sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

A chanchada no cinema brasileiro, parte V de V: O povão nas telas

 Capítulo V: O povão nas telas

 

Por Afrânio M. Catani e José Inácio de Melo Souza

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

Luís Severiano Ribeiro Júnior, tendo nas mãos a partir de 1947 – quando se torna o acionista majoritário da Atlântida – a produção, a distribuição e a exibição de filmes, resolveu incrementar a produção das chanchadas, ao perceber que elas poderiam ser uma fonte quase inesgotável de polpudos lucros. Tiro e queda: até 1962 a companhia colocou no mercado uma quantidade incerta de filmes (40 segundo alguns, 60 de acordo com outros e perto de 80 para os mais exagerados), nos quais Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves, Anselmo Duarte, Violeta Ferraz, José Lewgoy, Wilson Grey, Renato Restier, entre outros, fizeram as delícias do grande público.

 

Antes de prosseguirmos, merecem ser destacadas duas fases distintas na evolução dos filmes musicais ou de chanchadas, como bem lembra Miguel Chaia, um dos estudiosos do gênero. A primeira vai aproximadamente até o início dos anos 40, caracterizando-se por motivos, argumentos e situações simples e com números musicais homogêneos, carnavalescos ou juninos, sendo Alô, Alô, Brasil!, Alô, Alô, Carnaval! e Banana da Terra filmes típicos dessa fase.

 


A partir dos anos 40 tem lugar uma nova etapa, cujo prolongamento vai até o começo da década de 60. Nessa etapa, os argumentos, enredos e situações tornam-se mais complexos e os números musicais mais heterogêneos. É também o período em que a chanchada atinge seu auge, devido à empatia com o público e à consequente produção contínua de uma grande quantidade de filmes. Garante-se um mercado próprio para essa produção e os temas carnavalescos e juninos vão sendo aos poucos abandonados (ou tornando-se secundários), substituídos por outros que se referem ao cotidiano do homem urbano da época, a aspectos políticos e a problemas da realidade socioeconômica vizinha – sempre, é claro, com muito humor e marotice.

 

A produção cinematográfica brasileira desenvolve-se, em boa parte, criando laços de dependência com a indústria cinematográfica internacional – principalmente norte-americana -, quer no nível técnico, quer no nível da linguagem. No caso das chanchadas, estas acabam gravitando ao redor dos gêneros norte-americanos de filmes, como os musicais, o policial, o western, a reconstrução de épocas, etc., destacando-se entre outros, Matar ou Correr, O Barbeiro que se Vira, Nem Sansão Nem Dalila, muitos próximos dos originais made in Hollywood.

 

Esses laços de dependência com a indústria cinematográfica norte-americana (que é a dominante) refletem-se em termos de domínio econômico e, também, na esfera propriamente cultural, gerando neste último caso atitudes colonizadas por parte dos realizadores, do público e da crítica cinematográfica. Nesse sentido, através da paródia é que se procura atrair o grande público, tentando capitalizar o sucesso do filme estrangeiro. Apesar de boa parte da cinematografia brasileira fundar-se na cópia ou na imitação, tenta-se – por meio desses recursos – retomar parte dos espaços do ocupante, do produto estrangeiro, devolvendo ao público o original adaptado às peculiaridades locais e made in Jacarepaguá.

 

O crítico Paulo Emílio Salles Gomes, em seu clássico artigo “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento”, pondera que no Brasil o fenômeno cinematográfico desenvolvido no Rio de Janeiro a partir dos anos 40 é um verdadeiro marco. Isto porque durante cerca de vinte anos a produção ininterrupta de filmes musicais e de chanchada (ou a combinação de ambos) “se processou desvinculada do gosto do ocupante e contrária ao gosto do estrangeiro”. O público jovem e das camadas mais modestas garantiu o sucesso dessas fitas, pois nelas encontrava aquilo que não estava presente no modelo estrangeiro: o seu cotidiano, através de anedotas tipicamente cariocas, maneiras de falar e de se comportar. “A identificação provocada pelo cinema americano modelava formas superficiais de comportamento em moças e rapazes vinculados aos ocupantes; em contrapartida a adoção, pela plebe, do malandro, do pilantra, do desocupado da chanchada sugeria uma polêmica de ocupado contra ocupante”.

 

Examinando as chanchadas Miguel Chaia percebe que essas produções precisam ser entendidas enquanto produtos da indústria cultural; tais filmes devem ser vistos no interior de uma articulação entre vários ramos de comunicação dessa indústria, pois na linguagem da chanchada acham-se presentes elementos do circo, do carnaval, do rádio e do teatro. Os filmes de chanchada representam, na verdade, a primeira experiência de longa duração na produção de uma série de filmes para o mercado, sendo que suas condições de produção caracterizam-se por um esquema industrial que se auto-sustenta, utilizando técnicas pouco sofisticadas e com um custo bastante reduzido.

 

Na década de 50 – em que é realizada a maioria das chanchadas – observa-se o incentivo à industrialização brasileira, com o Estado investindo maciçamente em infraestrutura (principalmente em energia e transportes) e nas indústrias de base sob sua responsabilidade. Tal ação estimulou o investimento privado não só por lhe oferecer economias externas baratas mas também por lhe gerar demanda. Coube-lhe, além disso, uma tarefa especial: estabelecer as bases de associação com a grande empresa oligopólica estrangeira, definindo claramente um esquema de acumulação e concedendo-lhe generosos favores. Encontrando um esquema de acumulação bem definido em que se apoiar e gozando de amplos incentivos, a grande empresa oligopólica estrangeira decidiu investir no Brasil.

 

Dessa maneira, quando o setor industrial começa a se firmar como núcleo dinâmico da economia, observa-se um crescimento mais que proporcional das grandes cidades brasileiras, com um alto crescimento demográfico também decorrente das levas migratórias. Grandes cidades, grandes populações, constituição de um público disponível para o lazer: aí está o mercado potencial dos filmes da chanchada.

 


O início da década de 50 marca a volta de Vargas ao poder, agora eleito pelo voto direto e, logicamente, o prosseguimento de uma prática política que o Octávio Ianni chamou de “democracia populista”. Isso engendra uma estrutura de classes sociais tênues que, mesmo considerando-se a dominação do capital sobre o trabalho, abre um relativo espaço cultural e político às classes subalternas. Nota-se a presença das massas populares, dos operários e trabalhadores urbanos, dos homens do campo, de intelectuais e estudantes – ou sendo manipulados de cima para baixo ou pressionando em sentido contrário. Os anos 50 (e início dos 60) expressam, assim, a emergência de grupos urbano-industriais no cenário cultural e político do país bem como a tentativa de grupos dominantes no sentido de incorporar as massas populares ao jogo político.

 

A cinematografia brasileira representa pelas chanchadas, numa época de “abertura política relativa” (ou “abertura rabo de cabra”, segundo o velho Gregório Bezerra), não poderia deixar de – à sua maneira – constituir-se em mais um espaço disponível para marcar a presença do homem simples brasileiro. A chanchada consagrou o herói virador e desocupado, de bom coração e crítico do mundo que o cerca e, se quase sempre a participação política das massas significou concretamente manipulação, o populismo acabou por articular um modo de expressão das insatisfações populares. Exatamente nessa fase a chanchada consegue exprimir com fidelidade o clima da época. Jean-Claude Bernardet, apesar de considerar um assunto muito complexo a ideologia veiculada pela chanchada, não tem a menor dúvida em afirmar que eram filmes críticos, “filmes que conservam um tipo de sátira muito ligado à vida cotidiana”, levantando problemas do tipo “as cenouras aumentaram”, “o leite ficou mais caro”, problemas políticos municipais, de trânsito. São esses problemas que alimentam as piadas, alimentam as situações.

 

A partir de agora, utilizando-nos do trabalho de Miguel Chaia, de dois ou três artigos de Jean-Claude Bernardet, de outros de João Luiz Vieira e de Ney Santos Filho, pretendemos mostrar como os filmes de chanchada são ambíguos, pois ao mesmo tempo que definem um horizonte cultural nacional-burguês, veiculam claramente a concepção de mundo das classes subalternas.


A chanchada geralmente possui um tema básico, qual seja, a realização de um determinado objetivo em decorrência de um lance de sorte qualquer (herança, prêmio, sorteio, etc). A narração é então conduzida por um personagem que tem esse objetivo a ser concretizado por obra do acaso, como num passe de mágica, e não devido a qualquer esforço pessoal ou habilidade específica. A partir deste tema o filme se desenvolve através de uma série de confusões e conflitos para, no final, tudo se resolver harmoniosamente, com o herói saindo-se bem e os vilões sendo transportados num camburão para a delegacia mais próxima. Paralelamente à ação básica, desenvolve-se a ação do vilão, que procura apossar-se ou beneficiar-se do lance de sorte, e a ação do personagem-amigo, que ajuda a realização do objetivo colocado e também participa ativamente dos quiproquós.

 

Um rápido exame de algumas chanchadas permite confirmar o que foi dito antes. Em A Baronesa Transviada, a personagem principal (Gonçalina Piaçava, interpretada por Dercy Gonçalves) quer se tornar atriz cinematográfica e o consegue ao receber uma herança inesperada; O Camelô da Rua Larga é o caso de um camelô que tem sua mala de quinquilharias trocadas por outra semelhante contendo dinheiro. O Petróleo é Nosso fala de uma fazendeira sem dinheiro que se torna milionária através do petróleo encontrando em suas terras. Em Absolutamente Certo um gráfico recebe um prêmio num programa de televisão de perdas e ganhos e realiza seus desejos: comprar uma cadeira de rodas para o pai e casar-se.

 

O desenvolvimento do tema básico se dá através de um componente fundamental da chanchada: os incluídos e os excluídos da sorte que atingem os personagens. Para Chaia, na chanchada “o dinheiro é colocado como artifício que, quando ao alcance dos personagens, permitirá a realização do objeto ou solução do conflito. Face a este artifício caracterizam-se os incluídos e os excluídos na sorte”.

 

Os incluídos não se deixam corromper pelo dinheiro, utilizando-o apenas como um meio. Em A Baronesa Transviada a baronesa, mesmo herdeira, volta ao seu humilde trabalho de manicure; o camelô resiste a várias tentações, mas usa só uma pequena parte do dinheiro encontrado, guardando o restante. Os incluídos são, geralmente, os personagens principais e, devido a laços de amizade, parentesco ou vizinhança, introduzem outros personagens nesta categoria. Assim, um amigo ou o par romântico do filme também acabam por compartilhar do lance de sorte, por tabela.

 

Já os excluídos são, na maioria dos casos, os vilões ou bandidos que se colocam entre o personagem principal e o seu objetivo, procurando se apoderar meio na marra do lance de sorte. Nesse sentido a chanchada é maniqueísta, ficando claro desde logo os bons e os maus, sendo estes últimos punidos no final do filme – a menos que se regenerem e/ou se recomponham com os bons. Os excluídos de A Baronesa Transviada são os tios aristocráticos da herdeira que estão ansiosos pela morte da baronesa-mãe para herdarem sua fortuna. Em O Caçula do Barulho os excluídos são os componentes de uma quadrilha que faz tráfico de brancas; já em O Camelô da Rua Larga são os falsários e em Absolutamente Certo são os membros de uma quadrilha de apostas.

 

Um outro aspecto presente nas chanchadas também merece ser explorado, qual seja, sua virtude cômico-caricatural, elaborada numa perspectiva toda especial de recriação do real. Assim, situações e personagens são construídos através da comédia, da deformação do real, transfigurando-se a realidade social e aproximando o espectador do filme. É através do divertido e caricatural que a chanchada rompe com as convenções sociais vigentes: são criados alguns cenários, hábitos e comportamentos, além de serem feitas várias críticas. João Luiz Vieira, em seu artigo “From High Noon to Jaws: Carnival and Parody in Brazilian Cinema”, utilizando-se de trabalhos do antropólogo Roberto Da Matta, comenta que a linguagem do carnaval constitui o principal código cultural que anima e dinamiza a sátira da chanchada. O sistema de inversões que se opera durante o carnaval – por exemplo o fato de o negro morador de uma favela vestir-se como um rei, nobre ou outro soberano durante os quatro dias de carnaval, representando exatamente o oposto de sua vida ao longo do resto do ano – cria uma série de situações em que certos aspectos da estrutura social podem ser criticados e as diferenças existentes nesta estrutura podem ser melhor percebidas. Mas contando ou não com números musicais, as chanchadas acabam sendo associadas de imediato a um clima carnavalesco, em que aparecem críticas e observações frequentes sobre a vida política e administrativa da então Capital Federal, sobre a falta de eletricidade e de água, acerca do aumento dos preços dos alimentos, etc. Não são poupados os políticos com sua retórica populista, fazendo promessas mirabolantes, bem as diferenças de classe, a burocracia e seus burocratas e a situação dos negros na sociedade brasileira. O público acabava se identificando com esses temas, entendia a linguagem das chanchadas e as prestigiava em peso.


A preocupação com a sobrevivência ou com o cotidiano; a recuperação e a ênfase dada às origens rurais, à vizinhança e à amizade, bem como o contato com os valores urbanos, são os principais assuntos encontrados no discurso fílmico da chanchada. Conforme salientamos, a preocupação com o cotidiano faz-se sentir através dos reclamos contra a carestia, a inflação (a baronesa-herdeira chama o mordomo de “Dez Centavos”, porque ele é “redondo, chato e não vale nada”) e a inexistência de infra-estrutura urbana. Quanto à preocupação com a sobrevivência, o camelô de O Camelô da Rua Larga não consegue trabalhar porque está sempre fugindo da polícia, está na iminência de ser despejado da pensão porque o aluguel está atrasado e ainda, por não ter dinheiro, ter de aguentar as pressões da noiva, que há mais de dez anos espera pelo casamento. Em Absolutamente Certo o mocinho (que é gráfico) quer resolver os problemas de sua casa (evitar que o pai continue trabalhando demais e comprar-lhe uma cadeira de rodas) e com sua noiva, pois chega a ser expulso de casa pela mão da noiva que só irá permitir sua volta quando tiver dinheiro para se casar.

 

A recuperação das origens rurais e a ênfase dada aos valores ligados à amizade e vizinhança também perpassam quase todos os filmes. Normalmente o amigo é vizinho e vice-versa. No nível das unidades narrativas são mostrados, igualmente, os assombros dos personagens face a certos costumes urbanos, como por exemplo a recusa ou a não adaptação face à burocracia, posição contrária frente à corrupção e a propensão para a assimilação de certos valores urbanos, sendo o mais expressivo o contato com a televisão, implantada há poucos anos.

 

Nesse sentido é que se pode afirmar que em seus filmes a chanchada trata da vivência do homem simples brasileiro pertencente à condição de classe subalterna – e não como participante ativo de uma classe operária com projeto político. Era essa, na verdade, a condição efetivamente experimentada pelas massas populares brasileiras nos anos 40, 50 e parte dos 60, antes do fim da era populista, em 1964. O homem simples da chanchada é o homem urbano ou então o simplório de origem rural que se encontra frente a uma nova situação, qual seja, a urbana.

 

Nos filmes de chanchada observa-se, então, um estilo de vida dos personagens baseado na noção de honra social, não importando se tais personagens são proprietários ou ricos, mas sim que pautam suas ações em função de certas convenções e de comportamentos calculados previamente. E é com base em certas características compartilhadas que se qualifica ou se desqualifica o personagem, remetendo-o ao esquema de inclusão-exclusão social, tendo como referência um determinado código de honra. O personagem simples da chanchada tem sua existência mais próxima de uma ordem social estamental do que uma estrutura de classes. Para Miguel Chaia, é um universo estamental mesclando-se com fundamentos de classes que acaba caracterizando personagens como a manicure, o camelô, a atriz, ricos sem posse, desqualificados, pretendentes ao estrelato, etc. que são os elementos disponíveis na sociedade e cujas condições de existência e objetivos colocam-se diretamente no nível do estabelecimento de um círculo de relações sociais e não no nível do processo produtivo ou do político.

 

As situações criadas nos filmes, de modo geral, não se situam no interior de um processo de produção (e portanto de existência) capitalista. Os personagens movimentam seus valores tradicionais e até rurais, carregando os valores coletivos de família, vizinhança, parentesco e trabalho. São, em suma, agentes que não assimilaram a individualização da sociedade urbano-industrial, mas nem por isso são esmagados ou achatados pelas relações que se estabelecem no interior dessa sociedade. Quando os personagens trabalham (sim, porque não são todos que partem para o sacrifício), não são operários do sistema, configurando-se assim muitas vezes o trabalho marginal. Não se observa, igualmente a valorização do trabalho como fator de produção capitalista e tampouco a postura puritana de valorização do trabalho, sendo que o sentimento da ação dos personagens principais e alguns secundários da chanchada está defasado no sentido imprimindo à sociedade “através do processo ideológico dominante expresso pelo desenvolvimentismo. São seres cujas existências não se enquadram no padrão burguês estabelecido para o desenvolvimento urbano-industrial vigente na sociedade brasileira mesmo nas décadas de 50 e 60. São seres que não participam do pacto social estabelecido entre grupos sociais naqueles anos: não são protegidos por legislações sociais ou trabalhistas, não mercantilizam sua força do trabalho”. Em suma, a chanchada trata dos simplórios que não entram no jogo desenvolvimentista; de pessoas que não têm um projeto de vida (e/ou político) que vá além de viver o dia-a-dia, de ir se arrastando e sobrevivendo. De fato, não há lugar dentro do jogo desenvolvimentista para camelôs, empregadas domésticas, mulherengos, preguiçosos, malandros, donas de pensão, manicures, barbeiros, etc.


O sucesso popular e o direcionamento da chanchada devem-se em boa parte ao desempenho de vários dos atores e atrizes principais, capazes de dar sua parcela de contribuição efetiva na recuperação para as telas dos valores do homem simples brasileiro. Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves, Zé Trindade, Violeta Ferraz, entre outros, eram atores que guardam grandes heranças populares, acrescentando muitas vezes passagens de suas vidas modestas e cheias de dificuldades aos papéis que interpretavam. A origem artística da maioria deles remonta ao circo, ao teatro de revista, ao rádio, tendo percorrido árduos caminhos até se tornarem famosos (mas sem muito ou com pouco dinheiro) com as chanchadas. Talvez algumas breves considerações sobre a trajetória artística de Oscarito – sem dúvida alguma o astro mais popular das chanchadas – ilustrem melhor o que acabamos de afirmar.

 

Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Tereza Dias, o Oscarito, nasceu em Málaga, Espanha, em 16 de agosto de 1906 em um circo em trânsito. Seus pais eram trapezistas nesse mesmo circo, onde Oscarito estreou aos 5 anos no papel de um índio, em O Guarani, de Carlos Gomes. No circo foi violonista da bandinha, acrobata e palhaço. Anos depois, já no Brasil, fez teatro de revista e comédias de costumes, tendo atuando nessa área durante muito tempo, antes de dedicar-se ao cinema. Oscarito foi lutando pela vida nos circos e teatros mambembes ambulantes no interior do país; essa foi a base de seu estilo como comediante, o domínio do corpo, a sátira, a paródia, a avacalhação de tudo que fosse sério e comportado. Ney Santos Filho transcreve um trecho do depoimento que Oscarito concede para o Museu da Imagem e do Som (1968), onde conta um pouco de sua história, sendo suas palavras semelhantes às de muitos personagens que interpretou ao longo de dezenas de chanchadas: “Vim para cá pequenino e sofri mais que sovaco de aleijado. Mas também fui aplaudido como jogador de futebol e mais criticado que Presidente da República. E ainda tive que me virar na vida como malandro. Logo, o que eu sempre fui mesmo é brasileiro”.

 

A maioria dos papéis interpretados por Oscarito foi a do herói malandro e virador. Oscarito, quando trabalhava, o fazia nas mais modestas profissões: varredor ou faxineiro das boates ou teatros onde aconteciam as ações dos filmes. Ele correu de bandidos e da polícia, engoliu lista de jogo do bicho, se vestiu de mulher e de bebê. Satirizou muitas pessoas famosas na época, tais como Getúlio Vargas, Rita Hayworth, Gary Cooper: caricaturou Hamlet e Romeu e Julieta, chegando inclusive a imitar o miudinho Harpo Marx na sequência do espelho do Hotel da Fuzarca, fazendo com Eva Todor a sua própria imitação, bem como a de Elvis Presley, de guitarra, topete e calça Lee, dançando rock. Oscarito tinha aquilo que sempre foi raro na cultura brasileira, tendo sido mencionado várias vezes por Paulo Emílio Salles Gomes, qual seja, a capacidade criativa em copiar – e Oscarito era o elemento desestruturador na ordem interna das chanchadas, principalmente as da Atlântida. Oscarito e alguns diretores mais criativos como Watson Macedo, Carlos Manga e José Carlos Burle faziam uma espécie de apropriação do modelo estrangeiro – ou, nas palavras de Bernardet, operavam uma antropofagia -, devolvendo-o ao público brasileiro na forma de uma paródia bem-humorada, satirizando aspectos do cotidiano do homem simples brasileiro e da vida política nacional.

 

Um dos melhores exemplos do que se afirmou acima pode ser encontrado em Nem Sansão Nem Dalila, já comentado nas páginas finais do capítulo anterior. Nesse mesmo 1954 (uma vez que Nem Sansão...é desse ano) Carlos Manga também dirigiu Matar ou Correr, paródia do clássico High Noon, de Fred Zinnermann. Na “versão brasileira” os papéis principais estão a cargo de Oscarito e Grande Otelo, sendo que José Lewgoy interpreta o bandidão. A cópia dos modelos de Hollywood, neste caso, é quase perfeita: montagens, cortes, enquadramentos, diligências e faroeste – tudo isso feito em Jacarepaguá! A versão de Manga mostra dois vendedores ambulantes (Oscarito e Grande Otelo) que chegam à cidade vendendo uma bebida vagabunda qualquer, pura trambicagem: por acaso, Oscarito prende o bandido, inimigo público número 1 do local, e é logo nomeado xerife. Mas um xerife medroso, sem a coragem e a firmeza de Gary Cooper. Mas tarde o bandido foge e promete voltar para vingar-se de Oscarito. O filme prossegue, com as gags e gozações habituais, e chegada a hora do duelo final, Oscarito chora, reza, pede ajuda à mamãe e num lance de sorte (mero acaso...) o bandido acaba sendo derrotado por ele.


O acaso e a exploração da política internacional – a guerra fria entre russos e americanos – estão em O Homem do Sputnik (Carlos Manga, 1959): um sputnik cai no galinheiro de Oscarito, tornando-o rico da noite para o dia, e ele passa a ser avidamente disputado pelas grandes potências mundiais. Já o cotidiano do homem simples brasileiro, de fácil identificação com o público, foi várias vezes explorado em filmes de Zé Trindade, outro grande herói das chanchadas. Ele geralmente interpreta a figura do virador, do funcionário público vadio, que não gosta de trabalhar e pouco aparece na repartição. Acaba surgindo então uma situação-chave: Zé Trindade, por causa de uma mulher opressora (que pode ser a esposa ou sogra), foge do esquema familiar, indo à procura de outras mulheres. Assim, vai a boates, a bailes, abre um salão de beleza ou de massagens, estando sempre cercado de mulheres. Durante todo o filme ele circula entre a esposa (ou a sogra) e as tais mulheres, sendo que no final volta para a mulher originária, que desencadeou todas essas ações. Volta, reconhece que a mulher não é tão ruim assim e adia para outra ocasião, sempre de bom humor e dando tchau para a plateia , seus planos de emancipação dessa esfera familiar que o oprime.

 

Watson Macedo foi também responsável por significativos exemplares do gênero, tais como Não Adianta Chorar, Este Mundo é Pandeiro, Carnaval no Fogo, Aviso aos Navegantes, O Petróleo é Nosso, A Baronesa Transviada, etc. Vários de seus trabalhos têm uma estrutura de filme policial clássico, com perseguições, lutas, intrigas. Revela Jean-Claude Bernardet que Macedo via muitas fitas estrangeiras e fixa-se em algumas, acompanhando suas exibições pelo vários cinemas da cidade – isso quando não podia vê-las na moviola. Uma das chanchadas que mais marcou Bernardet foi Carnaval no Fogo (1949), com Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Lewgoy, Eliana. Neste filme está presente o seguinte esquema, comumente utilizado por Watson Macedo: a comédia é criada a partir do fato de que um objeto pertencente a alguém será perdido e posteriormente encontrado por outra pessoa. Como o proprietário é caracterizado pelo objeto, as características do primeiro passam para o segundo. Carnaval no Fogo é assim: uma quadrilha aguarda seu chefe, que ela ainda não conhece. Ele deverá ser identificado pelo porte de um determinado objeto que define o personagem para os outros. “Perdendo o objeto, o personagem perde os seus atributos. Atribuindo-se o objeto, qualquer outro personagem adquire também os atributos do primeiro portador (...) Estes personagens qualificados por objetos, pura exterioridade, vivem num mundo reificado ao extremo”. Após ser criada toda a confusão, a comédia prossegue normalmente, limitando-se a verificar o que acontece em função dessa distorção.

 

Carnaval Atlântida (1952), de José Carlos Burle é um dos melhores filmes onde se pode perceber a relação entre a paródia, chanchada e carnaval. A paródia surge então como uma resposta do cinema colonizado, subdesenvolvido, através do gênero chanchada – que por sua vez se insere no universo carnavalesco. Em Carnaval Atlântida, há o filme dentro do filme: o diretor Cecílio B. de Milho (lembram-se de Cecil B. de Mille?) tem a intenção de filmar o épico Helena de Troia no Brasil, projeto esse logo abandonado com o implícito reconhecimento de que o cinema nacional não comporta temas sérios (entendendo-se por “sérias” as superproduções norte-americanas, com muitos extras e cenários grandiosos). Assim, a história de Helena de Troia é substituída por um filme de carnaval e o ambicioso projeto original fica para ser feito mais tarde. Regina (Eliana), a filha de De Milho, convence-o de que o povo não quer temas históricos (coisa séria, algo a ser entendido apenas por uma elite, domínio da cultura erudita); o povo quer é saber do presente, que é o carnaval (domínio da cultura popular). Não é por acaso que o Professor Xenofontes (Oscarito), um erudito, autor de muitos livros de História e consultor de costumes do filme original, abandona seus livros, parece que se despoja de sua refinada formação cultural e cai nos braços de uma rumbeira cubana (Maria Antonieta Pons), o estereótipo da mulher sensual e bonita, que leva os homens à perdição. Dito e feito: minutos depois vemos Oscarito dançando rumba e transformado num debochado carnavalesco.


Carnaval, paródia, homem urbano brasileiro, política e realidade sócio econômioca: esses os temas favoritas das chanchadas, principalmente as da Atlântida. Tudo, é lógico, com muita malandragem e com o inigualável humor carioca.


A partir da chanchada é que a realidade nacional começou a aparecer nas telas, embora de maneira tímida, e o homem simples brasileiro passou a se comunicar com as grandes multidões que com ele se identificavam, através de atores e atrizes que já tinham alcançado certa popularidade no rádio e no teatro de revista.

 

Os críticos uivavam a cada novo lançamento carioca, e frases do tipo “mais um abacaxi nacional!” ou “descemos a nível de cloaca!” eram corriqueiras. Carlos Manga conta ao jornalista Carlos Heitor Cony que o crítico Antônio Moniz Vianna resumiu sua opinião sobre seus filmes numa única frase: “Caiu mais uma manga”. Quando Manga lançou Carnaval de Brotos (1956) pela Atlântida, a crítica não perdoou, meteu a ronca. Moniz Vianna achou o filme muito ruim, chegando a insinuar que o dono da Atlântida ou Manga, um dos dois era homossexual: “O que é que está havendo entre esses dois?”, perguntava atônito.

 

Mas a ira dos críticos não influenciava o grande público, que praticamente não lia jornais – e quando lia, estava mais interessado nas páginas policiais ou nas manchetes políticas. Além disso, em filme nacional não se precisava ler letreiro, bastava ser todo ouvidos.


Atrações não faltavam: Ângela Maria, Nélson Gonçalves, Jorge Veiga, Cauby Peixoto, Carlos Galhardo, Dircinha Batista, Trio Irakitan, Quatro Ases e Um Coringa, Francisco Alves, Marlene, Emilinha Borba, Francisco Carlos, Ciro Monteiro, Blackout, Elizete Cardoso, Orlando Silva cantavam seus sucessos mais recentes. John Herbert, Anselmo Duarte e Cyll Farney derretiam os corações das moçoilas casaidoras. Eliana Macedo, a “nossa querida Eliana”, liderou o elenco em 23 produções, quase sempre interpretando a mocinha ingênua, bonitinha e carinhosa, que os machões adorariam ter em casa.

 

Mas o filé-mignon, sem dúvida, ficava com os grandes apresentadores, os mestres da confusão: Oscarito, Grande Otelo, depois Ankito, Costinha, Zé Trindade ou Dercy Gonçalves. Eles desencadeavam todas as confusões, eram amigos do mocinho e da mocinha, ajudando-os a combater os terríveis bad men, encarnados por José Lewgoy, Wilson Grey e Renato Restier (depois Jece Valadão entrou para reforçar o time). Quando as duplas Oscarito-Grande Otelo e Lewgoy-Wilson Grey se enfrentavam, o cinema quase vinha abaixo, e a criançada berrava. Mas, no fundo será que alguém acreditava que Lewgoy era vilão?

 

Boa parte dos homens, durante certo tempo, dava o dinheiro e despachava a patroa com as crianças para as matinês nos fins de semana – dias importantíssimos, consumidos entre intermináveis goles de Brahma e lances de Vasco, Flamengo, Fluminense, Corinthians, Palmeiras e outros menos cotados. Entretanto, depois de algumas constatações elementares, os produtores de chanchadas descobriram a fórmula infalível de trazer a família inteira para as salas escuras: era necessário deixar à mostra as bem torneadas coxas de Cuquita Carballo e Maria Antonieta Pons, importadas diretamente da Pelmex. E assim tudo entrava nos eixos: família unida, receita garantida.

 

Foi graças às chanchadas e à receptividade alcançada junto ao grande público que a indústria brasileira de filmes conseguiu sobreviver, apesar da enorme concorrência estrangeira. Mas apenas sobreviver, conforme lembra o crítico Sérgio Augusto, porque mesmo no auge das chanchadas – na primeira metade dos anos 50 -, o cinema brasileiro ocupava somente 6% do mercado exibidor.

 

Publicado originalmente em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Col. Tudo é História, número 76).

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A chanchada no cinema brasileiro, parte IV de V: A Atlântida sobe

A chanchada no cinema brasileiro, capítulo IV: A Atlântida sobe

 

Por Afrânio M. Catani e José Inácio de Melo Souza

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

De 1941 a 1947 a Atlântida consolidou-se como a maior produtora carioca e, consequentemente, do Brasil. Ao contrário da Cinédia e da Brasil Vita Filmes, empresas mergulhadas em ciclotimias emperradoras, a Atlântida desenvolvia seguidos empreendimentos derivados de linhas de produção complementares, quais sejam, a chanchada e as fitas “socializantes”, forças condutoras da perenidade da empresa. Em razão da estratégia adotada pela companhia, permaneciam anunciadas em alguns cinemas dos grandes centros durante todo o ano as suas fitas, possibilitando aos espectadores a escolha conveniente a qualquer tempo. Três ou quatro filmes anuais forçavam a convivência benéfica entre o cinema brasileiro e o público, fato inovador e formador das primeiras plateias cativas da fita nacional.

 


O ritmo produtor imposto pela Atlântida, contrariamente ao imaginável, não desaguou na Hollywood tropical. A agradável impressão oferecida pelos incertos dados que cercavam a sua constituição, somada aos minguados lucros resultantes de fraudados borderôs dos filmes colocados no mercado exibidor indicariam um crescimento físico da empresa, o que também não se revelou verdadeiro. Os informes presentes nos artigos de revistas e nos livros de cinema configuram a precária situação da firma carioca, tanto quanto ou pior que na sua fundação. Pedro Lima, escrevendo para
O Cruzeiro (março de 1947), afirmava que das três produtoras importantes do Rio a Atlântida era a mais credenciada, mesmo funcionando num antigo boliche – fonte de pitorescas histórias. Pedro Lima, o decano da crítica cinematográfica, contava que se pedia silêncio à vizinhança quando se filmava de dia; José Sanz, desfiando os apuros da empresa no seu artigo italiano, não esquecia de incluir no relato a anedota do homem postado em cima do telhado do edifício, sinalizador da aproximação de trens ou aviões que interfeririam nas gravações diretas dos diálogos cênicos. A impropriedade dos estúdios foi taxativamente anunciada em 1949 quando Alberto Cavalcanti os visitou: “Isto não é um estúdio...é uma fogueira” bradou, mas não foi ouvido. O resultado veio três anos depois, com um incêndio que devastou o antigo barracão.

 

Mal instalada, ela era também mal equipada. Pedro Lima criticava a sua aparelhagem rudimentar e seu quadro técnico pouco numeroso e despreparado. Descuidava-se da montagem dos estúdios, da compra de aparelhamentos, que não conduziam nem a uma produção aprimorada nem à formação técnica de novos quadros. Completando o panorama negativo da Atlântida infere-se, pelos poucos dados, que ele era também péssima remuneradora do trabalho de seu pessoal. Watson Macedo entrou para a empresa na função de montador e mesmo passando à direção continuou a receber o seu salário anterior. Nos seus dois últimos filmes “melhorou de vida”, subindo seus ganhos para Cr$ 10.000,00. A sua sobrinha Eliana Macedo, futura integrante do sistema estelar da empresa, entrou recebendo Cr$ 8.000,00 na chanchada E o Mundo se Diverte (1949). Contratada para figurar em dois filmes anuais passou para Cr$ 10.000,00. Para termos uma ideia do pouco que representava o seu salário, Eliana, quando saiu da Atlântida acompanhando o seu tio em 1952, pulou para 100 mil cruzeiros na Watson Macedo Produções Cinematográficas. Adelaide Chiozzo depois de anos de contrato passou a receber Cr$ 25.000,00 quando só o vestido que usava num filme valia Cr$ 35.000,00.

 

O aspecto relativo ao guarda-roupa dos atores é interessante, lembrando as produções entre amigos, onde o próprio artista confecciona sua vestimenta. José Lewgoy no seu primeiro filme, Carnaval no Fogo (1949), quase esteve impedido de contracenar com Oscarito e Grande Otelo por não possuir um smoking exigido no roteiro. Foi salvo pelo de José Sanz. A prática hollywoodiana da exclusividade contratual também foi empregada pela Atlântida: Oscarito e Grande Otelo, para citarmos apenas dois exemplos, eram atores exclusivos. A estratégia revelou-se perversa, pois restringia a participação dos artistas em outros filmes de ganhos superiores ou então na negociação, em melhores bases, pelo ator, conforme a sua ascensão popular. Consequentemente, acontecia aquilo que Renato Murce, relatando a sua experiência radiofônica, comentava sobre a vida profissional do artista: “O rádio, como ninguém ignora, criou uma série interminável de mitos...Entre eles, o de que quem atingisse aquele grau de prestígio junto ao público deveria ser, forçosamente, um artista rico! Puro engano: os artistas, com muito raras exceções, ganhavam ordenados ridículos. A única ou maior vantagem era a divulgação dos seus nomes por esse Brasil afora. Tornava-os conhecidos. Proporcionava-lhes também uma renda extra: atuavam em espetáculos ou faziam pequenas excursões no interior do país durante as férias. Desse expediente tive que me valer: equilibrava as finanças, sempre em caixa muito baixa”.

 

As palavras de Renato Murce são poderosamente amplificadas quando sintonizamos na temporada paulistana de Grande Otelo em 1945. Por dez dias corridíssimos o artista “em pessoa”, como anunciava o programa, apresentou-se no Teatro Colombo e Circo Seyssel, passando depois aos cineteatros de Santo André e São Caetano, voltando à capital para terminar o roteiro nos cines Rialto e Fênix, além do Circo Piolin. No Rio de Janeiro, na temporada teatral de 1947, Oscarito obtinha grande sucesso com a revista “Homem Não!”, que o crítico Accioly Neto de O Cruzeiro afirmava tratar-se de uma crítica à peça “Desejo”, de O´Neill. O teatro de revista era uma fonte importante do trabalho para Oscarito. Quando a ditadura estado-novista impedia a caricaturização política, ou quando cinema não era capital na sua vida profissional, Oscarito passou grandes temporadas em São Paulo encenando, juntamente com Beatriz Costa, espetáculos teatrais. Graças à projeção nacional alcançada pelas suas participações nas chanchadas da Atlântida (um exemplo vivo é Este Mundo é um Pandeiro, de 1947), Oscarito viajava o Brasil com suas revistas satíricas.

 

Por falar em Este Mundo é um Pandeiro, subia o cartaz de Watson Macedo na Atlântida, embalado perlo êxito crescente de suas fitas. A película no Rio permaneceu em cartaz duas semanas além dos sete dias obrigatórios nos cinemas presos à rede exibidora de Severiano Ribeiro. A ultrapassagem da semana obrigatória estava se tornando um atestado de qualidade para os filmes – assim entendia Raimundo de Magalhães Jr. pela Scena Muda. Pedro Lima citava Recife, território de exibição de Severiano, onde o mesmo fato ocorrera, suspendendo-se as projeções somente na entrada da Semana Santa. Quanto à crítica, a coluna de Scena Muda achava a nova fita de Watson Macedo inferior a Segura Esta Mulher, que estava em reprise. De Este Mundo é um Pandeiro salvavam-se um espanhol de Málaga chamado Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Tereza Dias, apelido de Rei Oscarito, mais Marion e os quadros de bailados de revista conduzidos pelo bailarino Yuco Lindenburgh e seu corpo de baile.


O ótimo sucesso das chanchadas da Atlântida encontraram em 1947 o ano da saturação transformadora. Impelidos pela sequencia de boas performances da firma, novos investidores entraram no mercado produtor, aumentando consideravelmente o volume de produtores e produções. A Cinegráfica São Luiz, a Cinelândia Filmes, Tapuia, a Atlântida e a tradicional Brasil Vita Filmes preparavam nove filmes para o ano, dado que levou Pedro Lima à eufórica e angustiosa conclusão que após os êxitos das chanchadas da Atlântida e de O Ébrio, da Cinédia, “todo mundo passou a ser cineasta”.


Mas não foi só de cineastas e produtores que se encheu o cinema brasileiro. 1947 presenciou a entrada do truste exibidor der Luís Severiano Ribeiro Jr. como produtor de filmes, integrando-se ao mercado já dominado por ele nos setores de exibição e distribuição. A estratégia da participação do exibidor na produção tinha a sua lógica. A seção “Cinegráfica” de O Cruzeiro acusava, atrás da anônima assinatura de “Operador”, que Severiano durante a guerra havia comprado cotas da Distribuidora de Filmes Brasileiros (DFB) e da Distribuidora Nacional (DN), que eram duas ou três firmas especializadas na distribuição de filmes brasileiros no eixo Rio-São Paulo. Severiano trazia o cabedal dos territórios de exibição do Rio-Leste-Nordeste-Norte do país, agora acrescido de um laboratório cinematográfico que pretendia ser o melhor do Brasil. O passo seguinte da estratégia do exibidor foi aproveitar-se da exibição corrente no meio cinematográfico, propondo co-produções a quantos projetos houvesse. “Operador” fazia as contas dos lucros do magnata da exibição: entrava com 50% do capital na produção que em parte seria coberto por trabalho de laboratório; terminada, a fita entrava em exibição nos seus cinemas, de onde retirava uma participação de 50% da renda bruta que lhe cabia na qualidade de exibidor. Abocanhava de 20 a 30% da renda do filme como redistribuidor para outros territórios através de sua coligada União Cinematográfica Brasileira (UCE), por último, retirava 50% dos lucros do filme como co-produtor. Conclusão de “Operador”: “É por isso que além do seu laboratório, vem pensando também na criação de um pequeno e moderno estúdio, onde não só poderia realizar os seus filmes, como o alugará aos produtores independentes, que por sua vez lhe entregarão as distribuições, continuando o complicado círculo vicioso do qual saíra sempre o mais beneficiado”.

 



“Operador” destacava as intenções do truste em setembro. No número 9 da seção, datada de 18-10-47, ele nos informou que Severiano Ribeiro invertera a sua rota de construção de estúdios próprios pela compra de cotas da Atlântida, tornando-se seu acionista majoritário. A agitação foi imediata, revelando-se grandes expectativas pela entrada de Severiano, uma vez que ele daria novo dinamismo ao tripé da produção-distribuição-exibição organizados harmonicamente, e que fora o sustentáculo da produção fílmica dos primeiros anos do cinema brasileiro. O fato instigava no Rio especulações sobre o aumento da produção em bases sólidas. “Operador” salientou o desejo de boas intenções por parte de Severiano, pois assim seriam introduzidas “possibilidades de serem criados novos diretores, novos operadores, gente nova para a técnica e para novas equipes, a fim de que o número de produções aumente...”. Para o articulista, se fazia necessário o abandono pela Atlântida da característica de “diversão de família” para se orientar na direção de uma indústria. Era o fim da “burladas” (referência aos irmãos Burle).

 

Mas isso não ocorreu. Os estúdios não continuaram precaríssimos e a divisão de trabalho interna aos filmes seguiu reduzida a um fio de elementos imprescindíveis à continuidade e finalização das películas. Trocando em miúdos, isto significava que Waldemar Noya continuou na função de eterno montador; Amleto Dassé e Edgard Brasil fotografaram uma boa parte dos filmes produzidos e os mesmos diretores revezam-se na direção das fitas. As mudanças na Atlântida aconteceram ou por morte (Edgard Brasil), ou por incompatibilidade com o truste (Fenelon), ou quando Severiano ineptamente não segurou a cornucópia de dinheiro representada por Watson Macedo, que preferiu ganhar pouco mas na sua própria firma. Outro fato negativo foi a queda na produção, instante em que se esperava o inverso, decrescendo o nível de dois filmes por ano – geralmente duas chanchadas.


O pós-guerra anunciara um movimento ascendente do cinema brasileiro. O nosso crescimento não era isolado, refletindo, entre outras razões, um recuo do cinema norte-americano e avanço dos cinemas de outros países, como o mexicano e o argentino. Incendiava-se o meio cinematográfico: “1948 será o ano do cinema brasileiro”, previa Luiz Alípio de Barros pela Scena Muda. Em outro número da revista, Rubem Braga, comentando o balanço de uma produtora publicado no Jornal do Commercio, dizia que, com apenas dois filmes produzidos em 1947, a firma apurara 835 mil cruzeiros de lucro, deduzidos despesas gerais e imposto de renda. Com otimismo, Rubem Braga assinalava que de posse daqueles números não se podia negar que tínhamos uma indústria cinematográfica ao invés de aventuras, de sucessões de golpes. Dentro da efervescência do meio cinematográfico carioca e sentindo no ar os sintomas de uma virada, a crítica pedia a cabeça de muitos diretores, eternos cultores da chanchada. Fred Lee, na mesmíssima Scena Muda, gritava pelo término da aventura (palavra que obteria muito sucesso dali para frente), da improvisação e da cavação. O público deveria vigiar as películas, advertia, abandonando-se o patriotismo do aplauso sem reservas. Ele chegava a sugerir a aplicação no cinema do “Clube da Vaia”, à moda de similar comportamento criado para o teatro por Pascoal Carlos Magno. O que era antes corriqueiro, cotidiano, merecia agora crítica corrosiva. J. Arnaldo soltava os cachorros pela revista carioca: “Filmes são feitos às pressas, pobres de técnica e arte, com o único fim de, sob qualquer rótulo carnavalesco, atrair o público amigo de Momo, que é o único que não pode ser acusado de inimigo do cinema nacional”. Infelizmente, terminava o articulista, jamais o cinema brasileiro melhorou seus celuloides, embora o público correspondesse com boas rendas.


Até São Paulo, saindo da longa ausência, engrossava o cordão de crítica à conjuntura cinematográfica nacional. São Paulo renascia para o cinema pela sua crítica, pelos cineclubes emergentes, onde radicais e elitistas dedicavam-se ao culto do cinema estrangeiro, local em que o belo fremia epidermes ansiosas. O produzido no País era visto de viés ou então, mais frequentemente, negado. Em 1949 os cineclubes desconheciam o cinema brasileiro e B. J. Duarte, em O Estado de S. Paulo, sintetizava o não-reconhecimento à cidadania pela famosa frase “cinema nacional é coisa que não existe”. O alvo principal era a chanchada e seu sistema de produção. Na visão do crítico paulista fazer cinema compreendia outras coisas além de atores à frente de uma câmara. O bom cinema exigia de seus realizadores alfabetização na gramática cinematográfica, no conhecimento dos grandes nomes e peças do cinema mundial, bebendo-se este saber nas filmotecas e nos livros. Faltava cultura para termos um grande cinema, antes do aparelhamento e do capital, e isto estava ao alcance daqueles que passassem pelos Clubes de Cinema e Grupos de Estudos Cinematográficos – escolas de cinema possíveis na época. Dentro destas premissas B. J. Duarte considerava ridícula a nossa cinematografia, indigna de cotejo com a mexicana que em Enamorada e Flor Silvestre tinha dois filmes contemporâneos de classe internacional. As exceções no Brasil foram Limite, Uma Aventura Aos Quarenta e Estrela da Manhã, este último ainda em filmagens mas que, no seu entender, prometia muito.

 

A ácida investida da crítica paulista contra a produção de chanchadas mostrava mais desejos ocultos do que uma compreensão exata do fenômeno carioca. São Paulo crescia avassaladoramente desde a Segunda Guerra Mundial, dando margem à invenção do slogan “a cidade que mais cresce no mundo”. A sua burguesia estava ávida de compensações culturais que a salvassem da aridez provinciana. Escola de Arte e Museus de Arte Moderna, o Teatro Brasileiro de Comédia etc. proviam Fifi, Olívia e Mimi – celebradas figuras da reportagem de Joel Silveira, “Grã-Finos em São Paulo”. E o cinema? Bem, para São Paulo o cinema era o Rio e o Rio em termos de cinema...

 

A agitação do cinema carioca no ano de 49 obteve um balanço extremamente positivo por parte de Alex Viany nas páginas de Scena Muda. Ele realçava o número de produções (18), a qualidade técnica (conseguia-se entender quase 90% do som das fitas), bem como a revelação de valores (Ruth de Souza, Orlando Villar, Maria Della Costa, Maria Fernanda, Anselmo Duarte). A produção diversifica-se, preenchendo os novos diretores a lacuna deixada pela saída dos filmes “sérios” da Atlântida. Para São Paulo, que naquele ano de 1949 produziu duas fitas – Luar do Sertão de Tito Batini e Mário Civelli e Quase no Céu de Oduvaldo Vianna -, o cinema brasileiro permanecia em decadência devido exclusivamente ao cinema carioca, crucificando-se, independentemente  de valores próprios, todos os filmes sob o estigma da chanchada. O que São Paulo compreendia como chanchada está no livro Burguesia e Cinema, de Maria Rita Galvão: “Á sensibilidade burguesa, no entanto, repugnava na chanchada aquilo que ela tinha de mais aparente: a produção rápida e descuidada, alguns cômicos careteiros, o humor chulo, a improvisação, a pobreza de cenografia e indumentária, todas as decorrências do baixo orçamento. O que repelia, fundamentalmente, era a chanchada enquanto tipo de espetáculo, exatamente como o teatro ligeiro da época, e muito parecida com ele. Sobretudo como tipo de espetáculo, porque é pouco provável que as pessoas tivessem alguma noção do que representava a chanchada em termos de produção”. Dito isto, entende-se o afã da burguesia paulistana em tirar o cinema brasileiro do abismo em que se encontrava. E para tal criou-se a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, na tarde de 3 de novembro de 1949.

 

A Vera Cruz veio para dividir. O que aconteceu antes e o que aconteceria depois da data de sua fundação estavam totalmente dissociados como se, justamente naquele dia, regado pelo brindes e aplausos da burguesia frequentadora do Museu de Arte Moderna, nascesse o cinema brasileiro.

 

Na esteira da Vera Cruz vieram outras grandes produtoras com0o a Maristela e a Multifilmes, e mais 40 ou 50 pequenas produtoras independentes, alcunhadas por Benedito Junqueira Duarte pelas páginas de Anhembi de “cogumelos de uma só manhã”. Do Rio vieram tentar a sorte na canãa cinematográfica paulista. O êxodo contou com Alex Viany, Anselmo Duarte, José Carlos Burle, técnicos os mais diversos, e só não importamos Oscarito pelo seu desagrado com o contato oferecido pela Vera Cruz.

 

O boom cinematográfico transformou-se num cadinho de ideias sumamente entrelaçadas à história do período: Getúlio volta ao Catete nos braços do povo, portando na bagagem uma política nacionalista que provocaria atritos com a burguesia e os militares; as esquerdas, encabeçadas pelo Partido Comunista Brasileiro, desfraldavam diversas bandeiras de luta; o golpismo dos partidos conservadores rondava o espectro político. O cinema contaminou-se das lutas do tempo. Um grande números de intelectuais de extração esquerdista, da qualidade de Alex Viany, Carlos Ortiz, Salvyano Cavalcanti de Paiva, José Ortiz Monteiro, Mauro de Alencar e Artur Neves, entre outros, fizeram do cinema um campo de combate (onde demonstravam bom aguerrimento) e de experiências teóricas ou fílmicas, construídas na maioria das vezes com menos garra e inspiração. Ao lado do brilho técnico das produções da Vera Cruz e sucedâneos, formulou-se um corpo de ideias dedicadas à crítica destas realizações que escamoteavam, segundo as esquerdas, as condições do homem brasileiro. Ultrapassando a palavra publicada e falada, eles investiram na produção de seus filmes, vindo às telas, então Agulha no Palheiro (1953), Rua Sem Sol (1954), O Saci (1953) e Rio, 40 Graus (1955).

 

Diante do quadro transformador em que vivia o cinema brasileiro entrechocavam-se, no interior do campo cinematográfico, novas tendências voltadas ou para o cosmopolitismo ou para o nacionalismo. Do debate a Scena Muda extraía alento para a demolição da chanchada, reconhecendo todavia a inutilidade de seus esforços. Aí Vem o Barão (1951), de Watson Macedo, tinha o seu comentário na revista finalizado com as seguintes palavras: “Não recomendamos a ninguém, mas temos certeza que os fãs de Oscarito e do cinema brasileiro irão de qualquer maneira”. Salvyano Cavalcanti de Paiva em estudo sobre a comédia internacional e a brasileira destinava à primeira o reinado dos astros cômicos e, à segunda, o deserto. No Brasil não havia “um comediante que constituísse, com dignidade, um tipo, uma figura de arrebatar, pela atuação imediata e pelo que de universalismo contivesse, às plateias populares e à elite intelectual capaz de nele reconhecer o representante de uma classe, de uma casta, de uma nação”. Á sugestão do nome de Oscarito, Salvyano recusa, pois ele não seria jamais “esse tipo, esse elemento que representasse nacionalmente uma forma e universalmente na essência, o que correspondente de Carlitos”. No Brasil comédia significava o pior tipo delas, qual seja, a chanchada: “É o disparate vulgar combinado a um pouco de sexo e de frases de duplo sentido. Influência do baixo teatro, da burleta e do radiologismo mais ruim. Que do rádio e do teatro é que têm vindo os nossos cômicos...”. A alta comédia praticada no exterior inexistia no Brasil: “Os realizadores, incapazes, alegam dar ao público o que o público quer. E a cômicos de certas possibilidades entregam papéis ultrajantes, velhacos, que não oferecem a mínima oportunidade para a mostra de suas qualidades histriônicas, pelo contrário, filmes sem roteiro obrigavam o cômico a improvisar uma gracinha, balbuciar uma ‘pilhéria pornográfica’ ou a aproveitar a gíria do momento”.

 

A companha da revista a Scena Muda continuou a cada filme trazido à tela pela Atlântida. Em 1953 pedia que Watson Macedo abandonasse os hotéis Copacabana e Quitandinha e estruturasse, em contrapartida, enredos levados no meio da rua. Carnaval Atlântida, de Burle, era aquinhoado com comentário de Lívio Dantas que, sem meias palavras, dizia: “Positivamente, a Atlântida virou um clube de carnaval com muita bagunça, muita pândega e não poucos desvarios (...) Quiseram os responsáveis por aqueles estúdios fazer um filme musical depois de um incêndio que devorou suas instalações. Ora, muito bem! Foi feito o filme musical, não há a menor dúvida. Mas, à custa de quê? A custa de chavões, de decalques em filmes estrangeiros, de situações cômicas mais velhas que a Sé de Braga. Á custa da fama de rumbera de Maria Antonieta Pons, à custa dos trejeitos repetidos por Oscarito e, sobretudo à custa de todos nós que sempre temos demasiada boa vontade para com os filmes nacionais, apoiando-os irrestritamente, mas sempre decepcionados cada vez que os projetores começam a exibir a prata da casa...”.

 

Conquanto a crítica fosse implacável, a Atlântida respondeu-lhe com um filme que, embora negativamente recebido, passou à história do cinema brasileiro como um filme político por excelência: Nem Sansão Nem Dalila (1954). A direção era de Carlos Manga, estreante da safra de 1953 (Dupla do Barulho), escolado na direção amadorística de shows. Conduzido à Atlântida por Cyll Farney, começou ganhando seis vezes menos do que ganhava fora do cinema, o que não o desanimou; outra decepção foi não encontrar Hollywood na Atlântida. Manga declararia mais tarde que sua geração estava toda impregnada de americanismos, tanto que ele era presidente do fã-clube de Frank Sinatra no Brasil. Curtido no cinema americano faria, à semelhança de seu modelo Watson Macedo, transposições literais de filmes de Hollywood. Nem Sansão Nem Dalila parodiava Sansão e Dalila, de Cecil B. de Mille; Matar ou Correr fazia sombra a Matar ou Correr (High Noon), de Fred Zinnemann. O Homem do Sputnik satirizava a guerra fria entre russos e americanos, e por aí afora.

 

Nem Sansão Nem Dalila, segundo Scena Muda, contava as peripécias de Oscarito (Horácio no filme), engraxate de barbearia, que ia parar em Gaza. Conseguida a infalível peruca de Sansão, Oscarito promovia eleições “livres e honestas” no reino, tornando-se um governador de “poderes ditatoriais” que distribuía cargos letra “O” a todos os seus companheiros e amigos, numa alusão ao empreguismo varguista glosada na letra de sucesso do carnaval de 1952, gravação de Blackout, “Maria Candelária”. Lançada em 20 cinemas, não motivou o semanário carioca a uma crítica melhor. O comentário de pré-estreia estranhava a apropriação de assuntos exóticos pela fita, como os temas bíblicos ou os filmes fantásticos. De resto, Oscarito carregava a glória, porém desarticulado do conjunto, aparecendo bem apenas em momentos isolados. A revisão do filme feita por Jean-Claude Bernardet mostrou, entretanto, uma leitura totalmente diversa da produzida por Scena Muda. Bernardet considera o filme de Manga um dos “melhores filmes políticos brasileiros”. Segundo o crítico, seu roteiro tratava de um sonho de Oscarito que conseguia a peruca de Sansão, trocando-a por um isqueiro e transmutando-se num homem fortíssimo. Em Gaza o rei recebia o aviso dos deuses de que o reino seria destruído por um homem forte e, à chegada de Oscarito, o rei pede que ele não destrua Gaza. Oscarito acede mas impõe uma condição, qual seja, a de ser governador do reino. O rei tem um assessor militar que se agasta com o fato, inclusive com as medidas populistas tomadas por Oscarito. Após a posse, atentados contra Oscarito falham, até que Dalila descobre a fonte de sua força. O assessor militar consegue apoderar-se da peruca, expulsa Oscarito e usurpa o poder real. Oscarito consegue reaver a peruca, desenrolando-se os sucessos finais de destruição do templo e fim do sonho. Jean-Claude conclui, então, que na fita ficava clara a sucessão de golpes, sendo o primeiro populista, momento em que Oscarito sobe ao poder e toma atitudes “consideradas de interesse do povo, só que o povo não toma parte dessa tomada de medidas”. Mantida a mesma estrutura de poder Oscarito, posteriormente, será destruído por meio de um golpe de estado promovido pelo assessor militar, “insatisfeito com a concessão feita pelo rei ao populismo”. Desse modo, tem-se um golpe de estado populista e um contragolpe de tipo militar. Até parece que Manga percebeu o que aconteceria em 1964.

 


Nem Sansão Nem Dalila pode ser considerado como o limite extremo da evolução da chanchada. Depois de anos absorvendo os mais diversos elementos extraídos do circo, do carnaval, do rádio e do cinema estrangeiro, do mood carioca e da ginga, a chanchada começou a sofrer o combate de um novo meio de comunicação: a televisão. Dos anos 30 aos anos 50 o cinema expandiu-se continuamente. Implantada no Brasil em 1950, a televisão terminou a década com quase 600.000 aparelhos instalados, tendência sempre crescente e determinante na queda da frequência de espectadores aos cinemas. Afinal, para que assistir a chanchadas em cinema quando se poderia desfrutá-las confortavelmente em casa? Mas outros fatores aliavam-se à televisão para mudar o cinema brasileiro. A Vera Cruz institui um tipo de produção refinada, adversa do “feito ás pressas” da chanchada e que abria as portas do cinema internacional ao brasileiro. A reação nacionalista ia rapidamente se espalhando, de início contrária ao governo Dutra e depois ao de Juscelino, pois ambos desenvolveram uma política de abertura ao capital internacional – o interregno varguista do “Petróleo é Nosso” reforça a vaga nacionalista. Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte anunciavam os temas da alienação e da conscientização que frutificaram com o Cinema Novo. Correndo contra o relógio, Juscelino queria remodelar o Brasil com a frase “50 anos em 5”: Elvis Presley, o DKW, Brasília, Niemeyer, O Repórter Esso, a Revolução Cubana, Nikita Kruschev e John Kennedy diziam adeus à chanchada e não pediam passagem para ocupar o lugar. O Brasil entrava na década da “Revolução” e a chanchada saía das telas para entrar na história.

 

Publicado originalmente em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Col. Tudo é História, número 76).

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A chanchada no cinema brasileiro, capítulo III de V: 100% Falado, 100% Cantado, 100% Brasileiro

A chanchada no cinema brasileiro: capítulo III: 100% Falado, 100% Cantado, 100% Brasileiro

 

Por Afrânio Mendes Catani e José Inácio de Melo Souza

Seleção e transcrição: Matheus Trunk


E o cinema brasileiro quase saiu da raia depois do avento do cinema sonoro. Os movietones norte-americanos (isto é, o resultado do avanço técnico da impressão da banda sonora na fita) relegaram ao esquecimento as formas anteriores, mecânicas e não-mecânicas, de enriquecendo do filme mudo. O cataclismo do sonoro implicou diversas modificações nos ramos da incipiente indústria cinematográfica do país. Vejamos, por exemplo, o dano causado aos músicos de cinema após a exibição no Rio de Janeiro de Broadway Molody, o primeiro movietone trazido ao Brasil em 1929. A reportagem de O Globo (20-7-29) entrevistou o compositor e maestro Heitor Villa-Lobos, que esteve em visita ao Rio. E sem mais delongas ele afirmou ao jornalista que ficou triste com a noiva paisagem carioca:

“O Rio está gramofonizado, horrivelmente gramofonizado...Toca-se, aqui, hoje em dia, tanta vitrola, tanta radiola...O mal, aliás, não estará no número e na difusão dessa música mecanizada no século, mas na sua qualidade...Os nossos gravadores de discos (...) os comerciantes da nossa música popular, estão muito desorientados. Aceitam tudo, gravam tudo, o que é um erro (...) Outra cousa que também me entristeceu desta vez no Rio: a precária situação em que vão ficando os nossos músicos de orquestra, esses heroicos e tradicionais lutadores pela vida, com a instituição do cinema falado. Eu, que passei por lá, e que sei as dificuldades que tem o tocador de qualquer instrumento para viver (...) bem percebo no negro quadro que se desenha em frente aos nossos músicos de orquestra, que já estão ficando inteiramente abandonados por causa dos filmes que cantam, dançam e tocam os sete instrumentos da civilização moderna. O cinema falado é uma maravilha, está certo. Mas o artista é indispensável às coletividades e eu penso que o que se devia fazer em toda parte do mundo era o que determinou Mussolini, na Itália: aproveitar o músico de qualquer maneira. Ora, por exemplo, nas salas de espera dos cinemas. Aqui mesmo, no Rio de Janeiro, há tantos anos passados, a orquestra da sala de espera do Odeon chegou a ser famosa”. (Brasil: Primeiro Tempo Modernista: 1917-1929; Documentação).

 

Os exibidores, sem dar a mínima às palavras de Villa-Lobos, dispensaram seus músicos, alguns da qualidade de um Pixinguinha, Ernesto Nazaré ou Ary Barroso. A sugestão das orquestras de salas de espera também passou em branco, logo substituídas por vulgares vitrolas. A revolta latente e impotente dos músicos contra a situação imposta pelos “100% falados” ficou bem explicitada pela paródia no samba de Sinhô cuja letra de Luís Silva dizia:

 

Eu ouço falar

E com muita razão

Que o cinema falado

É uma exploração

 

O povo gasta dinheiro

Para nada compreender etc.

 

Este cinema falado

É uma grande cavação

Tirando dos pobres músicos

O seu próprio ganha-pão etc.

 

O sonoro também atiçava os ódios de uma boa parte da intelligentsia cinematográfica que endeusava Chaplin e o cinema mudo encontrava a essência da arte do cinema. Em diversos números de O Fã, órgão do Chaplin-Club do Rio, assistimos à inglória batalha contra os falados. Alex Viany transcreveu no seu livro Introdução ao Cinema Brasileiro algumas invectivas como a de Otávio de Faria: “Eu creio na imagem...Na imagem toda-poderosa. Que autentifica o gesto. Que constrói  movimento. Que não admite o som e não pode conceber a palavra. Na imagem que é imagem e só pode ser imagem...”. Embora O Fã (30 de janeiro de 1930) considerasse o filme sonoro “carta fora do baralho”, incorreu numa avaliação errada, pois o cinema falado veio para ficar. Em poucos anos o cinema brasileiro viu findar-se as tentativas regionais  de produção – encerravam-se os Ciclos – e restringia-se a produção dos filmes mudos; daí as imprecações da revista acerca do que acontecia no Rio.

 

O movietone, além de colocar em farrapos as apostas estéticas do cinema que se fazia até então, destruiu em poucos anos o grande centro produtor de filmes de ficção daqueles tempos que era São Paulo. De Acabaram-se os Otários (1929) em diante a produção paulista decaiu, permanecendo, após Fazendo Fitas (1935), numa hibernação de 14 anos. Do colapso salvou-se o Rio, que aumenta sua produção a partir de 1933-35, puxada pelo carro-chefe da chanchada.

 

O filme falado determinou uma imediata reciclagem técnica que tornava coisa do passado o princípio de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, norteamento impulsionador de mais de uma geração de cinegrafistas. Novos e caros equipamentos de sonorização deveriam ser importados, assim como novas câmeras e filmes apropriados. Isto obrigou ao remanejamento das empresas cinematográficas existentes e a primeira a sair na corrida do reequipamento foi a Cinédia. A empresa foi fundada em 16 de março de 1930 e logo começou a construir seus estúdios. Paulatinamente, começou a aparelhar-se para fazer frente ao sonoro, posto que os dois primeiros filmes mudos da firma tiveram um péssimo desempenho no mercado já dominado pela agaravia dos filmes estrangeiros.

 


Outros investimentos seguiram-se ao de Adhemar Gonzaga. Em 1933 Carmen Santos, uma atriz que atuava no cinema brasileiro desde 1919, fundou a Brasil Vita Filmes com estúdios no bairro da Tijuca. Wallace Downey, ianque, emérito produtor de chanchadas, após algumas produções e direções para outras firmas resolveu montar o seu próprio empreendimento: primeiro, surgiu a Waldow Filmes S/A (1935) e em 1939 a Sonofilmes. Neste mesmo ano São Paulo assistia a um dos mais brilhantes fracassos na construção de grandes estúdios, com a Empresa Sul Americana de Filmes, que lutou muito para conseguir terminar um longa-metragem e dois ou três curtas. Logo depois, vem a Atlântida.

 

Ao lado da construção de firmas produtoras a década de 30 presencia a entrada do Estado na proteção ao filme brasileiro. Esse princípio de protecionismo foi algo retórico, pois sempre se entendeu o mercado cinematográfico como de domínio estrangeiro e a legislação caracterizou a sua atuação como simples mantenedora do status quo. Isto se torna visível com Francisco da Silva Nobre, que em sua Pequena História do Cinema Brasileiro traz algumas das sugestões propostas pela comissão nomeada por Getúlio Vargas em 1931. Tal comissão preconizava a diminuição do ônus aduaneiro sobre o filme impresso estrangeiro, ideia transformada em lei no ano seguinte quando promulgou-se o decreto 21.240. O decreto era amplo, contendo ainda a nacionalização da censura cinematográfica e a obrigatoriedade do uso de um certificado de exibição. Criou, também, uma taxa cinematográfica que seria utilizada num futuro órgão de orientação do cinema e obrigava a exibição de um filme nacional – conforme a capacidade de produção brasileira – por ano pelos cinemas.

 

Em 1934, o decreto 24.651 amparava e estimulava, num dos seus parágrafos, a produção e exibição de “filmes educativos”, documentários curtos que mais tarde tiveram pouco a pouco de lutar por seu espaço, ocupado pela continua produção de cinejornais. A importância da obrigatoriedade de exibição dos “educativos” situava-se na garantia segura do escoamento de sua produção. O resultado foi a proliferação de filmes curtos, fonte segura de trabalho e prolongamento de muitas empresas (a Cinédia foi uma grande fábrica de curtas e cine-jornais; a Atlântida, na sua primeira fase, orgulhava-se de nunca haver necessitado de expediente dos curtas para sobreviver).

 

Explicadas rapidamente as formas de existência do cinema brasileiro, debrucemo-nos sobre alguns filmes do período. Em 1929, Luís de Barros realizava Acabaram-se os Otários, fita saudade por quase todos os autores que estudaram a chanchada como um marco no modo de confecção de filmes populares. A fita surgiu de uma inesperada e surpreendente aposta entre o diretor e um exibidor paulista impressionado com os sonoros norte-americanos. “Não é só americano que faz filme falado. Eu também vou fazer um”, depunha o olímpico Lulu de Barros muitos anos depois. Assinado o contrato de exibição Lulu saiu em campo, sendo sua primeira medida o pedido de auxílio à Fábrica de Discos Parlophon para que gravasse todos os diálogos da fita, proporcionando ao diretor a maneira exata de sincronizar som e imagem. Descoberto o “jeitinho” próprio de vencer a aposta (Lulu distingue o seu processo do similar americano da Vitaphone), ele caminhou seguro para o sucesso.


O enredo de Acabaram-se os Otários, salientou Carlos Roberto de Souza, lembrava a nossa comédia Nhô Anastácio Chegou de Viagem (1908), tratando a história do matuto “Arrudinha” que “chega `cidade e acaba comprando um bonde”. “Arrudinha” talvez não fosse o nome do personagem encarnado pelo eterno caipira Genésio Arruda, já que o anúncio do filme apresentado por Bernardet em sua Filmografia noticiava como artistas principais Genésio Arruda e Tom Bill, vivendo uma “engraçada comédia falada e cantada em português com as aventuras do Bentinho Samambaia e do Xixilo Spicafuoco”, o último colono italiano que falava na língua ítalo-brasileira inventada por Juó Bananere.

 

Reencontramos, explicitadíssimos, o anúncio luminoso e atrativo das “canções, modinhas, piadas, trocadilhos”, abracadabrantes signos do sucesso popular. E que sucesso! “Até 9-9-29, 35.000 pessoas já viram o filme no Santa Helena” (anúncio da fita em O Estado de S. Paulo), momento em que a película estava apenas na sua primeira semana de exibição naquele cinema. A projeção do filme continuou por outros 17 cinemas da cidade, alguns bisando apresentação, numa permanência que somou 76 dias.

 

No ano seguinte Luiz de Barros, empurrado pelo sucesso de sua fita anterior, voltaria com O Babão. Aprimorando o seu processo de sincronização de disco e imagem, Lulu abriu outra senda à chanchada pela paródia do filme estrangeiro. O fato não era novo no cinema brasileiro mas a chanchada permitia uma fonte inesgotável de assuntos. O alvo escolhido foi Amor Pagão (The Pagan, no original), interpretado por Ramon Novarro e que fazia grande sucesso na época. A transmigração de um corpo a outro por certo criou situações díspares: o cartaz do filme apresentava uma jovem de sarong, á moda das nativas das ilhas do Sul do Pacífico, fazendo cafuné no caipira Genésio; as frases do mesmo anúncio historiavam o “romance de um moço moreno, sentimental e bocó (o caboclo) com uma espanholita salerosa” – invertendo e aproximando mais a moça de sarong. A confusão de tipos culturais, motivadas por uma atração e um afastamento simultâneo entre modelo e cópia, patenteava-se de forma funambulesca quando “Genésio Arruda de cuecas, com sotaque de caipira paulista, oferecia ao público sua versão da melodia que, na voz de Novarro, tantos suspiros provocara:

Neste bananar,

Terra tropicar...

Um amor babão

Vem ao coração...”

 

Luiz de Barros não nos contou nas suas Memórias em quanto tempo fez Acabaram-se os Otários. Decerto rapidamente, pois este era o seu estilo de filmar. Um exemplo visível do seu modo de trabalho foi O Babão, iniciado e terminado em 21 dias – fato que na sua carreira não representou nenhum recorde. A forma de composição rápida da chanchada nos obriga a reflexões pauloemilianas. Quando um produtor de Hollywood ou europeu demora um ano ou mais para terminar seu filme isto não significa incompetência ou desleixo. Mas nas condições adversas do produtor brasileiro o é, tanto que se criou um substrato psicológico contrário à grande produção. A chanchada, nestes termos, sempre se pauta pela rapidez, cujo padrão definitivo foi Luiz de Barros.


Ainda em 1931, embora com menos sucesso, São Paulo encerraria a sua participação na aventura chanchadesca com Coisas Nossas. O filme apresentava qualidades novas, todas devidamente ressaltadas por Carlos Roberto de Souza, quais sejam, a produção a cargo de um novato, Alberto Byington Jr., filho de uma família de empresários da indústria fonográfica e que introduzia no cinema brasileiro um espírito empresarial diverso do diletantismo esperado. A direção da fita coube ao americano Wallace Downey, vindo da Fábrica de Discos Columbia. Finalmente, Coisas Nossas “foi a primeira tentativa de fazer o cinema brasileiro enveredar na direção dos filmes musicais americanos que estava fazendo furor”. Assim, o forte do filme eram as músicas e cantores, principiando pela canção-título de Noel Rosa e passando por Paraguassu, orquestras de Gaó e Napoleão Tavares, e Alzirinha Camargo, numa sucessão de números musicais que quase impedia o desenvolvimento do enredo.

 

Transportada a chanchada para o Rio, ela voltaria com força total pela produção de Wallace Downey, Alô, Alô, Brasil (1935). O filme era uma continuação melhorada pelo movietone da fita anterior Coisas Nossas, ou seja, desfilava uma série de músicas encadeadas por um enredo mínimo, temperadas por astros do rádio – o veículo de comunicação que ascendia na vida cotidiana brasileira da época. O tema do rádio e seus artistas foi explorado intensamente. Na exibição paulistana da fita lemos frases elucidativas: “Vamos ouvir o maior repertório de músicas carnavalescas, cantadas pelos ases do mesmo rádio – a avant première do carnaval de 1935, pela primeira vez, os ases do nosso rádio”. A mistura de astros do rádio (Carmen Miranda, Francisco “O Rei da Voz” Alves, Aurora Miranda, Mário Reis, Jorge Murad, O Bando da Lua etc.), carnaval e piadas (“gozadíssimas piadas por Mesquitinha e Barbosa Júnior”) encontraram em Alô, Alô, Brasil! a consagração paulistana de 124 dias de exibições, que começaram nos dias de Momo e terminaram no mês de agosto. O filme carnavalesco de ficção, como seu homônimo documental, chegava, apresentava-se e vencia.

 

E disso se aproveitaram Wallace Downey e Adhemar Gonzaga. O ianque, no mesmo ano de Alô, Alô, Brasil!, exibiu Estudantes (86 dias exibição em São Paulo). No ano seguinte Alô, Alô Carnaval!, produção associada à Cinédia, filmusicarnavalesco que com seu “enredo cômico, a música, as canções, tudo enfim”, constitui um filme “maravilhoso” (O Estado de S. Paulo, alcançando graças a Carmen Miranda, Francisco Alves, Mário Reis e “todos os ases do nosso rádio” a permanência de 97 dias. Em 1937 nova investida com O Bobo do Rei, que apresentava músicas de Ary Barroso e situações cômicas a cargo de Mesquitinha; em 1939 foi a vez de Banana da Terra e em 1940 de Laranja da China. Gonzaga, por sua vez, empregou seguidamente Luiz de Barros em filmes de menor sucesso que Downey: O Jovem Tataravô, Samba da Vida e Tererê Não Resolve. O maior êxito de Gonzaga no período deveu-se antes à comédia ligeira, Bonequinha de Seda, do que à chanchada.

 

Durante a Segunda Guerra, o Departamento de Imprensa e Propaganda – o DIP, órgão repressor e censor do Estado Novo varguista – intensifica sua ação, jogando seu peso, em primeiro lugar, contra a imprensa. Entretanto, o cinema também foi alvo de atenções do Departamento, que lhe determinou linhas de execução de medidas normativas e produtivas. No primeiro caso, o DIP preocupou-se com o curta-metragem, o célebre “complemento nacional” obrigatório do filme estrangeiro, notadamente quando investiu na produção do seu cine-jornal, dando-lhe uma renda de 5 cadeiras por sessão, margem de 30 a 50% ao produtor e fiscalização para observância da lei. Instituía também o Convênio Cinematográfico Nacional, reunião de todos os produtores e distribuidores que, sob a presidência do DIP, estabeleceria diretrizes de ação conjunta. Um outro decreto criava o Conselho Nacional de Cinematografia que, ao contrário do similar para a Imprensa, raramente funcionou. Como produtor o DIP realizou o seu Cine Jornal Brasileiro, timidamente criticado pela revista Scena Muda que o encarava como invasor na seara dos “complementos”.

 

Se o DIP por todas estas medidas era um órgão impulsionador do cinema, ele nunca tirava os pés da terra pela censura. Proibiu-se O Grande Ditador, de Chaplin, tanto de ser exibido quanto de ser divulgado, pois negava-se espaço a notícias e comentários sobre o filme nos jornais (os periódicos furavam a determinação do DIP). Além disso, o Clube de Cinema de São Paulo, do qual participava a jovem intelectualidade paulistana, foi proibido de funcionar por seu caráter “subversivo”.

 

A instabilidade do início da década de 40 favoreceu, porém, o florescimento da Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S/A. A pequena bibliografia lança mais dúvidas que certezas e os poucos dados que aqui alinharemos pretendem antes a discussão do que a exatidão. Alex Viany no seu clássico livro assinalou que um “grupo de entusiastas” composto por Arnaldo de Farias, Alionor Azevedo, os irmãos José Carlos e Paulo Burle e Moacir Fenelon, que tinham um certo grau de consciência social do momento em que viviam, reuniram-se para criar com a Atlântida um local permanente para a prática do grupo. Por outro lado, José Sanz no artigo “Ritratto Sincero dell´Atlantida” para a coletânea Il Cinema Brasiliano contrariava um pouco o texto de Viany, afirmando que Introdução ao Cinema Brasileiro levava o leitor à crença de que a Atlântida foi o resultado da revelação de uma consciência coletiva em direção à realidade da indústria cinematográfica quando, na verdade, se devia “exclusivamente” a Fenelon o nascimento da empresa. Todavia, Sanz encampava a tese de que a “finalidade deste grupo não era somente fazer filmes, mas ainda tentar a criação de uma experiência cinematográfica brasileira ou pelo menos carioca, e ao mesmo tempo abordar problemas sociais até então ausentes da cinematografia nacional”.

 

A base dos dois comentários sobre a fundação da Atlântida talvez se localize em entrevista de Moacir Fenelon concedida à Scena Muda em dezembro de 1945. Declarava Fenelon que a data de criação da empresa foi 16 de setembro de 1941 quando um “punhado de bravos” empenhou-se em melhorar o cinema da terra. Fenelon participou do núcleo original que, diante das condições do início da década, isto é, paralisação da Cinédia, incêndio na Sonofilmes e investimento da Brasil Vita Filmes no paquidérmico Inconfidência Mineira, resolveu organizar uma produtora por ações populares. Para o empreendimento Fenelon conseguiu mobilizar os irmãos Burle e, se muitos fundaram a empresa (centenas até, pela compra de ações), os dois únicos incorporadores da Atlântida foram Moacir Fenelon e José Carlos Burle.

 

A impressão deixada por todas as considerações é que a Atlântida não passava de outra pequena produtora do Rio, conduzida por homens altruístas e politizados de esquerda. As dúvidas começam a aparecer quando lemos em O Estado de S. Paulo (1942) a notícia da constituição da Atlântida no ano anterior com um capital de 1.000 contos de réis, instalação de estúdios e sede no Edifício Jornal do Brasil, à Avenida Rio Branco. Fenelon mencionara em sua entrevista o Conde Pereira Carneiro, proprietário do Jornal do Brasil, sem discriminar a qualidade da ajuda recebida. Sem dúvida o nome do Conde, a sede e o membro suplente do Conselho Fiscal da Atlântida, Ernesto Pereira Carneiro Sobrinho, sugerem uma participação empresarial que o Diário de Notícias de 1949 inscrevia no raio da posse total da produtora carioca. Outra notícia de O Estado referia-se à venda de cotas populares da Atlântida pelo preço unitário de 100 mil réis, a cargo do agente autorizado em São Paulo, Galeão Coutinho. Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Mato Grosso completavam a lista dos estados onde se encontrariam os agentes da empresa. O objetivo de subscrição popular era alcançar de 9.000 contos de réis. Francisco da Silva Nobre, em sua Pequena História do Cinema Brasileiro (1955), transformando contos em cruzeiros – portanto, antes da implantação do cruzeiro novo -, comenta que o capital inicial de Cr$ 1.000.000,00 foi sucessivamente aumentado para 4 e 10 milhões de cruzeiros.

 

Com todas as informações vemos que a Atlântida desconhecia a vocação de pequena produtora, prenunciando com seu estilo empresarial a grande companhia da década seguinte, a Vera Cruz. Lendo O Estado percebemos que Fenelon não participava da primeira direção da firma, integrando-se somente em abril de 1942. Nesse ano a Diretoria da Atlântida ficou constituída da seguinte maneira: Diretor-Presidente: Paulo Burle; Diretor-Secretário: José Carlos Burle; Diretor-Superintendente: Moacir Fenelon; Diretor-Tesoureiro: Charles M. Browne.

 

A estratégia inicial da Atlântida, negada por Fenelon, foi fazer o que todos faziam: cine-jornal. Mas Atualidades Atlântida destinavam-se a um interlúdio até a chegada do longa-metragem. O primeiro longa exibido, como já vimos foi IV Congresso Eucarístico Nacional de São Paulo. Todas as paróquias paulistanas foram intimadas a assistir ao filme, o que foi bom, pois muitas beatas e muitos carolas puderam deliciar-se às escondidas com a média-metragem do programa Astros em Revista, cujo destaque era dado por Emilinha, Luiz Gonzaga e seu arcodeom, Quatro Ases e Um Coringa e Grande Otelo – chamarizes que desenhavam o futuro da empresa.

 

Em maio de 1943, começavam a filmagem de Moleque Tião, o primeiro grande sucesso ficcional da Atlântida. O filme resultava de um pool de produtores e distribuidores como a Companhia Cinematográfica Brasileira, Filmoteca Cultural, Filmes Artísticos Nacionais, Souza Ramos e Atlântida Ltda., união bem ao gosto do espírito cinematográfico estado-novista. O primeiro take reuniu a fina flor do DIP, o Presidente da Confederação Nacional das Indústrias, membros do Gabinete da Presidência e os surpresos Comandante John Ford e Tenentes Toland e Engel.

 

Quatro meses preencheram as necessidades de preparo e lançamento de Moleque Tião (roteiro de Alinor Azevedo e direção de José Carlos Burle). A película romanceava a vida de Grande Otelo (Sebastião Prata na vida real) e ele não perdeu a oportunidade de brilhar. José Sanz afirmou em seu artigo que a fita era uma novitá no panorama cinematográfico brasileiro, introduzindo, pela primeira vez, preceitos da escola italiana do neo-realismo que acabara de ser inaugurada naquele ano por Obsessione de Luchino Visconti.

 

Cotejando alguns dados da época verificamos a novidade enunciada por Sanz. Os elementos do roteiro e o brilhante trabalho do ator Grande Otelo, elogiado por toda a crítica, levaram o articulista de O Estado de S. Paulo à confissão de que apesar do “rótulo nacional” saíra do cinema crente na possibilidade da feitura de filmes “de verdade” no Brasil. Quanto ao neorrealismo, isto é, o trabalho cênico fora dos estúdios e de sua parafernália ou a inovação do filme dentro do filme (que era o caso), não houve impressão notável no crítico do Estadão, que destacava como presentes nas produções estrangeiras as filmagens in loco. Outro dado novo da fita foi o seu retumbante sucesso, conhecido desde o primeiro dia de lançamento no Rio. O exibidor paulista precaveu-se para o fato e lançou Moleque Tião em dois cinemas. O total da permanência da fita em São Paulo foi de 132 dias.

 

O primeiro filme da Atlântida apresentava músicas cantadas por Grande Otelo, Lurdinha Bittencourt e Custódio Mesquita. Entretanto o crítico de O Estado destacou que os números musicais foram “escritos e cantados com discrição, de modo a não transformar a história em pretexto para uma revista teatral”. Moleque Tião livrava-se, assim, do viés chanchadesco e caminhava em direção ao filme social. Era uma situação contrastante com relação às outras películas exibidas em São Paulo naquele ano: Samba em Berlim (de Luiz de Barros) anunciava-se como uma “super-comédia musical carnavalesca”; Entra na Ferra, senão bastasse o título, trazia a chapa “Comédia! Graça! Alegria! Música!”. Por última, estava em tela Caminho do Céu, considerada pela Scena Muda melhor que a fita da Atlântida, mas que foi na verdade um grandioso fracasso de público no Cine Metro paulistano. A linha dos filmes “sérios”, sociais, continuou a ser trilhada pela Atlântida: É Proibido Sonhar, aprontada para um lançamento no mesmo ano de 43, e Romance de Um Mordedor e Gente Honesta, que se seguiram à segunda fita.

 

O filme social granjeava projeção e elogios à Atlântida, tanto que a Scena Muda estampava em artigo de 1944 o aplauso de Jairo Faria Rocha. Mas em 1946, mesmo elogiando alguns ângulos de Sob a Luz de Meus Olhos (dir. de Fenelon), B.J. Duarte, crítico de O Estado, sentia-se à vontade para fazer algumas ressalvas à linha social da empresa: “Não negamos, nem discutimos as excelentes intenções, com a vontade de acertar com que se acha pejada a película da Atlântida: isto ela os tem de sobejo. É preciso, porém, muito mais, principalmente em se tratando de cinema socializante, gênero que, segundo parece, se propõe a Atlântida a explorar – com o nosso aplauso e apoio integrais, aliás”. Os percalços do “cinema socializante”, continuava B.J., situavam—se na confecção delicada que demandava firmeza na direção e competência nas diversas fases de elaboração do filme, ambos os aspectos falhos em Sob a Luz.

 

O filme social em termos de público equilibrava-se entre receitas boas e ruins. Junto à crítica alcançava-se uma flutuação tendendo para o negativo. Avaliando os filmes sociais da Atlântida realizados até 1947 pelas críticas da Scena Muda, verificamos a seguinte tendência: Moleque Tião, recebido negativamente; É Proibido Sonhar, aceito com razoável entusiasmo; Romance de Um Mordedor, negativa; Vidas Solidárias, idem, “celuloide de tese”, escrevia o crítico; Sob a Luz do Meu Bairro obteve boa receptividade por parte da revista; O Gol da Vitória, negativa; Sob a Luz dos Meus Olhos, crítica não muito favorável.

 

Para obter maior fôlego a Atlântida foi obrigada a recorrer à chanchada. O terceiro filme da empresa carioca, Tristezas Não Pagam Dívidas (dir. de Rui Sá e J.C. Burle), e o carnavalesco de 45, Não Adianta Chorar, de Watson Macedo, introduziram a chanchada no bastião dos “filmes sérios”.

 

Tristezas Não Pagam Dívidas foi lançado no Rio ao fim do ano de 43, fazendo carreira como o carnavalesco de 1944. A fita reunia pela segunda vez, e a primeira na Atlântida, a dupla Oscarito e Grande Otelo, que divertia os espectadores entre balés, batuques, números de cassino e canções de Ataulfo Alves, Sílvio Caldas e Joel e Gaúcho. “O grito de carnaval de 1944” era a frase publicitária no jornal, reforçada pela crítica do Estadão: “a preocupação única dos produtores de Tristezas...foi divulgar músicas carnavalescas por meio de uma história divertida”. Os espectadores acorreram em massa ao divertissement carioca, mantendo-o 139 dias em cartaz.

 

O “grito do carnaval” de 45, Não Adianta Chorar, deveu-se a Watson Macedo. A biografia de Watson é curiosa: logo que terminou o ginásio em Nova Friburgo, Estado do Rio, em 1937, o futuro diretor abalou-se para o Distrito Federal em busca da realização de seu sonho, qual seja, ser diretor de cinema. E foi com este qualitativo que se apresentou perante Carmen Santos na Brasil Vita Filmes. Pasma e incrédula, imaginamos a atriz portuguesa ofereceu-lhe um cargo de técnico de som prontamente recusado pelo “diretor”. Todavia- Watson ficou pelos estúdios dando seus palpites até que Carmen Santos ofereceu-lhe a chance de dirigir uma comédia de média-metragem, Barulho na Universidade (1943). No ano seguinte incendiavam-se os estúdios da Brasil Vita Filmes e, em consequência da paralisação da produtora, a câmera Edgard Brasil levou-o para a Atlântida como montador de filmes. Deste cargo Watson passou a assistente de direção de Moacir Fenelon, esperando a sua oportunidade de ouro – ele veio pela substituição na direção do carnavalesco de Rui Costa. O resultado foi que o filme dirigido por Watson Macedo realizou uma bela carreira assemelhando-se à fita anterior da empresa, atingindo 137 dias em cartaz. A crítica da revista carioca comentava que Não Adianta Chorar era uma fita dirigida a seis mãos, pois Watson Macedo foi auxiliado por Burle e Fenelon. E mais: “foge um pouco ao ritmo técnico imprimido nos outros (filmes) devido a causas várias como a rapidez com que foi feito, a preocupação de lançamento imediato em sacrifício do trabalho de laboratório, pois o Carnaval está às portas e o filme é carnavalesco”. A fita marcava o retorno da dupla Oscarito e Grande Otel, desfiando as suas gags ao som dos Anjos do Inferno, Ciro Monteiro, Namorados da Lua, Alvarenga e Ranchinho, Joel e Gaúcho e Sílvio Caldas.

 

Em 1946, Macedo voltaria com Segura Esta Mulher, ultrapassando todas as marcas de êxito antes alcançadas pela Atlântida; a aceitação popular da fita passava por cima de todas as reflexões da imprensa. Os espectadores não davam a mínima para o crítico da Scena Muda, que declarava inexistir argumento no filme – “não tem pé nem cabeça”, afirmava -, nem para o “plebismo” do título, segundo o crítico do Estadão. O sucesso media-se pela segunda semana no Ipiranga de São Paulo e pelo alargamento da exibição de 2ª linha, atingindo por duas vezes, três cinemas de bairro simultaneamente.

 

Como chanchada trazia todos os predicados: Grande Otelo sem Oscarito, depunha que o filme havia sido rodado às pressas: a revista carioca criticava o excesso de músicas cantadas por Orlando Silva, Joel e Gaúcho e muitos outros. Scena Muda reconhecia porém que Watson Macedo possuía “qualidades de um verdadeiro diretor”, enquanto que denunciava que as piadas encenadas por Grande Otelo, Mesquitinha e Catalano eram adaptadas com propriedade de filmes americanos. O primeiro fato reconhecia o status justo que Macedo, dois anos depois elevado ao pedestal da glória eterna por Carnaval do Fogo. O acerto da direção de Watson atraiu as atenções do virulento crítico B. J. Duarte, que se assustou com a ausência na fita de trejeitos, saracoteios, de letras grosseiras e maliciosas em sambas carnavalescas e da fotografia maltrapilha – marcas registradas dos “aventureiros” realizadores de Caídos do Céu e Cem Garotas e Um Capote.  Já o segundo ponto denotava o carinho que a fita norte-americana recebia do diretor, primeiros sinais do decalque que evoluira das gags às sequencias inteiras copiadas – grilhões carregados com alegria.

 

1946 foi o ano de Segura Esta Mulher, enquanto 1947 seria marcado por um fato que consolidaria a Atlântida como produtora nacional de filmes.

 

Publicado originalmente em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Col. Tudo é História, número 76).