O diretor de "Cidadão Kane" no litoral do Ceará. Foto: Divulgação |
Orson Welles e
os jangadeiros do Ceará. Dois universos completamente diferentes que se
encontraram em 1941. O cineasta norte-americano esteve no Brasil comandando seu
longa-metragem It´s All True. Muita gente pensa
que a passagem de Welles pelo Brasil restringiu-se ao Rio de Janeiro. Mas o
controverso realizador de Cidadão Kane também esteve
presente no Ceará. Lá ele filmou um grupo de jangadeiros que conseguiram
grandes façanhas históricas. Essa interessante passagem é lembrada no
documentário de longa-metragem A Jangada de Welles. O filme
esteve presente na última Mostra Internacional de São Paulo e teve uma boa
acolhida com a crítica especializada. A fita foi assinado pela dupla de
diretores Petrus Cariry e Firmino Holanda. Eles conversaram com exclusividade
com o VSP sobre o filme, Orson
Welles, a produção cearense e o atual momento do cinema brasileiro.
Violão, Sardinha e Pão- Como
surgiu a ideia do documentário?
Petrus Cariry e
Firmino Holanda- É sempre difícil lembrar precisamente como ou quando surgem as
ideias. A Jangada de Welles talvez
tenha decorrido da vontade de se explorar mais verticalmente alguns temas
ligados à trajetória de Orson Welles aqui no Brasil. Em 2005, fizemos o
média-metragem Cidadão Jacaré,
documentário de TV mais voltado à figura de Manuel Jacaré, destacado como
representante das lutas em favor dos tão desassistidos jangadeiros cearenses
(esse filme, por sua vez, tinha como matriz o livro Orson Welles no
Ceará, editado em 2001). No novo filme, agora em longa-metragem, o
foco narrativo se aproxima bem mais da figura humana de Orson Welles. Mesmo
assim, sem nunca perder de vista as questões centrais que motivaram nossos
trabalhadores do mar a fazer aquela viagem épica ao Rio de Janeiro, em cima de
uma frágil embarcação, para cobrar do governo seus direitos.
VSP- Como vocês ouviram falar a
primeira vez de Manuel Jacaré?
Manuel Jacaré é
nome de rua em Fortaleza, assim como Jerônimo, um de seus parceiros na citada
viagem histórica de 1941. No ano seguinte, foram intérpretes de si mesmos
no inacabado It’s all true de
Orson Welles. Então, eles junto a Manuel Preto e Tatá, são personagens
que fazem parte da memória local, embora sem a mesma fama de um Dragão do Mar,
herói da libertação dos escravos, figura também vinculado ao mundo dos
jangadeiros. Manuel Jacaré, entretanto, apesar de famoso em seu tempo, ficou
esquecido e voltou a ser lembrado há cerca de três décadas. Realizar um filme
sobre ele e seus companheiros é uma tentativa de fazer com que tantos outros
brasileiros, talvez pela “primeira vez”, também ouçam falar desses símbolos da
resistência popular.
VSP- Ele é um
baita personagem. Vocês não acreditam que ele merecia um filme só dele?
Sim, Manuel
Jacaré mereceria um filme biográfico, por sua coragem como jangadeiro, por sua
relação com Orson Welles (que o admirava) e principalmente por sua articulação
política, para a qual se preparou alfabetizando-se. Inclusive nos entrevistamos
sua professora, que ressalta o esforço desse homem já adulto em aprender as
primeiras letras e tentar, com esse conhecimento, tentar mudar o seu mundo,
numa perspectiva coletiva. Portanto, foi um exemplo, que mantém sua
atualidade, particularmente nesses novos tempos onde se promove a incultura.
Nosso filme sugere dados biográficos, abrindo caminho para quem quiser tentar a
empreitada cinematográfica que você sugere.
VSP- Quanto tempo durou a passagem
de Orson Welles pelo Ceará?
Depois do
Carnaval de 1942, que Welles passou trabalhando no Rio de Janeiro, ele esteve
por uns dois dias em Fortaleza, escolhendo locações e mantendo contatos com
pessoas vinculadas ao episódio que produziria aqui, sobre os jangadeiros.
Quando finalmente veio ao Ceará, para rodar este filme, em junho do mesmo ano,
ficou por uns vinte e cinco dias. Esse número é meio impreciso porque,
eventualmente, ele se deslocou para Estados vizinhos, quando recriava aquela
aventura náutica dos jangadeiros cearenses.
VSP- Desde o
início vocês quiseram fazer um documentário sobre o tema? Não pensaram em fazer
uma ficção?
Sempre pensamos
em fazer um documentário, tocados pela experiência do nosso já citado
média Cidadão Jacaré (2005).
Em A Jangada de Welles (2019),
retomamos o tema, agora dispondo de melhores condições, inerentes a uma
produção de longa-metragem, mesmo que de baixo orçamento, tendo acesso a mais
imagens de acervo cine-fotográfico etc.
VSP- Vocês
tiveram alguma preocupação para não ficar parecido com os títulos do Rogério
Sganzerla sobre o tema?
Não tivemos
preocupação quanto a isto, pois existem diferenças fundas entre nossas
produções, apesar de permeadas por temática histórica comum (Estado Novo,
Segunda Guerra, Política da Boa Vizinhança e o filme de Orson). A
Jangada de Welles concentra-se muito no Ceará, nas relações
sociais, políticas e históricas dos trabalhadores do mar frente ao governo
federal; destaca a presença de movimentos locais que interferem, há décadas,
nas vidas dos jangadeiros, que foram sendo expulsos da orla marítima de
Fortaleza, ocupada agora por condomínios de classe média alta. Retrata ainda
aspectos particulares da geografia humana na província cearense de décadas
passadas, destacando o encontro sertão-mar. Por sua vez, os grandes filmes de
Rogério Sganzerla são visceralmente mais voltados à figura de Orson Welles e
suas relações gerais com o Brasil, na época do Estado Novo. Evidentemente, ele
fala dos jangadeiros na sua obra, mas sobretudo se concentrando no cenário do
Rio de Janeiro, no seu carnaval, na paisagem cultural da metrópole (ao
contrário do nosso Ceará caboclo, trata de algo de matriz mais africana). Nós
também tocamos nesses pontos, mas sem adentrarmos tanto na atmosfera carioca,
que Sganzerla tão bem retratou em Nem tudo é verdade, aliás, filme que citamos no nosso
trabalho, que ainda conta com depoimento de sua notável atriz Helena Ignez.
VSP- Quais foram as maiores
dificuldades para a realização da Jangada de Welles?
Em termos de
produção, as maiores dificuldades decorreram da necessidade de reunirmos o
máximo de material de arquivos cine-fotográficos. Também tivemos um trabalho de
recuperação de som e imagem, que consumiu um bom tempo do projeto. Trabalhamos
inclusive com suportes em película e em vídeo que já estavam bem desgastados.
VSP- Como vocês analisam o
percurso desse filme dentro do cinema brasileiro?
Se a pergunta
diz respeito ao futuro do nosso filme, este ainda ensaia seus primeiros passos.
Portanto, é difícil prever o rumo que vai tomar daqui para frente. Mas
acreditamos que terá algum espaço dentro desse vasto campo da prospecção da
memória nacional, que sempre deve ser remexida e repensada, caso contrário
somos nós que perdemos o rumo.
VSP- Como
vocês analisam o atual momento do cinema cearense?
O momento atual
do cinema cearense é celebrado como promissor, por conta de algumas conquistas,
mas continua sendo também um instante de luta e de cobrança por mais recursos.
Isso que foi conquistado não pode ser perdido. Ainda existe uma considerável
variedade de propostas estéticas e em diversos tamanhos de produção, buscando
alguma forma de reconhecimento, seja no mercado ou no circuito de
festivais. Mas, diríamos que isto, no geral, não seria um caso exclusivo
do Ceará.
VSP- Na
opinião de vocês, qual é o futuro do cinema brasileiro com uma política tão
predatória?
Além do cinema
brasileiro tentar manter uma postura critica e política, ele tem que traçar
firmemente sua própria história, defendendo o seu valor artístico em tempos de
ataques assim tão pouco velados contra cultura e ao simples pensar
diferente. A Jangada de
Welles, além de retratar a
luta dos deserdados, ressalta também como se manifestou a intolerância
institucionalizada naqueles tempos, quando Orson Welles tentou retratar a vida
de sambistas, de pescadores, de afro-brasileiros, de caboclos deste
aparentemente eterno “país do futuro”, aliás, denominação
difundida desde aquela época.
VSP- Quais são seus próximos
projetos?
Estamos
trabalhando juntos em um roteiro chamado Mais Pesado que o Céu, um longa-metragem de ficção que deve
ser filmado no ano que vem.
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