quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Biografia de Capitão Furtado II de VI: Ao caipira o que é do caipira

 Por J.L. Ferrete

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

Levo comigo,

Como humilde sertanejo,

Muito mais do que um desejo:

O amor dos bons irmãos

Assim unidos,

O sertão e a cidade

Numa prova de igualdade,

Vamos dar as mãos.

 

Eu vou cantando,

Ao deixar meu rancho fundo,

Porque vejo um novo mundo

No país que Deus nos deu!...

Sigo o exemplo

De outro jeca de alma nobre

Que também foi muito pobre;

Lutou muito...mas venceu!!!

(trecho de Hei de Vencer!, de Ariovaldo Pires e Juvenal Fernandes)

 

Capitão Furtado é o do meio com brilhantina e sem bigode

Como havíamos dito mais atrás, Ariovaldo Pires tinha ido à gravadora Columbia apenas para servir como intérprete entre seu tio Cornélio e o técnico (e diretor artístico, se assim se podia chamar na época) Wallace Downey – que não falava quase nada em português, era um norte-americano que chegara ao Brasil com a finalidade precípua de, através da empresa Byington, fazer cinema em nosso país. Downey, todavia, acabaria convencendo Byington a representar a marca Columbia internacional no Brasil e, feito o acordo, tomaria conta de sua direção, inclusive selecionando o material nacional.

 

A intermediação linguística, vimos, foi um sucesso mostrando que em apenas três meses de curso com Miss Ennis, Ariovaldo Pires já se mostrava apto a conversações em inglês. Downey, por seu turno, parece ter-se entusiasmado coma aquele rapaz desembaraçado e tranquilo pois, terminada a primeira série de gravações de Cornélio Pires, convidou o sobrinho-intérprete deste parta ser “uma espécie de secretário” (conforme depoimento de Ariovaldo). “Sem querer – confessa o futuro Capitão Furtado – entrei no mundo do disco. Ainda não como compositor. Isso viria logo depois”.

 

Mais ou menos nessa época inaugurava-se outra empresa do grupo Byington: a Rádio Cruzeiro do Sul, que, com sua homônima do Rio de Janeiro, formaria a primeira cadeia radiofônica do Brasil – a Rede Verde-Amarela. Em São Paulo, conforme alguns acreditam, a Cruzeiro do Sul já teria começado por volta de 1924 com o prefixo de SQ-B1 e nos primórdios do cristal de galena. Mais adiante, após experiências frustradas, essa emissora ressurgiria (talvez em maio de 1927) com o novo prefixo: SQ-BA. Novo fracasso. Por depoimento que temos de Ariovaldo Pires, a Cruzeiro do Sul definitiva só iria aparecer mesmo no primeiro semestre de 1929, no sistema moderno de válvulas, após experiências sempre adiadas. Durante a fase experimental, por sinal, afirma-se que Wallace Downey (também seu diretor técnico) teria conseguido algo inusitado em nosso país: conseguir patrocínio exclusivo (da Atlantic Oil) para as curtas demonstrações ‘no ar’.

 

Certo é que, segundo Ariovaldo, o início oficial e já com programação organizada da Cruzeiro do Sul dar-se-ia no primeiro semestre de 29, acordando-se seu prefixo como PR-AO e, pouco depois, PR-B6. A sede era num edifício ainda existente em São Paulo, no Largo do Misericórdia, e onde também ficava a gravadora Columbia. “Downey, nessa época de experiência, usava-me como uma espécie de cobaia do microfone”, explica Ariovaldo Pires. “Era para ver a qualidade de som das gravações. Ele dizia que eu tinha uma voz bonita e absolutamente fiel. A sua voz – dizia o americano -, falando cara a cara com a gente ou passando por um microfone, não muda. Nem por telefone. Nos EUA você ganharia muito dinheiro fazendo testes em microfone ou aparelhos de som”.

 

O fato é que, no dia da inauguração, ia haver um quadro caipira com a participação do ator Sebastião Arruda mas, horas antes do começo da irradiação, este não pôde aparecer. Wallace Downey não se perturbou, escalando imediatamente Ariovaldo Pires para o papel. Afinal, ele era o autor do sketch – título que se dava no velho rádio para encenações de curta duração e ninguém melhor que o idealizar dos script (outro nome típico à época, para texto) á frente de um dos papéis. “Na ocasião – disse- nos Ariovaldo, em 1979 -, eu era mais caipira que hoje. Fiquei à vontade interpretando um fazendeiro. Mas, da tábua de salvação que eu constituí naquele momento, nasceria uma situação definitiva. O patrocinador (uma marca de máquina de escrever) achou que não era justo Sebastião Arruda tomar meu lugar em seguida – embora ele fosse admirável nos papéis de caipira – e impôs minha continuação, principalmente porque eu me havia saído muito bem. A partir de então transformei-me em autor e intérprete dos quadros caipiras da Cruzeiro do Sul”.

 

Nesse mesmo dia em que se inaugurou com diversos espetáculos a Rádio Cruzeiro do Sul, Ariovaldo Pires iria estrear na música. Junto com seu conterrâneo Marcelo Tupinambá, já bastante conhecido em todo o país por peças como O cigano, Maricota sai da chuva e Matuto, compôs a toada Coração, cuja letra era sua.

 

Coração,

Não me faça assim

Eu não sei por que razão

Você gosta de mim

E diz que não.

Eu passo a vida a cismar

Só pensando em você

Há dentro do seu olhar

Meu amor, um não sei quê.

Coração,

Não me engane assim

A sua boca diz que não

Mas o seu coração

Me diz que sim

 

A toada foi dedicada a Décio Pacheco Silveira pelos autores e teve interpretação nesse dia de inauguração da rádio por Januário de Oliveira, que, na oportunidade, foi acompanhado ao piano por Marcelo Tupinambá. Estranhamente, de qualquer modo, Januário de Oliveira jamais chegou a registrar em discos essa composição por ele próprio revelada, embora fosse dos cantores paulistas que mais gravações fizesse na época.

 

Em 1935, no chamado ‘disparate cinematográfico’ produzido em São Paulo pela S.OS. Filmes e dirigido por Vitório Capellaro, Fazendo fita, Januário seria escalado para interpretar uma música e escolheria Coração. A toada, contudo, ficaria perdida no meio de tantos números musicais com gente célebre e, a bem da verdade, passou praticamente despercebida no filme. Só na primeira metade da década de 50 é que Coração aparecia num 78 rpm feito por Francisco Magno no selo Copacabana (disco número 5.623) mas, então, sem qualquer repercussão perante público e crítica, talvez mesmo por absoluta falta de promoção.


Coração, de 1929, marca de qualquer maneira a estreia de Ariovaldo Pires como letrista musical e, conforme ele nos costumava confessar, tinha um sentido profundamente sentimental em sua vida. “As coisas nos vão levando na direção de caminhos ás vezes não imaginados”, dizia Ariovaldo. “Jamais podia pensar que um dia ingressaria no mundo artístico mas, como você vê, não foi possível evitar”.

 

O marinheiro que jamais chegara à primeira viagem, o tipógrafo que compunha quadrinhas para rodapés de calendários e o vendedor de rua que não dera certo “porque precisava aprender inglês” e fora um dos primeiros tratoristas deste país encontrava afinal – e por incrível acaso – um rumo que custara a definir-se: a vida artística.

 

A vida artística, por sinal, já se mostrava bruburinhante na capital paulista nessa passagem dos anos 20 para 30. Paraguassu dominava o cenário, evidentemente, e gêneros como o tango (paulistano, porque no Rio era pouco cultivado), a modinha (“novela em miniatura com enredo, à base da dor-de-cotovelo”, como definia ironicamente Ariovaldo Pires), a canção de serenata, a toada (indefinição entre canção e a modinha) e o recém-revelado samba-rural faziam o gosto da maioria dos paulistanos. Havia, demais, inúmeros grupos de chorões atuando num tipo de criação melodicamente mais próximo das cançonetas italianas ou das cantigas portuguesas, diferençando-se, assim, do choro de raízes negras cariocas. Era a música cantada, porém, que predominava, reservando-se para os bons instrumentistas a secundária função de acompanhamento.

 

Em termos de radiofonia, além da já mencionada Cruzeiro do Sul (definitivamente inaugurada, como vimos, em 1929), São Paulo contava com outras duas estações: a Record (assim chamada por seu fundador, Álvaro Liberato de Macedo, porque esse possuía uma loja de discos – record, em inglês – assim intitulada e pretendia identifica-la com o estabelecimento comercial) e a Educadora (atualmente Rádio Gazeta). Cafés-chantants (como eram chamados à época os hoje denominados bares ou ‘barzinhos’) havia inúmeros: o Girondino (esquina da rua Quinze de Novembro com o Largo da Sé), o Guarani (rua Quinze de Novembro, ao lado d Casa Levy), a Gruta do Tesouro (no Largo do Tesouro, esquina com rua Quinze de Novembro) e o Cascata (equina da Senador Feijó com a Quintino Bocaiúva).

 


Muitos circos e teatros, e três emissoras de rádio, imporia a transformação em profissionais daqueles “músicos e cantores vadios” (como definiu-nos Paraguassu tais personagens) que, antes, perambulavam pelas ruas do Brás ou circulavam em noites garoentas por locais como a rua do Palha (hoje rua Sete de Abril) ou rua Alegre (rua Brigadeiro Tobias). No fim dos anos 1920, e já em plena fase da produção de discos gravados eletricamente (através de marcas emergentes como a Columbia e Victor, ou preexistentes como a Odeon, de Figner), inúmeros cantores, instrumentistas e outros de grande talento começam a salientar-se por ampla popularidade.

 

Não se via na crescente metrópole paulistana, contudo, qualquer sinal dessa arte popular mais adiante consagrada como caipira. Ao estilizado, calcado no rural, dava-se o nome de sertanejo ou regional, e quando a obra (musical ou semente literária) vinha em sua forma autêntica, atribuíam-lhe o rótulo de folclórica e alguém (o ‘recolhedor’) tomava lugar do verdadeiro autor. Cornélio Pires, como foi dito anteriormente, seria o primeiro a sacudir essa rotina deslumbrante, com os autênticos não-profissionais que revelou em discos e ao vivo. Mas caipira ainda constituía na mente do citadino aquela imagem e pateta indolente e ignorante, servindo somente para fazer rir em cena à mercê de seu grotesco no mais das vezes imaginária.

 

Ariovaldo Pires tinha consciência disso e passou a assumir em suas funções artísticas na Cruzeiro da Sul o papel do caipira. Todavia, como ele nos esclarecia, seu caipira era um cômico espirituoso e vivo, que sabia analisar os assuntos mais sérios através de conclusões bem objetivas e simples. Seu estilo de ridendo castigat mores não poupava ninguém que se julgasse intelectualmente mais evoluído que o matuto. Os trocadilhos, além de tudo, eram extraordinários para a época. Em seu Lá vem mentira (livro editado em 1938), por exemplo, há uma passagem em que ele afirma ser o chapeleiro o homem mais leal do comércio. Por quê? “Pruquê, quâno ele vende o chapéu, já ele pergunta: qué que lê imbruie, u mercê perfére levá na cabeça?”.

 

Perguntamos-lhe certo dia se seu tio Cornélio tinha exercido alguma influência sobre ele. “Ninguém influenciou minha carreira artística”, respondeu prontamente. “Escrevendo, sou fiel a mim mesmo. Jamais procurei estilo ou forma, e sempre levo pro papel o mais possível que imagino. Insisto em dizer que não sou propriamente um artista, mas reconheço-me como intérprete fiel do que represento”. Em suma: Ariovaldo Pires buscava jamais afastar-se da autenticidade, cônscio da importância cultural de suas raízes. Seu caipira não era nenhum néscio, porque ele próprio era um caipira e de forma alguma considerava néscio.

 

Entrementes, a iniciativa de Cornélio Pires estava em fase de frutescência. O inacreditável sucesso de seus discos pela Columbia levou não esta gravadora a organizar suplementos caipiras com artistas como Genésio Arruda e os pertencentes à série de Cornélio Pires (em acoplagens) como também introduziu os selos concorrentes – Victor e Odeon – a formarem seus próprios elencos no gênero, dando oportunidade a que emergissem Lourenço e Olegário, Zico Dias e Ferrinho, Lázaro e Machado, Plínio Ferraz e João Michalany, Arlindo Santana e Joaquim, além, naturalmente, dos indefectíveis imitadores urbanos do regionalismo.

 

Ariovaldo Pires não é músico, é escritor e intérprete. Não lhe ocorre, por enquanto, fazer uso de seu talento como letrista para aliar-se a um autor musical e formar repertório rural. Junto com outros elementos da Cruzeiro do Sul, porém, criou um programa que ganharia o título de Cascatinha do Genaro (generalidade à maneira do mais recente Balança Mas Não Cai), no qual, junto com outras personagens, destacavam-se caipiras – inclusive ele, como um matuto típico.

 

Vale a pena abrir um parêntese neste ponto, contido, para lembrar que, nessa fase de Cruzeiro do Sul, Ariovaldo Pires auxiliou Celso Guimarães na criação de um programa de novatos pretendentes ao estrelato, ao qual, em pioneirismo mais adiante contestado, deu o primeiro título de Programa de Calouros. Pouco depois Ary Barroso lançava programa idêntico no Rio de Janeiro, atribuindo-se a ideia do nome calouros e causando com essa declaração inflamada polêmica que, ao fim e ao cabo, culminou com o esclarecimento total de que Celso e Ariovaldo é que tinham a primazia. A verve de Ariovaldo Pires, portanto, deu oportunidade a que surgisse um dos títulos mais populares de programa que se conhecem até hoje em rádio e TV, tendo partido essa ideia, de acordo com o que ele contou-nos, do apelido que se dava a quem ingressava numa faculdade. “E não era a mesma coisa?”, perguntava ele sorrindo. Naquele tempo, todavia, ninguém pensava em direitos sobre títulos de programa e também ninguém os registrava como seus. Com isso, Ariovaldo Pires deixou a ser detentor de uma das mais ricas marcas do país.

 

Em 1934, Ariovaldo Pires e o Cascatinha do Genaro se transferiram para a recém-inaugurada Rádio São Paulo, PRA-5, cujos estúdios ficavam na rua Sete de Abril ao lado do prédio da antiga Biblioteca Municipal de São Paulo. Prosseguiu-se praticamente no mesmo esquema, embora novos artistas tenham entrado no autêntico pastiche que constituía o Cascatinha. João Batista de Andrade era diretor e fazia o papel de um vêneto chamado Genaro. Itagiba Santiago interpretava outro italiano, o Beppo, enquanto Nhá Zefa e Ariovaldo Pires se incumbiam da caracterização dos caipiras. Havia, ainda, o turco Elias (protagonizado por Bruno di Lucca) e o cantor humorístico Abdula, que só fazia paródia de tangos – mania de época, aliás.

 

O programa transformou-se em sucesso absoluto. Enquanto na Cruzeiro do Sul não havia logrado tanta audiência (uma das razões de sua transferência), através das ondas da São Paulo conquistou inteiramente o público paulista. É neste ponto, todavia, que entra a ligação de Ariovaldo Pires com a dupla Alvarenga e Ranchinho, e que, bem assim, vai surgir seu auto-apelido de Capitão Furtado.

 

Ariovaldo Pires, o Capitão Furtado

Publicado originalmente em FERRETE, JL. Capitão Furtado: viola caipira ou sertaneja?. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de Música, Divisão de Música Popular, 1985.

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