segunda-feira, 18 de novembro de 2019

VSP Entrevista: Petrus Cariry e Firmino Holanda, diretores de “A Jangada de Welles”

O diretor de "Cidadão Kane" no litoral do Ceará. Foto: Divulgação
Orson Welles e os jangadeiros do Ceará. Dois universos completamente diferentes que se encontraram em 1941. O cineasta norte-americano esteve no Brasil comandando seu longa-metragem It´s All True. Muita gente pensa que a passagem de Welles pelo Brasil restringiu-se ao Rio de Janeiro. Mas o controverso realizador de Cidadão Kane também esteve presente no Ceará. Lá ele filmou um grupo de jangadeiros que conseguiram grandes façanhas históricas. Essa interessante passagem é lembrada no documentário de longa-metragem A Jangada de Welles. O filme esteve presente na última Mostra Internacional de São Paulo e teve uma boa acolhida com a crítica especializada. A fita foi assinado pela dupla de diretores Petrus Cariry e Firmino Holanda. Eles conversaram com exclusividade com o VSP sobre o filme, Orson Welles, a produção cearense e o atual momento do cinema brasileiro.

Violão, Sardinha e Pão- Como surgiu a ideia do documentário?

Petrus Cariry e Firmino Holanda- É sempre difícil lembrar precisamente como ou quando surgem as ideias. A Jangada de Welles talvez tenha decorrido da vontade de se explorar mais verticalmente alguns temas ligados à trajetória de Orson Welles aqui no Brasil. Em 2005, fizemos o média-metragem Cidadão Jacaré, documentário de TV mais voltado à figura de Manuel Jacaré, destacado como representante das lutas em favor dos tão desassistidos jangadeiros cearenses (esse filme, por sua vez, tinha como matriz o livro Orson Welles no Ceará, editado em 2001). No novo filme, agora em longa-metragem, o foco narrativo se aproxima bem mais da figura humana de Orson Welles. Mesmo assim, sem nunca perder de vista as questões centrais que motivaram nossos trabalhadores do mar a fazer aquela viagem épica ao Rio de Janeiro, em cima de uma frágil embarcação, para cobrar do governo seus direitos.


VSP- Como vocês ouviram falar a primeira vez de Manuel Jacaré?

Manuel Jacaré é nome de rua em Fortaleza, assim como Jerônimo, um de seus parceiros na citada viagem histórica  de 1941. No ano seguinte, foram intérpretes de si mesmos no inacabado It’s all true de Orson Welles. Então, eles  junto a Manuel Preto e Tatá, são personagens que fazem parte da memória local, embora sem a mesma fama de um Dragão do Mar, herói da libertação dos escravos, figura também vinculado ao mundo dos jangadeiros. Manuel Jacaré, entretanto, apesar de famoso em seu tempo, ficou esquecido e voltou a ser lembrado há cerca de três décadas. Realizar um filme sobre ele e seus companheiros é uma tentativa de fazer com que tantos outros brasileiros, talvez pela “primeira vez”, também ouçam falar desses símbolos da resistência popular.

VSP- Ele é um baita personagem. Vocês não acreditam que ele merecia um filme só dele?

Sim, Manuel Jacaré mereceria um filme biográfico, por sua coragem como jangadeiro, por sua relação com Orson Welles (que o admirava) e principalmente por sua articulação política, para a qual se preparou alfabetizando-se. Inclusive nos entrevistamos sua professora, que ressalta o esforço desse homem já adulto em aprender as primeiras letras e tentar, com esse conhecimento, tentar mudar o seu mundo, numa perspectiva coletiva.   Portanto, foi um exemplo, que mantém sua atualidade, particularmente nesses novos tempos onde se promove a incultura. Nosso filme sugere dados biográficos, abrindo caminho para quem quiser tentar a empreitada cinematográfica que você sugere. 

VSP- Quanto tempo durou a passagem de Orson Welles pelo Ceará?

Depois do Carnaval de 1942, que Welles passou trabalhando no Rio de Janeiro, ele esteve por uns dois dias em Fortaleza, escolhendo locações e mantendo contatos com pessoas vinculadas ao episódio que produziria aqui, sobre os jangadeiros. Quando finalmente veio ao Ceará, para rodar este filme, em junho do mesmo ano, ficou por uns vinte e cinco dias. Esse número é meio impreciso porque, eventualmente, ele se deslocou para Estados vizinhos, quando recriava aquela aventura náutica dos jangadeiros cearenses.
  
VSP- Desde o início vocês quiseram fazer um documentário sobre o tema? Não pensaram em fazer uma ficção?

Sempre pensamos em fazer um documentário, tocados pela experiência do nosso já citado média Cidadão Jacaré (2005). Em A Jangada de Welles (2019), retomamos o tema, agora dispondo de melhores condições, inerentes a uma produção de longa-metragem, mesmo que de baixo orçamento, tendo acesso a mais imagens de acervo cine-fotográfico etc. 

VSP- Vocês tiveram alguma preocupação para não ficar parecido com os títulos do Rogério Sganzerla sobre o tema?

Não tivemos preocupação quanto a isto, pois existem diferenças fundas entre nossas produções, apesar de permeadas por temática histórica comum (Estado Novo, Segunda Guerra, Política da Boa Vizinhança e o filme de Orson). A Jangada de Welles concentra-se muito  no Ceará, nas relações sociais, políticas e históricas dos trabalhadores do mar frente ao governo federal; destaca a presença de movimentos locais que interferem, há décadas, nas vidas dos jangadeiros, que foram sendo expulsos da orla marítima de Fortaleza, ocupada agora por condomínios de classe média alta. Retrata ainda aspectos particulares da geografia humana na província cearense de décadas passadas, destacando o encontro sertão-mar. Por sua vez, os grandes filmes de Rogério Sganzerla são visceralmente mais voltados à figura de Orson Welles e suas relações gerais com o Brasil, na época do Estado Novo. Evidentemente, ele fala dos jangadeiros na sua obra, mas sobretudo se concentrando no cenário do Rio de Janeiro, no seu carnaval, na paisagem cultural da metrópole (ao contrário do nosso Ceará caboclo, trata de algo de matriz mais africana). Nós também tocamos nesses pontos, mas sem adentrarmos tanto na atmosfera carioca, que Sganzerla tão bem retratou em Nem tudo é verdade, aliás, filme que citamos no nosso trabalho, que ainda conta com depoimento de sua notável atriz Helena Ignez.


VSP- Quais foram as maiores dificuldades para a realização da Jangada de Welles?

Em termos de produção, as maiores dificuldades decorreram da necessidade de reunirmos o máximo de material de arquivos cine-fotográficos. Também tivemos um trabalho de recuperação de som e imagem, que consumiu um bom tempo do projeto. Trabalhamos inclusive com suportes em película e em vídeo que já estavam bem desgastados.

VSP- Como vocês analisam o percurso desse filme dentro do cinema brasileiro?

Se a pergunta diz respeito ao futuro do nosso filme, este ainda ensaia seus primeiros passos. Portanto, é difícil prever o rumo que vai tomar daqui para frente. Mas acreditamos que terá algum espaço dentro desse vasto campo da prospecção da memória nacional, que sempre deve ser remexida e repensada, caso contrário somos nós que perdemos o rumo. 

VSP- Como vocês analisam o atual momento do cinema cearense?

O momento atual do cinema cearense é celebrado como promissor, por conta de algumas conquistas, mas continua sendo também um instante de luta e de cobrança por mais recursos. Isso que foi conquistado não pode ser perdido. Ainda existe uma considerável variedade de propostas estéticas e em diversos tamanhos de produção, buscando alguma forma de reconhecimento, seja no mercado ou no circuito de festivais. Mas, diríamos que isto, no geral, não seria um caso exclusivo do Ceará.

VSP-  Na opinião de vocês, qual é o futuro do cinema brasileiro com uma política tão predatória?

Além do cinema brasileiro tentar manter uma postura critica e política, ele tem que traçar firmemente sua própria história, defendendo o seu valor artístico em tempos de ataques assim tão pouco velados contra cultura e ao simples pensar diferenteA Jangada de Welles, além de retratar a luta dos deserdados, ressalta também como se manifestou a intolerância  institucionalizada naqueles tempos, quando Orson Welles tentou retratar a vida de sambistas, de pescadores, de afro-brasileiros, de caboclos deste aparentemente eterno “país do futuro”, aliás, denominação  difundida desde aquela época.

VSP- Quais são seus próximos projetos?

Estamos trabalhando juntos em um roteiro chamado Mais Pesado que o Céu, um longa-metragem de ficção que deve ser filmado no ano que vem.

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