O documentário de longa-metragem A
Turma do Pererê.doc conta a trajetória do primeiro gibi colorido de um só
autor brasileiro. Publicado pela primeira vez em 1959, os personagens Pererê,
Tininim, Galileu e sua trupe fizeram sucesso com adultos e crianças naquele
final dos anos 1950 e início dos 1960. As histórias eram publicadas nas páginas
de O Cruzeiro, revista semanal editada
pela Diários Associados. O criador de todas as aventuras da Turma do Pererê é o
cartunista, chargista, escritor, desenhista, humorista e workhaloic assumido Ziraldo Alves Pinto. Um dos maiores nomes dos
gibis e das histórias em quadrinho do Brasil, Ziraldo inspirou-se nas histórias
de Monteiro Lobato e na sua própria infância passada no interior de Minas
Gerais para criar esses personagens. Aos 87 anos, Ziraldo segue ativo e
publicando mais trabalhos. O cineasta carioca Ricardo Favilla teve o mérito
de pegar a história de parte da obra de Ziraldo e fazer um interessante documentário. Um verdadeiro documento histórico que remete a trajetória da Turma
do Pererê, de Ziraldo, das histórias em quadrinho e da própria imprensa
brasileira das últimas décadas. O VSP
conversou com exclusividade com o diretor Ricardo Favilla.
Violão, Sardinha e
Pão- Como surgiu a ideia do documentário?
Ricardo Favilla- A ideia na verdade surgiu da cabeça de um fã convicto
do Ziraldo, o Tarcísio Vidigal, produtor dos dois filmes de ficção do Menino
Maluquinho com quem eu já havia trabalhado. Ele desejava fazer a muito tempo alguma
coisa sobre este icônico personagem os quadrinhos brasileiros: o Pererê. O Tarcísio
fez uma extensa pesquisa, que resultou numa exposição itinerante congregando
tudo que existia em torno desta publicação ao longo de décadas. Um primeiro
roteiro para o documentário foi feito, mas a abordagem não o satisfez, como o
Tarcísio sabia que eu também era um grande curtidor e interessado
em HQs me convidou para retrabalhar este roteiro, e acho que dei conta do
recado. Depois fui convidado para dirigir o filme e isso foi um grande prazer.
VSP- Você era leitor da Turma do Pererê?
Não, na época do lançamento e da duração da primeira fase, a mais
famosa, da revista do Pererê eu era um bebe de colo. Meu contato com a
obra do Ziraldo se deu mais tarde através de outra extraordinária criação deste
genial artista chamada Jeremias, o
Bom. Essa obra era voltada mais para adultos e apesar de eu ser muito
criança e não entender a maioria das piadas, me fascinou pelos traços e
pela ousadia de ocupar as paginas de uma maneira que nenhuma outra publicação
de desenhos fazia naquele tempo. Eu era leitor das revistas convencionais
voltadas para o público infantil da época como Tom e Jerry, Personagens da
Disney e Super Heróis publicados pela Ebal e Bloch editoras. Ziraldo me levou a
buscar um novo mundo de desenhistas, o americano Robert Crumb e outros do
chamado "udigrudi" americano, os europeus de linha clara, Hergê,
Goscynni, o italiano Hugo Pratt e depois me deparei com os mestres desenhistas
da francesa Metal Hurlant. Nesta época, um pouco precocemente, comecei a
acompanhar a semanal publicação satírica e política O Pasquim, muito por causa de Ziraldo, Henfil, Jaguar e outros
cartunistas e ilustradores brasileiros que lá estreavam. Foi ali que travei contato
pela primeira vez com a Turma do Pererê,
revisitada em preto e branco nas paginas do que Ziraldo chamava o suplemento Infantil Subversivo do nanico tabloide.
VSP- Quais foram suas
principais dificuldades?
A primeira foi filtrar a enorme quantidade de material. Existam
muitas informações acerca da trajetória do Ziraldo, que tem uma vasta produção
gráfica e uma atuação constante como personalidade midiática e multimídia.
Concentrei-me na trajetória do personagem e da revista, que obviamente
esta entrelaçada com do próprio Ziraldo, nas suas diversas fases, partindo das
condições políticas e econômicas que alavancaram a sua Gênese como primeira
revista colorida em quadrinhos de um só autor brasileiro. Os personagens
fizeram sucesso e crescimento em meio á luta pela nacionalização do Quadrinho
Brasileiro, na qual Ziraldo era uma das pontas de Lança, juntamente com
Mauricio de Sousa, e assim nasce uma profunda e duradoura amizade entre ambos.
A revista sofre uma abrupta interrupção por ocasião do golpe militar de
1964. A partir daí tentativas são feitas por Ziraldo para atualizá-la, debaixo
da cerrada vigilância da censura da Ditadura no período do O Pasquim. Há depois uma breve passagem pela Editora
Abril, que economicamente não dá certo e finalmente acontece a
redescoberta da Turma do Pererê pelas publicações educacionais,
quando esta criação é reconhecida como sendo a pioneira a tratar de temas de
ecologia, meio ambiente e da valorização da cultura brasileira. O segundo
desafio foi de como construir uma narrativa atrativa que desse conta da riqueza
dos percalços desta trajetória e ao mesmo tempo valorizar visualmente a
arte gráfica de Ziraldo. Também tivemos o objetivo de revelar o talento e os
segredos que fazem dele um autêntico contador de historias, que como ninguém,
consegue se comunicar tão facilmente com os públicos de todas as idades. A terceira
foi encontrar testemunhos e análises capazes de dissecar os personagens nas
suas formas gráficas e personalidades. A solução para tudo isso foi
juntar um verdadeiro time de entrevistados de primeira linha, com expertises
variadas como: Laerte, Mauricio de Sousa, Mig, Otta, Álvaro de Moya, Gonçalo
Junior, entre outros.
Ziraldo quando criou A Turma do Pererê. Foto: Divulgação |
VSP- Ziraldo é o criador destes e de vários personagens. Você acha que ele merecia mais documentários?
Sim, existem varias facetas nas artes e habilidades de Ziraldo como
quadrinista, cartunista, escritor, jornalista, ativista político, artista
gráfico entre outras. Diversos de seus personagens e os processos de criação
dele valeriam a feitura de diferentes documentários. De suas criações
ficcionais, tanto adultas quanto das infantis extrairíamos mais
filmes e mais series, tanto com atores em live action" quanto
em animação.
VSP- Qual é o maior mérito do Ziraldo com o público infantil?
Acho que é a sua comunicabilidade, sua simplicidade ao narrar historias
que tocam e atraem esse publico infantil. Ziraldo intuitivamente compreende o
que os move e o que impulsiona sua curiosidade pueril. Seu humor
satírico e a abordagem nas suas historias de acontecimentos e fatos
cotidianos que estão constantemente ao redor das crianças. E essas são
percebidas claramente por estas, mesmo que sejam rotuladas como
temas para serem refletidos apenas por “adultos”, são uma das
chaves de sua facilidade de fazê-las mergulhar no seu universo e se simpatizarem
por seus personagens. Além, é claro, da beleza dos seus traços econômicos, o
sentido de movimento e a utilização de diversos elementos gráficos marcantes,
tais como as cores fortes, as onomatopeias impactantes e as angulações e
disposições espaciais das suas narrativas.
Foto: Divulgação |
Ambos são, cada um a seu modo, grandes criadores de personagens
empáticos ao mundo infanto-juvenil. Acho que um é o espelho do outro,
Mauricio admira a genialidade do artista gráfico completo que é Ziraldo e
este admira o espírito empreendedor e organizado de Mauricio que o levou a
criar um império editorial e multiplicar e sustentar suas criações. Ziraldo é
um workaholic que gosta de ter
controle sobre todo seu processo criativo, um obsessivo pela sua perfeição.
Mauricio delega mais e trafega melhor pelos aspectos econômicos de seus
produtos, é mais focado num universo onde se sente mais a vontade, voltado
quase que exclusivamente para crianças e adolescentes. Já o Ziraldo é atraído
por uma gama enorme de atividades e das possibilidades de exercitar seus
talentos em áreas diversas e voltadas para públicos de diferentes faixas de
idade.
VSP- Você acredita que o Amigo da Onça do Péricles também podia dar um documentário?
Eu acho que sim, e sei pessoalmente bem disso. O Amigo da Onça foi um
dos personagens mais conhecidos, idolatrado e amado do Brasil
durante algumas décadas do século XX. Seu criador Péricles, compositor,
poeta e desenhista de talento, depressivo, se suicidou, e segundo reza a
lenda, por ter sido ultrapassado em fama por seu personagem e não ser reconhecido
como o autor do mesmo. Apesar da morte de Péricles, O Amigo da Onça continuou a
ser desenhado por vários artistas e ainda manteve seu sucesso nas paginas da
revista O Cruzeiro durante muitos
anos. Depois, lentamente esse personagem foi desaparecendo e hoje ser apenas
uma pálida lembrança de tempos “antigos”. Os motivos para o estrondoso sucesso
nos anos 1950 e 1960 e o que levou ao esvaecimento deste personagem a partir da
década seguinte é para muitos um mistério que valeria uma investigação
fílmica. Eu já tive o desejo de fazer este projeto, mas acabei
fazendo um roteiro com o quadrinista Ofeliano, para um filme, a partir de uma
curta história em quadrinhos deste, mas por diversos fatores acabei não
filmando. Anos depois repassei este roteiro para um amigo cineasta, o
Terêncio Porto, que realizou o belo curta-metragem A Ultima do Amigo da Onça, do qual fui
também co-produtor. O curta é uma ficção que trata do tema da relação
destrutiva entre criador e sua criatura. Você encontra no youtube (https://www.youtube.com/watch?v=TYfC75hX7Q0)
veja e divirta-se.
VSP- Quais são as
maiores dificuldades de se fazer cinema no Brasil hoje?
Basicamente as mesmas de sempre desde que comecei a trabalhar com
audiovisual ao sair do curso de cinema da UFF (Universidade Federal Fluminense)
nos anos 1980. Primeiro, conseguir recursos para desenvolver um bom
projeto, com tempo para pesquisa e maturação das ideias visando criar um
argumento robusto que leve a um roteiro consistente. O segundo é levantar
financiamento para produzir um filme de maneira confortável compatibilizando
custo e conteúdo, isto é um processo no Brasil muito demorado, burocrático e
sujeito aos humores dos gestores do audiovisual. São basicamente pessoas do
governo e seus órgãos públicos de fomento e controle. Terceiro: uma vez
pronto o filme precisa ultrapassar um gargalo de distribuição e colocação no
exíguo mercado de exibição brasileiro, então mais uma vez há a
necessidade de se levantar um bom capital para os gastos relativos ao
lançamento. Resumindo: a questão principal são as poucas fontes de
financiamento, escassas para o volume de novos projetos e cineastas que surgem
a cada dia. O desenvolvimento das novas tecnologias e meios de difusão
digital aumentaram o espectro da visibilidade, mas a produção ainda é muito
dependente das poucas fontes de recursos financeiros existentes.
VSP- O que você acha do atual momento do documentário brasileiro?
Acho que por uma questão de serem filmes com seus custos menores e mais
viáveis que dos filmes de ficção, o documentário se tornou uma alternativa de
produção rápida. Assim acho que ao longo das duas ultimas décadas este gênero
ganhou um impulso enorme, sua riqueza de temáticas e a possibilidade dos
realizadores se arriscarem mais na linguagem narrativa atraiu uma enorme gama
de novos autores, através dos meios digitais modernos o documentário encontrou
mais e mais canais de difusão e acolhida, tornando-se uma categoria muito
atraente e consumida pelos espectadores, com muitos canais dedicados a este
segmento de produção. Mas nos cinemas tradicionais, apesar do grande numero de
títulos lançados, continua como um gênero de nicho, com poucos espaços
comerciais de visibilidade. Mostras, Festivais e cineclubes ainda são sua principal
base de difusão.
VSP- Na sua opinião, qual é o futuro do cinema brasileiro com uma política tão predatória a produção nacional?
Independentemente do que esta acontecendo neste momento no Brasil, o cinema
brasileiro continua sua inexorável marcha, como eu disse antes: mais e mais
cineastas aparecem a cada dia, pois o digital esta aí e veio para ficar. No
nosso cotidiano estamos conteúdos diversos e novos o tempo todo. Assim o audiovisual
brasileiro em todas as suas vertentes persiste, e o cinema é a principal e mais
nobre delas. Não importa o quanto governos e governantes tentem bloquear,
cercear ou direcionar a produção, Ela, de um jeito ou de outro escorre pelos
lados, por baixo e por cima, ultrapassa tudo. Esta produção é resiliente, se
esquiva, se dissimula. Já passamos por épocas terríveis neste país. Desde as
censuras atuantes nas Ditaduras que conhecemos por décadas no Brasil, da
destruição das estruturas de fomento e regulação na era “Collor”, talvez o
momento mais terrível para a nossa produção cinematográfica, mas que a
estimulou e a fez renascer em um outro modelo, que ajudou a fazer crescer os
campos de produção de imagens que alcançamos no inicio deste século. Agora, temos
nossa cinematografia outra vez sob ataque de forças obscurantistas. Mas apesar
das baixas nas taxas de produção e dos entraves colocados no caminho,
continuaremos como realizadores a criar, a fazer, a sonhar e ocuparemos sempre
todos os espaços possíveis. Sempre descobriremos ou inventaremos locais e
momentos para exibir nossas imagens. É impossível segurar o
tempo e devir do futuro e este é cada vez mais audiovisual, O cinema brasileiro
persistira e vai sempre mostrar sua criatividade e diversidade.
Segue o trailer:
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