sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

A chanchada no cinema brasileiro, parte V de V: O povão nas telas

 Capítulo V: O povão nas telas

 

Por Afrânio M. Catani e José Inácio de Melo Souza

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

 

Luís Severiano Ribeiro Júnior, tendo nas mãos a partir de 1947 – quando se torna o acionista majoritário da Atlântida – a produção, a distribuição e a exibição de filmes, resolveu incrementar a produção das chanchadas, ao perceber que elas poderiam ser uma fonte quase inesgotável de polpudos lucros. Tiro e queda: até 1962 a companhia colocou no mercado uma quantidade incerta de filmes (40 segundo alguns, 60 de acordo com outros e perto de 80 para os mais exagerados), nos quais Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves, Anselmo Duarte, Violeta Ferraz, José Lewgoy, Wilson Grey, Renato Restier, entre outros, fizeram as delícias do grande público.

 

Antes de prosseguirmos, merecem ser destacadas duas fases distintas na evolução dos filmes musicais ou de chanchadas, como bem lembra Miguel Chaia, um dos estudiosos do gênero. A primeira vai aproximadamente até o início dos anos 40, caracterizando-se por motivos, argumentos e situações simples e com números musicais homogêneos, carnavalescos ou juninos, sendo Alô, Alô, Brasil!, Alô, Alô, Carnaval! e Banana da Terra filmes típicos dessa fase.

 


A partir dos anos 40 tem lugar uma nova etapa, cujo prolongamento vai até o começo da década de 60. Nessa etapa, os argumentos, enredos e situações tornam-se mais complexos e os números musicais mais heterogêneos. É também o período em que a chanchada atinge seu auge, devido à empatia com o público e à consequente produção contínua de uma grande quantidade de filmes. Garante-se um mercado próprio para essa produção e os temas carnavalescos e juninos vão sendo aos poucos abandonados (ou tornando-se secundários), substituídos por outros que se referem ao cotidiano do homem urbano da época, a aspectos políticos e a problemas da realidade socioeconômica vizinha – sempre, é claro, com muito humor e marotice.

 

A produção cinematográfica brasileira desenvolve-se, em boa parte, criando laços de dependência com a indústria cinematográfica internacional – principalmente norte-americana -, quer no nível técnico, quer no nível da linguagem. No caso das chanchadas, estas acabam gravitando ao redor dos gêneros norte-americanos de filmes, como os musicais, o policial, o western, a reconstrução de épocas, etc., destacando-se entre outros, Matar ou Correr, O Barbeiro que se Vira, Nem Sansão Nem Dalila, muitos próximos dos originais made in Hollywood.

 

Esses laços de dependência com a indústria cinematográfica norte-americana (que é a dominante) refletem-se em termos de domínio econômico e, também, na esfera propriamente cultural, gerando neste último caso atitudes colonizadas por parte dos realizadores, do público e da crítica cinematográfica. Nesse sentido, através da paródia é que se procura atrair o grande público, tentando capitalizar o sucesso do filme estrangeiro. Apesar de boa parte da cinematografia brasileira fundar-se na cópia ou na imitação, tenta-se – por meio desses recursos – retomar parte dos espaços do ocupante, do produto estrangeiro, devolvendo ao público o original adaptado às peculiaridades locais e made in Jacarepaguá.

 

O crítico Paulo Emílio Salles Gomes, em seu clássico artigo “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento”, pondera que no Brasil o fenômeno cinematográfico desenvolvido no Rio de Janeiro a partir dos anos 40 é um verdadeiro marco. Isto porque durante cerca de vinte anos a produção ininterrupta de filmes musicais e de chanchada (ou a combinação de ambos) “se processou desvinculada do gosto do ocupante e contrária ao gosto do estrangeiro”. O público jovem e das camadas mais modestas garantiu o sucesso dessas fitas, pois nelas encontrava aquilo que não estava presente no modelo estrangeiro: o seu cotidiano, através de anedotas tipicamente cariocas, maneiras de falar e de se comportar. “A identificação provocada pelo cinema americano modelava formas superficiais de comportamento em moças e rapazes vinculados aos ocupantes; em contrapartida a adoção, pela plebe, do malandro, do pilantra, do desocupado da chanchada sugeria uma polêmica de ocupado contra ocupante”.

 

Examinando as chanchadas Miguel Chaia percebe que essas produções precisam ser entendidas enquanto produtos da indústria cultural; tais filmes devem ser vistos no interior de uma articulação entre vários ramos de comunicação dessa indústria, pois na linguagem da chanchada acham-se presentes elementos do circo, do carnaval, do rádio e do teatro. Os filmes de chanchada representam, na verdade, a primeira experiência de longa duração na produção de uma série de filmes para o mercado, sendo que suas condições de produção caracterizam-se por um esquema industrial que se auto-sustenta, utilizando técnicas pouco sofisticadas e com um custo bastante reduzido.

 

Na década de 50 – em que é realizada a maioria das chanchadas – observa-se o incentivo à industrialização brasileira, com o Estado investindo maciçamente em infraestrutura (principalmente em energia e transportes) e nas indústrias de base sob sua responsabilidade. Tal ação estimulou o investimento privado não só por lhe oferecer economias externas baratas mas também por lhe gerar demanda. Coube-lhe, além disso, uma tarefa especial: estabelecer as bases de associação com a grande empresa oligopólica estrangeira, definindo claramente um esquema de acumulação e concedendo-lhe generosos favores. Encontrando um esquema de acumulação bem definido em que se apoiar e gozando de amplos incentivos, a grande empresa oligopólica estrangeira decidiu investir no Brasil.

 

Dessa maneira, quando o setor industrial começa a se firmar como núcleo dinâmico da economia, observa-se um crescimento mais que proporcional das grandes cidades brasileiras, com um alto crescimento demográfico também decorrente das levas migratórias. Grandes cidades, grandes populações, constituição de um público disponível para o lazer: aí está o mercado potencial dos filmes da chanchada.

 


O início da década de 50 marca a volta de Vargas ao poder, agora eleito pelo voto direto e, logicamente, o prosseguimento de uma prática política que o Octávio Ianni chamou de “democracia populista”. Isso engendra uma estrutura de classes sociais tênues que, mesmo considerando-se a dominação do capital sobre o trabalho, abre um relativo espaço cultural e político às classes subalternas. Nota-se a presença das massas populares, dos operários e trabalhadores urbanos, dos homens do campo, de intelectuais e estudantes – ou sendo manipulados de cima para baixo ou pressionando em sentido contrário. Os anos 50 (e início dos 60) expressam, assim, a emergência de grupos urbano-industriais no cenário cultural e político do país bem como a tentativa de grupos dominantes no sentido de incorporar as massas populares ao jogo político.

 

A cinematografia brasileira representa pelas chanchadas, numa época de “abertura política relativa” (ou “abertura rabo de cabra”, segundo o velho Gregório Bezerra), não poderia deixar de – à sua maneira – constituir-se em mais um espaço disponível para marcar a presença do homem simples brasileiro. A chanchada consagrou o herói virador e desocupado, de bom coração e crítico do mundo que o cerca e, se quase sempre a participação política das massas significou concretamente manipulação, o populismo acabou por articular um modo de expressão das insatisfações populares. Exatamente nessa fase a chanchada consegue exprimir com fidelidade o clima da época. Jean-Claude Bernardet, apesar de considerar um assunto muito complexo a ideologia veiculada pela chanchada, não tem a menor dúvida em afirmar que eram filmes críticos, “filmes que conservam um tipo de sátira muito ligado à vida cotidiana”, levantando problemas do tipo “as cenouras aumentaram”, “o leite ficou mais caro”, problemas políticos municipais, de trânsito. São esses problemas que alimentam as piadas, alimentam as situações.

 

A partir de agora, utilizando-nos do trabalho de Miguel Chaia, de dois ou três artigos de Jean-Claude Bernardet, de outros de João Luiz Vieira e de Ney Santos Filho, pretendemos mostrar como os filmes de chanchada são ambíguos, pois ao mesmo tempo que definem um horizonte cultural nacional-burguês, veiculam claramente a concepção de mundo das classes subalternas.


A chanchada geralmente possui um tema básico, qual seja, a realização de um determinado objetivo em decorrência de um lance de sorte qualquer (herança, prêmio, sorteio, etc). A narração é então conduzida por um personagem que tem esse objetivo a ser concretizado por obra do acaso, como num passe de mágica, e não devido a qualquer esforço pessoal ou habilidade específica. A partir deste tema o filme se desenvolve através de uma série de confusões e conflitos para, no final, tudo se resolver harmoniosamente, com o herói saindo-se bem e os vilões sendo transportados num camburão para a delegacia mais próxima. Paralelamente à ação básica, desenvolve-se a ação do vilão, que procura apossar-se ou beneficiar-se do lance de sorte, e a ação do personagem-amigo, que ajuda a realização do objetivo colocado e também participa ativamente dos quiproquós.

 

Um rápido exame de algumas chanchadas permite confirmar o que foi dito antes. Em A Baronesa Transviada, a personagem principal (Gonçalina Piaçava, interpretada por Dercy Gonçalves) quer se tornar atriz cinematográfica e o consegue ao receber uma herança inesperada; O Camelô da Rua Larga é o caso de um camelô que tem sua mala de quinquilharias trocadas por outra semelhante contendo dinheiro. O Petróleo é Nosso fala de uma fazendeira sem dinheiro que se torna milionária através do petróleo encontrando em suas terras. Em Absolutamente Certo um gráfico recebe um prêmio num programa de televisão de perdas e ganhos e realiza seus desejos: comprar uma cadeira de rodas para o pai e casar-se.

 

O desenvolvimento do tema básico se dá através de um componente fundamental da chanchada: os incluídos e os excluídos da sorte que atingem os personagens. Para Chaia, na chanchada “o dinheiro é colocado como artifício que, quando ao alcance dos personagens, permitirá a realização do objeto ou solução do conflito. Face a este artifício caracterizam-se os incluídos e os excluídos na sorte”.

 

Os incluídos não se deixam corromper pelo dinheiro, utilizando-o apenas como um meio. Em A Baronesa Transviada a baronesa, mesmo herdeira, volta ao seu humilde trabalho de manicure; o camelô resiste a várias tentações, mas usa só uma pequena parte do dinheiro encontrado, guardando o restante. Os incluídos são, geralmente, os personagens principais e, devido a laços de amizade, parentesco ou vizinhança, introduzem outros personagens nesta categoria. Assim, um amigo ou o par romântico do filme também acabam por compartilhar do lance de sorte, por tabela.

 

Já os excluídos são, na maioria dos casos, os vilões ou bandidos que se colocam entre o personagem principal e o seu objetivo, procurando se apoderar meio na marra do lance de sorte. Nesse sentido a chanchada é maniqueísta, ficando claro desde logo os bons e os maus, sendo estes últimos punidos no final do filme – a menos que se regenerem e/ou se recomponham com os bons. Os excluídos de A Baronesa Transviada são os tios aristocráticos da herdeira que estão ansiosos pela morte da baronesa-mãe para herdarem sua fortuna. Em O Caçula do Barulho os excluídos são os componentes de uma quadrilha que faz tráfico de brancas; já em O Camelô da Rua Larga são os falsários e em Absolutamente Certo são os membros de uma quadrilha de apostas.

 

Um outro aspecto presente nas chanchadas também merece ser explorado, qual seja, sua virtude cômico-caricatural, elaborada numa perspectiva toda especial de recriação do real. Assim, situações e personagens são construídos através da comédia, da deformação do real, transfigurando-se a realidade social e aproximando o espectador do filme. É através do divertido e caricatural que a chanchada rompe com as convenções sociais vigentes: são criados alguns cenários, hábitos e comportamentos, além de serem feitas várias críticas. João Luiz Vieira, em seu artigo “From High Noon to Jaws: Carnival and Parody in Brazilian Cinema”, utilizando-se de trabalhos do antropólogo Roberto Da Matta, comenta que a linguagem do carnaval constitui o principal código cultural que anima e dinamiza a sátira da chanchada. O sistema de inversões que se opera durante o carnaval – por exemplo o fato de o negro morador de uma favela vestir-se como um rei, nobre ou outro soberano durante os quatro dias de carnaval, representando exatamente o oposto de sua vida ao longo do resto do ano – cria uma série de situações em que certos aspectos da estrutura social podem ser criticados e as diferenças existentes nesta estrutura podem ser melhor percebidas. Mas contando ou não com números musicais, as chanchadas acabam sendo associadas de imediato a um clima carnavalesco, em que aparecem críticas e observações frequentes sobre a vida política e administrativa da então Capital Federal, sobre a falta de eletricidade e de água, acerca do aumento dos preços dos alimentos, etc. Não são poupados os políticos com sua retórica populista, fazendo promessas mirabolantes, bem as diferenças de classe, a burocracia e seus burocratas e a situação dos negros na sociedade brasileira. O público acabava se identificando com esses temas, entendia a linguagem das chanchadas e as prestigiava em peso.


A preocupação com a sobrevivência ou com o cotidiano; a recuperação e a ênfase dada às origens rurais, à vizinhança e à amizade, bem como o contato com os valores urbanos, são os principais assuntos encontrados no discurso fílmico da chanchada. Conforme salientamos, a preocupação com o cotidiano faz-se sentir através dos reclamos contra a carestia, a inflação (a baronesa-herdeira chama o mordomo de “Dez Centavos”, porque ele é “redondo, chato e não vale nada”) e a inexistência de infra-estrutura urbana. Quanto à preocupação com a sobrevivência, o camelô de O Camelô da Rua Larga não consegue trabalhar porque está sempre fugindo da polícia, está na iminência de ser despejado da pensão porque o aluguel está atrasado e ainda, por não ter dinheiro, ter de aguentar as pressões da noiva, que há mais de dez anos espera pelo casamento. Em Absolutamente Certo o mocinho (que é gráfico) quer resolver os problemas de sua casa (evitar que o pai continue trabalhando demais e comprar-lhe uma cadeira de rodas) e com sua noiva, pois chega a ser expulso de casa pela mão da noiva que só irá permitir sua volta quando tiver dinheiro para se casar.

 

A recuperação das origens rurais e a ênfase dada aos valores ligados à amizade e vizinhança também perpassam quase todos os filmes. Normalmente o amigo é vizinho e vice-versa. No nível das unidades narrativas são mostrados, igualmente, os assombros dos personagens face a certos costumes urbanos, como por exemplo a recusa ou a não adaptação face à burocracia, posição contrária frente à corrupção e a propensão para a assimilação de certos valores urbanos, sendo o mais expressivo o contato com a televisão, implantada há poucos anos.

 

Nesse sentido é que se pode afirmar que em seus filmes a chanchada trata da vivência do homem simples brasileiro pertencente à condição de classe subalterna – e não como participante ativo de uma classe operária com projeto político. Era essa, na verdade, a condição efetivamente experimentada pelas massas populares brasileiras nos anos 40, 50 e parte dos 60, antes do fim da era populista, em 1964. O homem simples da chanchada é o homem urbano ou então o simplório de origem rural que se encontra frente a uma nova situação, qual seja, a urbana.

 

Nos filmes de chanchada observa-se, então, um estilo de vida dos personagens baseado na noção de honra social, não importando se tais personagens são proprietários ou ricos, mas sim que pautam suas ações em função de certas convenções e de comportamentos calculados previamente. E é com base em certas características compartilhadas que se qualifica ou se desqualifica o personagem, remetendo-o ao esquema de inclusão-exclusão social, tendo como referência um determinado código de honra. O personagem simples da chanchada tem sua existência mais próxima de uma ordem social estamental do que uma estrutura de classes. Para Miguel Chaia, é um universo estamental mesclando-se com fundamentos de classes que acaba caracterizando personagens como a manicure, o camelô, a atriz, ricos sem posse, desqualificados, pretendentes ao estrelato, etc. que são os elementos disponíveis na sociedade e cujas condições de existência e objetivos colocam-se diretamente no nível do estabelecimento de um círculo de relações sociais e não no nível do processo produtivo ou do político.

 

As situações criadas nos filmes, de modo geral, não se situam no interior de um processo de produção (e portanto de existência) capitalista. Os personagens movimentam seus valores tradicionais e até rurais, carregando os valores coletivos de família, vizinhança, parentesco e trabalho. São, em suma, agentes que não assimilaram a individualização da sociedade urbano-industrial, mas nem por isso são esmagados ou achatados pelas relações que se estabelecem no interior dessa sociedade. Quando os personagens trabalham (sim, porque não são todos que partem para o sacrifício), não são operários do sistema, configurando-se assim muitas vezes o trabalho marginal. Não se observa, igualmente a valorização do trabalho como fator de produção capitalista e tampouco a postura puritana de valorização do trabalho, sendo que o sentimento da ação dos personagens principais e alguns secundários da chanchada está defasado no sentido imprimindo à sociedade “através do processo ideológico dominante expresso pelo desenvolvimentismo. São seres cujas existências não se enquadram no padrão burguês estabelecido para o desenvolvimento urbano-industrial vigente na sociedade brasileira mesmo nas décadas de 50 e 60. São seres que não participam do pacto social estabelecido entre grupos sociais naqueles anos: não são protegidos por legislações sociais ou trabalhistas, não mercantilizam sua força do trabalho”. Em suma, a chanchada trata dos simplórios que não entram no jogo desenvolvimentista; de pessoas que não têm um projeto de vida (e/ou político) que vá além de viver o dia-a-dia, de ir se arrastando e sobrevivendo. De fato, não há lugar dentro do jogo desenvolvimentista para camelôs, empregadas domésticas, mulherengos, preguiçosos, malandros, donas de pensão, manicures, barbeiros, etc.


O sucesso popular e o direcionamento da chanchada devem-se em boa parte ao desempenho de vários dos atores e atrizes principais, capazes de dar sua parcela de contribuição efetiva na recuperação para as telas dos valores do homem simples brasileiro. Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves, Zé Trindade, Violeta Ferraz, entre outros, eram atores que guardam grandes heranças populares, acrescentando muitas vezes passagens de suas vidas modestas e cheias de dificuldades aos papéis que interpretavam. A origem artística da maioria deles remonta ao circo, ao teatro de revista, ao rádio, tendo percorrido árduos caminhos até se tornarem famosos (mas sem muito ou com pouco dinheiro) com as chanchadas. Talvez algumas breves considerações sobre a trajetória artística de Oscarito – sem dúvida alguma o astro mais popular das chanchadas – ilustrem melhor o que acabamos de afirmar.

 

Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Tereza Dias, o Oscarito, nasceu em Málaga, Espanha, em 16 de agosto de 1906 em um circo em trânsito. Seus pais eram trapezistas nesse mesmo circo, onde Oscarito estreou aos 5 anos no papel de um índio, em O Guarani, de Carlos Gomes. No circo foi violonista da bandinha, acrobata e palhaço. Anos depois, já no Brasil, fez teatro de revista e comédias de costumes, tendo atuando nessa área durante muito tempo, antes de dedicar-se ao cinema. Oscarito foi lutando pela vida nos circos e teatros mambembes ambulantes no interior do país; essa foi a base de seu estilo como comediante, o domínio do corpo, a sátira, a paródia, a avacalhação de tudo que fosse sério e comportado. Ney Santos Filho transcreve um trecho do depoimento que Oscarito concede para o Museu da Imagem e do Som (1968), onde conta um pouco de sua história, sendo suas palavras semelhantes às de muitos personagens que interpretou ao longo de dezenas de chanchadas: “Vim para cá pequenino e sofri mais que sovaco de aleijado. Mas também fui aplaudido como jogador de futebol e mais criticado que Presidente da República. E ainda tive que me virar na vida como malandro. Logo, o que eu sempre fui mesmo é brasileiro”.

 

A maioria dos papéis interpretados por Oscarito foi a do herói malandro e virador. Oscarito, quando trabalhava, o fazia nas mais modestas profissões: varredor ou faxineiro das boates ou teatros onde aconteciam as ações dos filmes. Ele correu de bandidos e da polícia, engoliu lista de jogo do bicho, se vestiu de mulher e de bebê. Satirizou muitas pessoas famosas na época, tais como Getúlio Vargas, Rita Hayworth, Gary Cooper: caricaturou Hamlet e Romeu e Julieta, chegando inclusive a imitar o miudinho Harpo Marx na sequência do espelho do Hotel da Fuzarca, fazendo com Eva Todor a sua própria imitação, bem como a de Elvis Presley, de guitarra, topete e calça Lee, dançando rock. Oscarito tinha aquilo que sempre foi raro na cultura brasileira, tendo sido mencionado várias vezes por Paulo Emílio Salles Gomes, qual seja, a capacidade criativa em copiar – e Oscarito era o elemento desestruturador na ordem interna das chanchadas, principalmente as da Atlântida. Oscarito e alguns diretores mais criativos como Watson Macedo, Carlos Manga e José Carlos Burle faziam uma espécie de apropriação do modelo estrangeiro – ou, nas palavras de Bernardet, operavam uma antropofagia -, devolvendo-o ao público brasileiro na forma de uma paródia bem-humorada, satirizando aspectos do cotidiano do homem simples brasileiro e da vida política nacional.

 

Um dos melhores exemplos do que se afirmou acima pode ser encontrado em Nem Sansão Nem Dalila, já comentado nas páginas finais do capítulo anterior. Nesse mesmo 1954 (uma vez que Nem Sansão...é desse ano) Carlos Manga também dirigiu Matar ou Correr, paródia do clássico High Noon, de Fred Zinnermann. Na “versão brasileira” os papéis principais estão a cargo de Oscarito e Grande Otelo, sendo que José Lewgoy interpreta o bandidão. A cópia dos modelos de Hollywood, neste caso, é quase perfeita: montagens, cortes, enquadramentos, diligências e faroeste – tudo isso feito em Jacarepaguá! A versão de Manga mostra dois vendedores ambulantes (Oscarito e Grande Otelo) que chegam à cidade vendendo uma bebida vagabunda qualquer, pura trambicagem: por acaso, Oscarito prende o bandido, inimigo público número 1 do local, e é logo nomeado xerife. Mas um xerife medroso, sem a coragem e a firmeza de Gary Cooper. Mas tarde o bandido foge e promete voltar para vingar-se de Oscarito. O filme prossegue, com as gags e gozações habituais, e chegada a hora do duelo final, Oscarito chora, reza, pede ajuda à mamãe e num lance de sorte (mero acaso...) o bandido acaba sendo derrotado por ele.


O acaso e a exploração da política internacional – a guerra fria entre russos e americanos – estão em O Homem do Sputnik (Carlos Manga, 1959): um sputnik cai no galinheiro de Oscarito, tornando-o rico da noite para o dia, e ele passa a ser avidamente disputado pelas grandes potências mundiais. Já o cotidiano do homem simples brasileiro, de fácil identificação com o público, foi várias vezes explorado em filmes de Zé Trindade, outro grande herói das chanchadas. Ele geralmente interpreta a figura do virador, do funcionário público vadio, que não gosta de trabalhar e pouco aparece na repartição. Acaba surgindo então uma situação-chave: Zé Trindade, por causa de uma mulher opressora (que pode ser a esposa ou sogra), foge do esquema familiar, indo à procura de outras mulheres. Assim, vai a boates, a bailes, abre um salão de beleza ou de massagens, estando sempre cercado de mulheres. Durante todo o filme ele circula entre a esposa (ou a sogra) e as tais mulheres, sendo que no final volta para a mulher originária, que desencadeou todas essas ações. Volta, reconhece que a mulher não é tão ruim assim e adia para outra ocasião, sempre de bom humor e dando tchau para a plateia , seus planos de emancipação dessa esfera familiar que o oprime.

 

Watson Macedo foi também responsável por significativos exemplares do gênero, tais como Não Adianta Chorar, Este Mundo é Pandeiro, Carnaval no Fogo, Aviso aos Navegantes, O Petróleo é Nosso, A Baronesa Transviada, etc. Vários de seus trabalhos têm uma estrutura de filme policial clássico, com perseguições, lutas, intrigas. Revela Jean-Claude Bernardet que Macedo via muitas fitas estrangeiras e fixa-se em algumas, acompanhando suas exibições pelo vários cinemas da cidade – isso quando não podia vê-las na moviola. Uma das chanchadas que mais marcou Bernardet foi Carnaval no Fogo (1949), com Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Lewgoy, Eliana. Neste filme está presente o seguinte esquema, comumente utilizado por Watson Macedo: a comédia é criada a partir do fato de que um objeto pertencente a alguém será perdido e posteriormente encontrado por outra pessoa. Como o proprietário é caracterizado pelo objeto, as características do primeiro passam para o segundo. Carnaval no Fogo é assim: uma quadrilha aguarda seu chefe, que ela ainda não conhece. Ele deverá ser identificado pelo porte de um determinado objeto que define o personagem para os outros. “Perdendo o objeto, o personagem perde os seus atributos. Atribuindo-se o objeto, qualquer outro personagem adquire também os atributos do primeiro portador (...) Estes personagens qualificados por objetos, pura exterioridade, vivem num mundo reificado ao extremo”. Após ser criada toda a confusão, a comédia prossegue normalmente, limitando-se a verificar o que acontece em função dessa distorção.

 

Carnaval Atlântida (1952), de José Carlos Burle é um dos melhores filmes onde se pode perceber a relação entre a paródia, chanchada e carnaval. A paródia surge então como uma resposta do cinema colonizado, subdesenvolvido, através do gênero chanchada – que por sua vez se insere no universo carnavalesco. Em Carnaval Atlântida, há o filme dentro do filme: o diretor Cecílio B. de Milho (lembram-se de Cecil B. de Mille?) tem a intenção de filmar o épico Helena de Troia no Brasil, projeto esse logo abandonado com o implícito reconhecimento de que o cinema nacional não comporta temas sérios (entendendo-se por “sérias” as superproduções norte-americanas, com muitos extras e cenários grandiosos). Assim, a história de Helena de Troia é substituída por um filme de carnaval e o ambicioso projeto original fica para ser feito mais tarde. Regina (Eliana), a filha de De Milho, convence-o de que o povo não quer temas históricos (coisa séria, algo a ser entendido apenas por uma elite, domínio da cultura erudita); o povo quer é saber do presente, que é o carnaval (domínio da cultura popular). Não é por acaso que o Professor Xenofontes (Oscarito), um erudito, autor de muitos livros de História e consultor de costumes do filme original, abandona seus livros, parece que se despoja de sua refinada formação cultural e cai nos braços de uma rumbeira cubana (Maria Antonieta Pons), o estereótipo da mulher sensual e bonita, que leva os homens à perdição. Dito e feito: minutos depois vemos Oscarito dançando rumba e transformado num debochado carnavalesco.


Carnaval, paródia, homem urbano brasileiro, política e realidade sócio econômioca: esses os temas favoritas das chanchadas, principalmente as da Atlântida. Tudo, é lógico, com muita malandragem e com o inigualável humor carioca.


A partir da chanchada é que a realidade nacional começou a aparecer nas telas, embora de maneira tímida, e o homem simples brasileiro passou a se comunicar com as grandes multidões que com ele se identificavam, através de atores e atrizes que já tinham alcançado certa popularidade no rádio e no teatro de revista.

 

Os críticos uivavam a cada novo lançamento carioca, e frases do tipo “mais um abacaxi nacional!” ou “descemos a nível de cloaca!” eram corriqueiras. Carlos Manga conta ao jornalista Carlos Heitor Cony que o crítico Antônio Moniz Vianna resumiu sua opinião sobre seus filmes numa única frase: “Caiu mais uma manga”. Quando Manga lançou Carnaval de Brotos (1956) pela Atlântida, a crítica não perdoou, meteu a ronca. Moniz Vianna achou o filme muito ruim, chegando a insinuar que o dono da Atlântida ou Manga, um dos dois era homossexual: “O que é que está havendo entre esses dois?”, perguntava atônito.

 

Mas a ira dos críticos não influenciava o grande público, que praticamente não lia jornais – e quando lia, estava mais interessado nas páginas policiais ou nas manchetes políticas. Além disso, em filme nacional não se precisava ler letreiro, bastava ser todo ouvidos.


Atrações não faltavam: Ângela Maria, Nélson Gonçalves, Jorge Veiga, Cauby Peixoto, Carlos Galhardo, Dircinha Batista, Trio Irakitan, Quatro Ases e Um Coringa, Francisco Alves, Marlene, Emilinha Borba, Francisco Carlos, Ciro Monteiro, Blackout, Elizete Cardoso, Orlando Silva cantavam seus sucessos mais recentes. John Herbert, Anselmo Duarte e Cyll Farney derretiam os corações das moçoilas casaidoras. Eliana Macedo, a “nossa querida Eliana”, liderou o elenco em 23 produções, quase sempre interpretando a mocinha ingênua, bonitinha e carinhosa, que os machões adorariam ter em casa.

 

Mas o filé-mignon, sem dúvida, ficava com os grandes apresentadores, os mestres da confusão: Oscarito, Grande Otelo, depois Ankito, Costinha, Zé Trindade ou Dercy Gonçalves. Eles desencadeavam todas as confusões, eram amigos do mocinho e da mocinha, ajudando-os a combater os terríveis bad men, encarnados por José Lewgoy, Wilson Grey e Renato Restier (depois Jece Valadão entrou para reforçar o time). Quando as duplas Oscarito-Grande Otelo e Lewgoy-Wilson Grey se enfrentavam, o cinema quase vinha abaixo, e a criançada berrava. Mas, no fundo será que alguém acreditava que Lewgoy era vilão?

 

Boa parte dos homens, durante certo tempo, dava o dinheiro e despachava a patroa com as crianças para as matinês nos fins de semana – dias importantíssimos, consumidos entre intermináveis goles de Brahma e lances de Vasco, Flamengo, Fluminense, Corinthians, Palmeiras e outros menos cotados. Entretanto, depois de algumas constatações elementares, os produtores de chanchadas descobriram a fórmula infalível de trazer a família inteira para as salas escuras: era necessário deixar à mostra as bem torneadas coxas de Cuquita Carballo e Maria Antonieta Pons, importadas diretamente da Pelmex. E assim tudo entrava nos eixos: família unida, receita garantida.

 

Foi graças às chanchadas e à receptividade alcançada junto ao grande público que a indústria brasileira de filmes conseguiu sobreviver, apesar da enorme concorrência estrangeira. Mas apenas sobreviver, conforme lembra o crítico Sérgio Augusto, porque mesmo no auge das chanchadas – na primeira metade dos anos 50 -, o cinema brasileiro ocupava somente 6% do mercado exibidor.

 

Publicado originalmente em CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Col. Tudo é História, número 76).

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