terça-feira, 22 de outubro de 2019

VSP Entrevista: Ricardo Favilla



O documentário de longa-metragem A Turma do Pererê.doc conta a trajetória do primeiro gibi colorido de um só autor brasileiro. Publicado pela primeira vez em 1959, os personagens Pererê, Tininim, Galileu e sua trupe fizeram sucesso com adultos e crianças naquele final dos anos 1950 e início dos 1960. As histórias eram publicadas nas páginas de O Cruzeiro, revista semanal editada pela Diários Associados. O criador de todas as aventuras da Turma do Pererê é o cartunista, chargista, escritor, desenhista, humorista e workhaloic assumido Ziraldo Alves Pinto. Um dos maiores nomes dos gibis e das histórias em quadrinho do Brasil, Ziraldo inspirou-se nas histórias de Monteiro Lobato e na sua própria infância passada no interior de Minas Gerais para criar esses personagens. Aos 87 anos, Ziraldo segue ativo e publicando mais trabalhos. O cineasta carioca Ricardo Favilla teve o mérito de pegar a história de parte da obra de Ziraldo e fazer um interessante documentário. Um verdadeiro documento histórico que remete a trajetória da Turma do Pererê, de Ziraldo, das histórias em quadrinho e da própria imprensa brasileira das últimas décadas. O VSP conversou com exclusividade com o diretor Ricardo Favilla.

Violão, Sardinha e Pão- Como surgiu a ideia do documentário?

Ricardo Favilla- A ideia na verdade surgiu da cabeça de um fã convicto do Ziraldo, o Tarcísio Vidigal, produtor dos dois filmes de ficção do Menino Maluquinho com quem eu já havia trabalhado. Ele desejava fazer a muito tempo alguma coisa sobre este icônico personagem os quadrinhos brasileiros: o Pererê. O Tarcísio fez uma extensa pesquisa, que resultou numa exposição itinerante congregando tudo que existia em torno desta publicação ao longo de décadas. Um primeiro roteiro para o documentário foi feito, mas a abordagem não o satisfez, como o Tarcísio sabia que eu  também  era um grande curtidor e interessado em HQs  me convidou para retrabalhar este roteiro, e acho que dei conta do recado. Depois fui convidado para dirigir o filme e isso foi um grande prazer.


VSP- Você era leitor da Turma do Pererê?

Não, na época do lançamento e da duração da primeira fase, a mais famosa, da revista do Pererê eu era um bebe de colo.  Meu contato com a obra do Ziraldo se deu mais tarde através de outra extraordinária criação deste genial artista chamada  Jeremias, o Bom. Essa obra era voltada mais para adultos e apesar de eu ser muito criança e não entender a maioria das piadas, me fascinou pelos traços e  pela ousadia de ocupar as paginas de uma maneira que nenhuma outra publicação de desenhos fazia naquele tempo.  Eu era leitor das revistas convencionais voltadas para o público infantil da época como Tom e Jerry, Personagens da Disney e Super Heróis publicados pela Ebal e Bloch editoras. Ziraldo me levou a buscar um novo mundo de desenhistas, o americano Robert Crumb e outros do chamado "udigrudi" americano, os europeus de linha clara, Hergê, Goscynni, o italiano Hugo Pratt e depois me deparei com os mestres desenhistas da francesa Metal Hurlant. Nesta época, um pouco precocemente, comecei a acompanhar a semanal publicação satírica e política O Pasquim, muito por causa de Ziraldo, Henfil, Jaguar e outros cartunistas e ilustradores brasileiros que lá estreavam. Foi ali que travei contato pela primeira vez com a Turma do Pererê, revisitada em preto e branco nas paginas do que Ziraldo chamava o suplemento Infantil Subversivo do nanico tabloide.

VSP- Quais foram suas principais dificuldades?
 
A primeira foi filtrar a enorme  quantidade de material. Existam muitas informações acerca da trajetória do Ziraldo, que tem uma vasta produção gráfica e uma atuação constante como personalidade midiática e multimídia. Concentrei-me na trajetória do personagem e  da revista, que obviamente esta entrelaçada com do próprio Ziraldo, nas suas diversas fases, partindo das condições políticas e econômicas que alavancaram a sua Gênese como primeira revista colorida em quadrinhos de um só autor brasileiro. Os personagens fizeram sucesso e crescimento em meio á luta pela nacionalização do Quadrinho Brasileiro, na qual Ziraldo era uma das pontas de Lança, juntamente com Mauricio de Sousa, e assim nasce uma profunda e duradoura amizade entre ambos. A revista sofre uma abrupta interrupção  por ocasião do golpe militar de 1964. A partir daí tentativas são feitas por Ziraldo para atualizá-la, debaixo da cerrada vigilância da censura da Ditadura no período do O Pasquim. Há  depois uma breve passagem pela  Editora Abril, que economicamente não dá certo e finalmente  acontece a redescoberta da Turma do  Pererê  pelas publicações educacionais, quando esta criação é reconhecida como sendo a pioneira a tratar de temas de ecologia, meio ambiente e da valorização da cultura brasileira. O segundo desafio foi de como construir uma narrativa atrativa que desse conta da riqueza dos  percalços desta trajetória e ao mesmo tempo valorizar visualmente a arte gráfica de Ziraldo. Também tivemos o objetivo de revelar o talento e os segredos que fazem dele um autêntico contador de historias, que como ninguém, consegue se comunicar tão facilmente com os públicos de todas as idades. A terceira foi encontrar testemunhos e análises capazes de dissecar os personagens nas suas formas gráficas e personalidades. A solução para tudo isso foi  juntar um verdadeiro time de entrevistados de primeira linha, com expertises variadas como: Laerte, Mauricio de Sousa, Mig, Otta, Álvaro de Moya, Gonçalo Junior, entre outros.

Ziraldo quando criou A Turma do Pererê. Foto: Divulgação

VSP- Ziraldo é o criador destes e de vários personagens. Você acha que ele merecia mais documentários?

Sim, existem varias facetas nas artes e habilidades de Ziraldo como quadrinista, cartunista, escritor, jornalista, ativista político, artista gráfico entre outras. Diversos de seus personagens e os processos de criação dele valeriam a feitura de diferentes documentários.  De suas criações ficcionais, tanto adultas quanto das  infantis extrairíamos mais filmes e mais series,  tanto com atores em  live action" quanto em animação. 


VSP- Qual é o maior mérito do Ziraldo com o público infantil?

Acho que é a sua comunicabilidade, sua simplicidade ao narrar historias que tocam e atraem esse publico infantil. Ziraldo intuitivamente compreende o que os move e o que  impulsiona sua curiosidade pueril.  Seu humor satírico e a abordagem nas suas historias de acontecimentos e fatos cotidianos que estão constantemente ao redor das crianças. E essas são percebidas claramente  por estas,  mesmo que sejam rotuladas como temas  para serem refletidos apenas por  “adultos”, são uma das chaves de sua facilidade de fazê-las mergulhar no seu universo e se simpatizarem por seus personagens. Além, é claro, da beleza dos seus traços econômicos, o sentido de movimento e a utilização de diversos elementos gráficos marcantes, tais como as cores fortes, as onomatopeias impactantes e as angulações e disposições espaciais das suas narrativas. 

Foto: Divulgação
VSP- Pelo seu documentário percebemos uma diferença do lado empreendedor do Maurício de Souza e do Ziraldo. Como é isso?

Ambos são, cada um a seu modo, grandes criadores de personagens empáticos ao mundo infanto-juvenil.  Acho que um é o espelho do outro, Mauricio admira a genialidade do artista gráfico completo que é Ziraldo e este admira o espírito empreendedor e organizado de Mauricio que o levou a criar um império editorial e multiplicar e sustentar suas criações. Ziraldo é um workaholic que gosta de ter controle sobre todo seu processo criativo, um obsessivo pela sua perfeição. Mauricio delega mais e trafega melhor pelos aspectos econômicos de seus produtos, é mais focado num universo onde se sente mais a vontade, voltado quase que exclusivamente para crianças e adolescentes. Já o Ziraldo é atraído por uma gama enorme de atividades e das possibilidades de exercitar seus talentos em áreas diversas e voltadas para públicos de diferentes faixas de idade. 


VSP- Você acredita que o Amigo da Onça do Péricles também podia dar um documentário?

Eu acho que sim, e sei pessoalmente bem disso. O Amigo da Onça foi um dos  personagens mais conhecidos, idolatrado e amado do Brasil durante  algumas décadas do século XX. Seu criador Péricles, compositor, poeta e desenhista de talento, depressivo,  se suicidou, e segundo reza a lenda, por ter sido ultrapassado em fama por seu personagem e não ser reconhecido como o autor do mesmo. Apesar da morte de Péricles, O Amigo da Onça continuou a ser desenhado por vários artistas e ainda manteve seu sucesso nas paginas da revista O Cruzeiro durante muitos anos. Depois, lentamente esse personagem foi desaparecendo e hoje ser apenas uma pálida lembrança de tempos “antigos”. Os motivos para o estrondoso sucesso nos anos 1950 e 1960 e o que levou ao esvaecimento deste personagem a partir da década seguinte é para muitos um mistério que valeria uma investigação fílmica.   Eu já tive o desejo de fazer este projeto, mas acabei fazendo um roteiro com o quadrinista Ofeliano, para um filme, a partir de uma curta história em quadrinhos deste, mas por diversos fatores acabei não filmando.  Anos depois repassei este roteiro para um amigo cineasta, o Terêncio Porto,  que realizou o belo curta-metragem  A Ultima do Amigo da Onça, do qual fui também co-produtor. O curta é uma ficção que trata do tema da relação destrutiva entre criador e sua criatura. Você encontra no youtube (https://www.youtube.com/watch?v=TYfC75hX7Q0)  veja e divirta-se.


VSP- Quais são as maiores dificuldades de se fazer cinema no Brasil hoje?

Basicamente as mesmas de sempre desde que comecei a trabalhar com audiovisual ao sair do curso de cinema da UFF (Universidade Federal Fluminense) nos anos 1980.  Primeiro, conseguir recursos para desenvolver um bom projeto, com tempo para pesquisa e maturação das ideias visando criar um argumento robusto que leve a um roteiro consistente. O segundo é levantar financiamento para produzir um filme de maneira confortável compatibilizando custo e conteúdo, isto é um processo no Brasil muito demorado, burocrático e sujeito aos humores dos gestores do audiovisual. São basicamente pessoas do governo e seus órgãos públicos de fomento e controle.  Terceiro: uma vez pronto o filme precisa ultrapassar um gargalo de distribuição e colocação no exíguo  mercado de exibição brasileiro, então mais uma vez há a necessidade de se levantar um bom capital para os gastos relativos ao lançamento.  Resumindo: a questão principal são as poucas fontes de financiamento, escassas para o volume de novos projetos e cineastas que surgem a cada dia.  O desenvolvimento das novas tecnologias e meios de difusão digital aumentaram o espectro da visibilidade, mas a produção ainda é muito dependente das poucas fontes de recursos financeiros existentes.


VSP- O que você acha do atual momento do documentário brasileiro?

Acho que por uma questão de serem filmes com seus custos menores e mais viáveis que dos filmes de ficção, o documentário se tornou uma alternativa de produção rápida. Assim acho que ao longo das duas ultimas décadas este gênero ganhou um impulso enorme, sua riqueza de temáticas e a possibilidade dos realizadores se arriscarem mais na linguagem narrativa atraiu uma enorme gama de novos autores, através dos meios digitais modernos o documentário encontrou mais e mais canais de difusão e acolhida, tornando-se uma categoria muito atraente e consumida pelos espectadores, com muitos canais dedicados a este segmento de produção. Mas nos cinemas tradicionais, apesar do grande numero de títulos lançados, continua como um gênero de nicho, com poucos espaços comerciais de visibilidade. Mostras, Festivais e cineclubes ainda são sua principal base de difusão.


VSP- Na sua opinião, qual é o futuro do cinema brasileiro com uma política tão predatória a produção nacional?

Independentemente do que esta acontecendo neste momento no Brasil, o cinema brasileiro continua sua inexorável marcha, como eu disse antes: mais e mais cineastas aparecem a cada dia, pois o digital esta aí e veio para ficar. No nosso cotidiano estamos conteúdos diversos e novos o tempo todo. Assim o audiovisual brasileiro em todas as suas vertentes persiste, e o cinema é a principal e mais nobre delas. Não importa o quanto governos e governantes tentem bloquear, cercear ou direcionar a produção, Ela, de um jeito ou de outro escorre pelos lados, por baixo e por cima, ultrapassa tudo. Esta produção é resiliente, se esquiva, se dissimula. Já passamos por épocas terríveis neste país. Desde as censuras atuantes nas Ditaduras que conhecemos por décadas no Brasil, da destruição das estruturas de fomento e regulação na era “Collor”, talvez o momento mais terrível para a nossa produção cinematográfica, mas que a estimulou e a fez renascer em um outro modelo, que ajudou a fazer crescer os campos de produção de imagens que alcançamos no inicio deste século. Agora, temos nossa cinematografia outra vez sob ataque de forças obscurantistas. Mas apesar das baixas nas taxas de produção e dos entraves colocados no caminho, continuaremos como realizadores a criar, a fazer, a sonhar e ocuparemos sempre todos os espaços possíveis. Sempre descobriremos ou inventaremos locais e momentos para exibir nossas imagens. É impossível segurar o tempo e devir do futuro e este é cada vez mais audiovisual, O cinema brasileiro persistira e vai sempre mostrar sua criatividade e diversidade.  

Segue o trailer:

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