sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

A histórica (e surreal) entrevista do repórter Percival de Souza com Tenório Cavalcanti, o “Homem da Capa Preta”


LEMBRAM-SE DE TENÓRIO?


Por Percival de Souza

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, alagoano de Palmeira dos Índios, está com 70 anos. Não se pode, entretanto, considera-lo um velho – e treze horas de conversa das 9 da manhã ás 10 da noite, serão suficientes para compreender isso.

Místico para alguns; carismático, para outros; pistoleiro aposentado para a grande maioria. Sua fortaleza com portas de aço, porão, provisões e munições suficiente para uma resistência de três meses, está abandonada, no centro de Caxias, uma espécie de museu não oficial da Baixada Fluminense. Da fortaleza, porém, não resta nenhum vestígio. As portas de aço ainda estão lá, no número 2.093 da Avenida Presidente Kennedy, cheia de cartazes eleitorais colados, uma modesta oficina mecânica ao lado.

Tenório Cavalcanti, porém, recolheu-se de vez à Vila São José, formada por casas que ele construiu e alugou: a escola, foi ele quem fundou. E uma comunidade de 100 mil pessoas vive ali. Tenório vive, e bem, de aluguel e contas de luz. Sua casa, próxima ás ruínas de uma antiga casa da Marquesa de Santos, é permanentemente visitada por políticos, professores, pedintes de todos os tipos. E quando sai, pela vila humilde, paupérrima, Tenório é visto como um místico. Os adultos cumprimentam-no respeitosamente, curvando à cabeça. As crianças o chamam de avô.

Aliás, foi essa exatamente por causa desse misticismo que, alguns anos atrás, o historiador norte-americano John Dulles foi conversar com ele. A conversa demorou sete horas. Enfoque? “A mística de Tenório”.

Deve-se esclarecer, agora, que Tenório é um homem muito inteligente, que possui cultura e sabe ser agradável numa conversa. “Vira a Caxias e não conversar com Tenório é a mesma coisa que ir a Roma e não falar com o Papa”, diz um dos jornalistas mais antigos de Duque de Caxias, Luís Carlos Garcia, de O Dia.

Tenório quer saber o motivo da visita. Explico. A conversa seria de duas horas, demorou treze.

- Baixada Fluminense? É a área mais delicada do Brasil. O Rio de Janeiro é ressentido com a Revolução e com São Paulo, e por isso não permite seu desenvolvimento industrial. O Rio é um dilúvio dos ressentidos nacionais. E a arca de Noé que bóia em cima é a Revolução de 64.

Tenório está indócil ao falar de política, mas seu assunto principal é a Baixada. E isso se torna difícil (a conversa aconteceu antes das eleições do dia 15 de novembro) porque a Arena requisitou Tenório para comícios, e ele subiu aos palanques de Barra Mansa, Juiz de Fora, Niterói, Itaperuna. Na varanda, está um homem quer se apresenta como sobrinho do presidente Figueiredo (será convidado a almoçar com ele); cabos eleitorais esperam o momento oportuno para pedir uma verba que cubra as despesas, inclusive de viagem, de alguns candidatos...

Tenório, porém, não quer ser interrompido. E deixa claro que uma conversa com “um jornalista do Jornal da Tarde” é extremamente honrosa para ele.

- Pois não, meu filho...



Qual é a causa do crime na Baixada?

- Ah sim! Entre nós, esmaga-se a lagarta, mas a causa é a sementeira. Aqui há autoridade ressentida contra autoridade. Bandido mata autoridade, para eliminar a concorrência.

Demonstro surpresa com essa definição. Tenório aproveita para escapar de novo para a política:

- Veja meu filho, o episódio Frota e Figueiredo. No Rio ficaram as peças principais do general Frota. E para onde mandaram essas peças? Para a Baixada Fluminense.

Tenório Cavalcanti explica, como se fora um profundo conhecedor dos bastidores do passado e também do presente:

- Os policiais têm seus esquemas. Estão bem aqueles que estão com os militares. E quem estava bem no esquema Frota, passou a ser afastado e punido. Quem estava em Copacabana saiu para São João do Meriti, Nilópolis.

Evidentemente, os problemas da Baixada não podem ser apenas esses. Insisto, Tenório responde:

- A Baixada é o porão escuro do Brasil. Quem mora nela não tem onde cair vivo, porque morto cai em qualquer parte.

Tenório me observa atentamente, para verificar o efeito da frase. Nota que o assunto Baixada é prioritário. Então, começa a falar muito do eu sabe, numa sala de jantar com arca colonial, garrafas de uísque Dimple, Chivas Regal e Buchanan´s bem visíveis, posições de destaque:

- Na Baixada, hoje, o comerciante paga mais pedágio de assaltas do que de impostos. Contudo, hoje morre-se muito menos que antes. De doença. De tiros, morre-se muito mais. No meu tempo, era um por ano e diziam que havia sido eu. Hoje, morrem 10 por dia e não se sabe quem foi – é difícil procurar gato preto em quarto escuro.

Tenório fala sem parar, gesticula muito, cria suspense para determinados pontos de conversa. Há momentos em que segura firmemente o meu braço, esforçando-se para ser convincente. E ele continua a dar suas explicações para a criminalidade e a violência da Baixada que ele tanto dominou, e onde ainda exerce influência política.

- A população da Baixada Fluminense é a metade do total do Rio de Janeiro. Mais ou menos 3 milhões da Baixada versus 6 milhões do Rio. O Rio de uns 50 mil homens, entre Polícia Civil e Polícia Militar. Na Baixada, menos de 5 mil. No Rio, existem prisões agrícolas, modelares; penitenciárias onde se faz curso para o crime; a Baixada tem hospitais para alienados. Receber maluco deixa rico.

E a segurança da Baixada Fluminense? Tenório prossegue nas suas definições bastante pessoas e muitas frases de efeito, soltas naturalmente:

- Não temos uma delegacia em condições de atender a realidade. Somos ferreiros da maldição: quando temos ferro, não temos carvão. A Baixada, antes, era vaso de serventia duvidosa. Morava-se no Rio, fazia-se a necessidade fisiológica na Baixada. Caxias era o porão dessa capitania.

Em 1926, Tenório chegava ao Rio, trazido pelo deputado estadual Natalício Cambuim, seu tio. Ensinamento do tio para o sobrinho: “A política brasileira vai como tumor maligno: quando para de doer começa a encher”. Tenório chegou com dezesseis anos. Estudou no Colégio D. Pedro II, formou-se em Direito na Universidade Federal e, onde se doutorou; fez curso de jornalismo e fundou A Luta Democrática, hoje arrendada por causa das dívidas e com circulação irregular e inexpressiva, nula diante de seu oponente, O Dia, propriedade de Chagas Freitas, outra vez governador.

Tenório diz que a Baixada chegou a ser “propriedade da família Vargas”:

- Naquele tempo, quem não tinha retrato de Getúlio Vargas na parede estava preso.

Lembrando-se do passado, falando em Washington Luís, Júlio Prestes, Otávio Mangabeira, Juarez Távora, Eduardo Gomes (de quem possui um enorme retrato, dentro de casa), Tenório recorda que trabalhou, como apontador de turma, na estrada Rio-Petrópolis.

Quando a estrada ficou pronta, “chegou o progresso” conta Tenório: os veículos que seguiam para São Paulo passavam por Caxias. Qualidade de vida?

- Já no meu tempo morriam 60 crianças por dia. Ruim por ruim, fica assim.

Tenório desvia a conversa novamente. Pergunta: o que é Deus? Ele mesmo responde: Deus é a base metafísica de todas as religiões na Terra.

Quer saber o que eu acho – respondo que isso é vago. Tenório insiste:

- Mas essa base é responsável pela exploração no vácuo...Deus é a sabedoria universal...Somos antítese, caminhamos em busca dos fluídos da divindade, frutos da sabedoria universal.

Procuro mudar de assunto. A cassação de Tenório será o próprio tema, mas antes ele se queixa das universidades (“só saem marxistas”) e afirma que a ciência moderna “subordina a cabeça ao estômago”.

- Em 1964, eu fui a última cassação da lista do Castelo. Logo em seguida minha prisão preventiva foi decretada pelo juiz de Caxias. Acusação? Autoria de homicídio. Queriam que eu tomasse um banho de justiça. Não fugi, fiquei em pé no meio do temporal. Dos seis processos de que me acusaram, livrei-me de todos. O Supremo Tribunal Federal mandou-me para casa.

Manda sua governanta, que trabalha na casa há 40 anos, trazer um velho paletó, cheio de furos, “buracos de bala”. Veste o paletó, sem nada por baixo, e pede para que eu assinale nas suas costas o buraco correspondente à cada furo no paletó. Com uma caneta esferográfica, faço círculos nas costas de Tenório. Depois, ele fará uma descrição dos ferimentos, mais ou menos graves, cicatrizados ou não. Como não morreu? “Fé”, responde, simplesmente, a justificar a mística do homem de colete de aço; homem do Cadillac amarelo conversível, imponente, hoje imprestável e abandonado logo à entrada de sua casa.

Qualquer intervalo é pretexto para mudar de assunto, e Tenório aproveita-se dos instantes em que vai tirar o velho paletó cheio de furos:

- Os militares não se podem dividir. Disso depende a unidade nacional.

Por que construiu uma fortaleza- interrompo.

- Na minha casa, escondi generais, brigadeiros e almirantes. A História não foi eacrita direito porque Tenório Cavalcanti não venceu – responde rápido, sem vacilar. Tirei o tenente Bandeira 15 anos depois (referência ao famoso Crime do Sacopã).

Tenório fala de Getúlio: “Volto em 1952 com ódio de quem o derrubou em 1945; naquele tempo, o pai de João Batista, o capitão Euclides Figueiredo, que servia no II Exército, teve sua cidadania cassada”.

E os tiros no paletó?

“Eu tinha de enfrentar Gregório no porão do Catete; porão de bandidos”.

E a sua cassação?

“O meu caso é pessoal...”

Como?

“Fui cassado por ordem de Costa e Silva, não por Castelo”.

E Tenório fala de períodos anteriores e posteriores à República: de Felipe Camarão, de Vidal de Negreiros, a invasão dos holandeses. Cita de cor nomes e datas com precisão. Pausa para uma nova frase: “O batráquio não suporta o brilho do vagalume”. Arremata: “Para que serve o Tenório? Prefiro ser místico”.

Sobre a Baixada, diz que seus moradores podem ser comparados, também, a um faquir “deitado em uma tábua de poucos pregos”.

Agora, Tenório está preocupado em demonstrar seu prestígio político e seu apreço pelo general Figueiredo. Mostra uma carta que recebeu há pouco tempo, enviada por um major, que ele diz pertencer ao Estado-Maior do Exército. Tenório conta que o major – e, de fato, exibe a carta – necessita de um estudo da “atual conjuntura nacional, face aos campos psicossociais, político, econômico”. Igualmente “face ao problema sucessório e os pensamentos das correntes de esquerda, centro e direita”; “pronome de crises e soluções do problema político-sócio-econômico”. O missivista, na carta, fala de “nossa causa, luta democrática em face da Revolução de 64 que está em perigo”.

Para Tenório, a carta é motivo de orgulho. A consulta, maior orgulho ainda. Na parede  da varanda, um cartaz colorido da Arena com uma fotografia de Figueiredo sorridente e a frase: “Nós precisamos de você. Vote Arena”.

Um grupo de professores está esperando Tenório há horas.

Tenório manda dizer que só vai recebê-las outro dia. As professoras continuam lá, por duas horas, e ele pede licença para atendê-las “rapidamente”.

Elas fazem reivindicações, dão aula para as crianças pobres da Vila São José, onde Tenório mantêm um educandário – 2.000 alunos – com o nome de sua mãe. Tenório aproveita para pedir que elas colaborem nas eleições, cabalando votos para a Arena. Diz que o trabalho delas é um sacerdócio. E, ali, cercado pelas professoras, diz:

- A palidez de vocês é coberta de ruge batom. É a fome crônica da Baixada Fluminense: o que ganham não dá para comer três vezes por dia.

Lurdinha? Era uma metralhadora alemã, niquelada, calibre 32, pente de 25 tiros, que ele ganhou de um militar, seu parente. Por que esse nome?

- Na guerra, havia moças italianas que namoravam os soldados brasileiros. Uma dessas moças, namorada de Abel, um soldado do Brasil, falava sem parar. Seu nome era Lurdes. Num dia de combate, alguém comentou: as metralhadoras alemãs falam mais do que a Lurdinha do Abel. O nome ficou.
                                                        
Essa metralhadora foi apreendida, quando – conforme conta Tenório – o ministro da Guerra, Lott, mandou cercar sua fortaleza – “uns 400 homens” – para apreender Lurdinha e, também, alguns “segredos militares”. Segundo Tenório, o Superior Tribunal  Militar o “isentou” do processo “imposto por Lott” e mandou devolver a metralhadora, “hoje numa vitrine especial do Exército”.

Tenório diz que foi graças à Lurdinha, de qualquer forma, que muitos pistoleiros ficaram com medo – atiraram de longe. Aos 70 anos, o maior mito do Município de Duque de Caxias afirma não temer a velhice:

- Medo é vergonha de viver. Medo da morte? Não, o homem tem medo de deixar as coisas boas da vida.

Tenório vai vestir, atendendo um pedido, a sua famosa capa preta. Como sempre, aproveita o intervalo para falar de política, agora sobre o general Figueiredo:

- Se os inimigos de João Batista o conhecessem melhor, o odiariam menos.

Tenório Cavalcanti caminha até seu quarto de dormir, onde estão dois posters- um de Aristóteles, outro de Platão, com uma frase de cada um. Aristóteles: “Não há nada que envelheça tão depressa como benefício”. Platão: “A sabedoria consiste em ordenar bem a nossa própria alma”.

Há cerca de cinco meses. Tenório caminhou sozinho pelas ruas de seu bairro. Ao vê-lo, longas barbas brancas, dentro de um bar, um rapaz achou que o mito havia terminado. Irreverente, aproximou-se de Tenório e puxou-lhe a barba. No bar, um amigo do rapaz irreverente sorriu.

O puxão de barba custou um tiro de revólver para o rapaz. Seus amigos, dentro do bar, fugiram. Tenório diz que aquilo era provocação para assalto. “Mais uma lenda criada a meu respeito”, diz.

Sua capa preta, mostra, é forrada de vermelho, por dentro. Tenório garante que o tecido, especial, não permite que a seda se rompa, caso receba projétil, de arma de fogo. Mais um comentário rápido sobre a Baixada:

- Aqui não se toca mais música brasileira. E os negros são grande maioria na Baixada Fluminense.

Com a capa preta, sai pouco da casa. Ouve-se o forte grasnar dos gansos criados na sua grande casa, antiga oficina do jornal Luta Democrática. Conta que o Papa Paulo VI “abençoou” um de seus artigos, o que provoca um comentário sobre sua existência.

- Vivi uma vida entre privações e decepções, mas vivida.

Ao lado do Cadillac, ano 46, para e coloca o pé direito no para-lama traseiro. Apalpa a lataria, à prova de balas, e os vidros especiais para resistir a tiros. Dentro desse carro, eletronicamente, ele abria as portas de aço de sua fortaleza em Caxias. Tudo isso segundo Tenório, “foi um símbolo de resistência contra a ditadura Vargas”.

Do alto de um morro, Tenório contempla as mais de mil casas habitadas por gente muito pobre. Para pagar alugue de Cr$ 500,00, conta, “é preciso ganhar muito bem”. Nas ruas, lixo e animais se misturam, crianças brincam. Ao longe, o bairro Corte 8, pior ainda. Daqui, pode se ver a eterna labareda da refinaria de Duque de Caxias. Tenório conta:

- A água defecal corre pelas ruas, com uma matéria que não existe no Brasil. Já mandei examinar. Nas casas, você põe torneira, deixando aberta. Faz esgoto, eles ampliam a casa construindo em cima, quebrando tudo. É muita ignorância, muita falta de religião.

Só de um episódio Tenório não aprecia reminiscências: a morte do delegado Alberto Imparato, no dia 28 de agosto de 1953. O caso famoso na época, tanto quanto o Crime do Sacopã, ou o Caso Ainda Curi, está presente na memória dos moradores mais antigos: foi a morte do delegado que ousou desafiar Tenório.

Imparato, segundo Tenório no período em que os cassinos funcionavam em Petrópolis, “explorava o jogo clandestino, e por isso não queria localizá-lo”.

Imparato foi mandado à Caxias pelo coronel Barcelos Feio, chefe da Polícia. Conta Tenório que Feio era coronel da tropa provisória do Rio Grande do Sul que surgiu com Getúlio Vargas, em 1930, e passou a se destacar após Flores da Cunha ser forçado a abandonar o governo gaúcho.

Tenório nega a autoria do assassinato de Imparato. E diz que nas comemorações do Dia de Caxias, aniversário da cidade, Euclides Figueiredo deveria haver uma conferência na Associação Comercial:

- Mas ele não foi, avisou antes que seria inconveniente. Vieram Heitor Beltrão e Afonso Arinos. Quando acabou a conferência, Imparato cercou a Associação com 18 homens armados. Mandou invadi-la e revistar os presentes.

O fato é que Imparato e seu informante Armando Bereco foram fuzilados; o auxiliar Wandir Maia, o Ruído, escapou por pouco.

Encarecidamente, Tenório pede que eu releve esse caso a segundo plano, “isso é coisa para repórter policial...”.

E Tenório se recolhe. Hoje, 4 filhas, 8 sobrinhos e 10 netos, genro de um deputado e de um general, ele só interrompeu seu retiro permanente para fazer campanha pela Arena, “por ter sido muito amigo do pai do general Figueiredo”.

Esperança: intervenção federal

Guanabara e Estado Rio de Janeiro tornaram-se um Estado único no dia 15 de março de 1975, através da lei-complementar nº 20. Então, a Baixada Fluminense, que possuía uma extensão maior que a do Rio, passou a fazer parte, oficialmente, da Região Metropolitana do Grande Rio.

Hoje, já se faz o seguinte cálculo: se os quatro principais municípios da Baixada – Nova Iguaçu, Caxias, São João do Meriti e Nilópolis – fizessem parte de uma única unidade administrativa, a Baixada Fluminense teria populações menores apenas que as das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

A única esperança da Baixada, cansada de abandono e desmandos, parece ser apenas uma intervenção federal, em termos de aplicação de recursos e planificação da solução de seus múltiplos problemas.

A história desses dramas, impossíveis de continuarem camuflados, começa nos velhos tempos em que a região foi se transformando em importante colégio eleitoral. Primeiro, através de recursos desonestos – havia listas-fantasmas de eleitores, muitos dos quais já sem vida. Os palanques já foram carros que ocasionalmente passavam pelas ruas esburacadas, de difícil acesso. Os adversários políticos eram simplesmente assassinados.

A corrupção também foi marca registrada da Baixada: por causa disso, aliás, prefeito e 12 vereadores, de uma só vez, foram cassados, em São João do Meriti, no ano de 1979. Antes, o prefeito de Nova Iguaçu também fora cassado, e o município de Duque de Caxias, declarado área de segurança nacional.

No ano de 1963, a região de Caxias foi alvo de intensa agitação social. Foi a época em que um padre, Aníbal, da Igreja Católica Brasileira, tentou organizar ligas camponesas.

Há muitas décadas o povo da Baixada sofre muito para conseguir viver nessa região. Apesar de tudo, a população tem aumentado bastante.

O nome de Getúlio Moura é extremamente ligado à política da Baixada. Ele chegou nos anos 30 a Nova Iguaçu. Até então, os grandes políticos da Baixada haviam sido os barões de Tinguá e Guandu, ambos fazendeiros, membros dos Partidos Liberal e Conservador. O próprio Moura, nome de avenidas, ruas e estações em vários pontos da Baixada, vivendo ainda em Nova Iguaçu, rememorou esse fato, recentemente numa entrevista:

- Fiz uma revolução em Nova Iguaçu, no dia 14 de dezembro de 1930. Neste dia, assumia o cargo de prefeito de Nova Iguaçu, nomeado pelo interventor Plínio Casado, do Estado do Rio, o sr. Arruda Negreiros. O nome dele foi indicado por J. Seabra. Fui falar com o Dr. Plínio Casado e disse-lhe: “Tenho esperança que não se sirva das armas que deram a liberdade ao Brasil para esmagar o iguaçuano”. A posse seria ás 14 horas. Não concordei, peguei uma metralhadora (“velha, que não funcionava”, segundo o historiador Ruy Afrânio Peixoto), depus o prefeito interino, o coronel Antonio Matos, e assumi a Prefeitura. A Vila Militar foi informada de que de que os comunistas tinham tomado a Prefeitura, mas quando os militares chegaram constaram que não era verdade. Eu era até presidente da Associação Conservadora de Nova Iguaçu. Arruda Negreiros pertencia ao Comitê pró-Júlio Prestes, o candidato à presidência do governo deposto em 30. Por isso, não concordei. Na ocasião, não me prenderam nem me desarmaram. Mais tarde chegou o chefe de Polícia do Rio de Janeiro e houve um entendimento, de modo que fui obrigado a residir fora de Nova Iguaçu durante três meses. O prefeito interino deposto voltou a assumir o cargo. O presidente Getúlio me concedeu anistia: eu estava respondendo a processo por crime político.

Getúlio Moura foi deputado federal durante 20 anos, sempre eleito pela Baixada (“na época em que os deputados tinham prestígio e gozavam de imunidades”) e, numa das ocasiões em que Ranieri Mazilli ocupou a presidência da República, chefiou a Casa Civil. Ele é combatido e elogiado com o mesmo fervor. Para os que o culpam dos grandes males da Baixada, foi ele quem incentivou os loteamentos clandestinos e a ocupação caótica dos terrenos.

A ideia, dizem os inimigos, era aumentar o colégio eleitoral, para permitir sua eleição, primeiro a deputado estadual, depois federal e mais tarde – a única que perdeu – para governador. Se assim aconteceu, o plano funcionou: Nova Iguaçu é hoje o 10º colégio eleitoral do País, o segundo do Estado, o primeiro do Brasil entre os que escolhem seu prefeito através de eleições diretas. E, por ironia, escolheu um candidato da Arena, Ruy Queiroz, enquanto Getúlio Moura – cassado em 1966- é líder da insignificante facção moderada do MDB local.

No ano de 1946, o até então único município de Nova Iguaçu foi dividida em quatro. Acompanhando á divisão, Moura repartiu a área política entre seus lugares-tenentes: Duque de Caxias ficou com Tenório Cavalcanti; São João do Meriti com a família Hazuk; Nova Iguaçu com ele mesmo; Nilópolis, com a família Simão. Um de seus membros, Aniz Abraão David, famoso por atos filantrópicos e, segundo comentários gerais, pelo jogo do bicho, é o presidente da Escola de Samba Beija-Flor, tri-campeã do carnaval carioca.

De qualquer forma, não se pode atribuir exclusivamente a Moura o crescimento populacional da Baixada, como vontade do político em ampliar o colégio eleitoral da região. Tão ou mais importante que isso foi o processo de industrialização do País e as migrações internas que provocou.

O início da grande explosão demográfica da Baixada ocorreu na década de 50 e acentuou-se na de 60. Em 1950, segundo dados do IBGE, a região tinha 300 mil habitantes; em 1960, havia crescido para 700 mil; e em 1970 já passava de 1,6 milhão.

Já os defensores de Moura dizem que ele tem uma carreira de mais de 50 anos, marcada por obras como os hospitais de Duque de Caxias e Nilópolis, a primeira maternidade de Mesquita, o Patronato de Menores, o Fórum Itabaiana, a Delegacia de Polícia, a Estação Presidente Juscelino.

E, curioso: Tenório Cavalcanti começou a fazer política com Getúlio Moura. E ficaram juntos até pelo menos 1946, quando Tenório decidiu romper com o Partido Social Democrata, ao qual estavam filiados Getúlio Moura e Amaral Peixoto. Deste último, Tenório não disfarça seu ranço. Fala de sua genealogia (“genro de Getúlio, casaco com Alzira Vargas”), e insinua irregularidades numa primeira campanha de arrecadação de ouro feita no Brasil. A campanha era para a compra de um submarino, na época da guerra, logo em seguida à verdadeira comoção nacional causada pelo afundamento de um navio brasileiro e muitas mortes – Tenório fala de Amaral e berra: “Cadê o ouro? Você sabe? Nem eu?”.

Foi Amaral Peixoto quem nomeou Getúlio Moura prefeito de Nova Iguaçu. Moura se considera uma espécie de preceptor político de Tenório; este, prefere falar pouco sobre isso:

- Moura foi ferroviário da Central do Brasil na Revolução de 30. Nós nos ajudávamos um ao outro. Sempre fui coerente. Eu o apoiei por coerência. Perdi-o de vista desde que fui punido...

Moura foi constituinte de 1946, ferroviário por seis anos. Mais tarde chegou a ser vice-presidente da Rede Ferroviária Federal e presidente, a convite de Juscelino Kubitschek.

Quando o presidente Eurico Gaspar Dutra decretou o fim dos cassinos, no Rio, estes começaram a surgir em grande escala na Baixada. Havia, na época, serviço organizado de táxi, para transportar os passageiros dos bairros elegantes do Rio para pontos obscuros de Duque de Caxias.

São dois grandes mitos políticos da Baixada. Tenório, orgulhoso por ter sido proclamado governador do antigo Estado do Rio por unanimidade de votos dos ministros do Supremo Tribunal: “O povo fluminense me elegeu cinco vezes seu representante nas câmaras municipal, estadual e federal e duas vezes governador do povo humilde pela Guanabara e Estado do Rio”.

Moura contou que sua única derrota foi quando disputou o governo do Estado do Rio com Roberto Silveira, do Partido Trabalhista Brasileiro. Explicação: Roberto (falecido num desastre de avião) tinha apoio do Governo Federal.

A distribuição de lotes para favorecimentos políticos é lembrado por moradores antigos da Baixada. Conta-se que nos últimos tempos da ditadura Vargas, Estado Novo, a Baixada Fluminense foi saneada. O Governo, então, através de seus chefes políticos, deu muitos lotes de presente a pessoas que nunca haviam sido lavradores e muito menos pensavam em aproveitar a terra. Hoje, depois de anos de muito sofrimento, os moradores da Baixada continuam sem perspectivas – a menos que os políticos cumpram suas promessas renovadas a cada período eleitoral. Ou então que o governo dê a essa região uma atenção muito especial.



Publicado originalmente em SOUZA, Percival. A maior violência do mundo (Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil). São Paulo: Traço Editorial, 1980.

3 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Unknown disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

Grande líder, presença inteligente e carismática!