acho o Tiririca maravilhoso. O Brasil é composto de mestiços, mas não entendi o grilo do crioulo. Tiririca se veste engraçado, é um palhaço, tira onda em cima disso. Podem censurá-lo, mas as crianças gostam e, quando elas gostam, é porque o negócio é bom. Gostava também muitíssimo dos Mamonas. Eram inteligentes. Rapaziada jovem, ganhavam dinheiro, mas andavam num jatinho.
Você
tem medo de avião?
Medo não tenho porque
viajo sempre.; Mas esses jatinhos, não sei não.
O
que você acha das músicas baiana e sertaneja?
É brasileiro e tal, são
criações do povo, gosto. Gosto de qualquer música do mundo.
Mas
falou mal uma vez do Caetano Veloso
Porque ele censurou o
Ary Barroso. Quem é ele para censurar o Ary Barroso? Esse cara é um otário e é
bissexual, ele dá. A Bahia é a mãe do Brasil, é adorada, mas o Caetano não é do
tempo “do lá vai cocô”, quando não tinha esgoto. Caetano censurou a expressão “mulato
inzoneiro”, disse que não existia. Porra, como esse cara quer censurar o Ary
com aquela vozinha pequena? Nem ele, nem o João Gilberto. Cantor para mim é
Pavarotti, Vicente Celestino, Orlando Silva, Francisco Alves, Nelson Gonçalves.
Agora ficam esses merdas por aí falando bobagem...Admiro o negócio do bumbum,
esses troços vêm da Bahia, esse negócio da tanajura.
A
Carla do Tchan! Tem bunda boa, não acha?
Pra quem gosta. Nunca
gostei muito. Quando era jovem, a gente apelava...
Trepar
é bom? Você aconselha? Sua longevidade vem daí?
Não, isso é genético.
Não tenho problema de glicose, essas coisas aí. Sou filho de português com
crioula e deu isso aí, com o cabelo duro pra caramba. Única coisa ruim é a
caspa e a seborreia.
E
o Flamengo? Qual o melhor de todos os tempos?
Ele é o campeão.
Futebol não é ganhar sempre. Perder ou ganhar é um detalhe. É chato perder, mas
é um detalhe. Por exemplo, hoje ele está ruim. Mas amanhã pode dar a volta por
cima.
Qual
o maior jogador do Flamengo de todos os tempos? Fausto, Doutor Rubens, Dida,
Zico?
Uma porção deles, I
don´t remember.
Quem
você acha que é o seu sucessor?
Sei lá, não apareceu ninguém até agora. Sou um autodidata, se quiser eu digo uma palavra aqui e depois não sei o que significa. Persializar, por exemplo, que porra é essa? Você sabem? Fui procurar no dicionário e não encontrei. Já reparou que, quando o cara quer alguma coisa, ele fala queria. Queria é errado, o certo é quereria. Eu quero, eu quero. O quê? Money para mim.
O
Brasil?
É maravilhoso, essa
terra que nem todo mundo sabe o tamanho, mas eu sei. Isso é quase um continente
e a maioria não sabe nem o tamanho. Quando era rapaz, sabia o hino de cor.
Agora, vai ser obrigatório, hoje só sei cantar lendo, é complicado, com
palavras difíceis. Mas é lindo. Pena que tem muita gente indo para a América do
Norte, para Miami. Eu não abandono minha terra por nada. Em Portugal, certa
vez, bateu uma saudade imensa, fiquei doido para voltar.
Se
um japonês chegasse e falasse: “Vamos embora, você vai ganhar rios de dinheiro,
ficar com todas as gueixas”.
De jeito nenhum, adoro
minha pátria. Morro de saudades quando saio do Rio de Janeiro, não sei como a
pessoa pode imigrar e emigrar. Como disse o Caymmi, o cara vem da Bahia e fica
morrendo de saudade. Não é verdade, Macedo?
Publicado originalmente
na revista Ele Ela em janeiro de 1997
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