domingo, 6 de junho de 2021

Cineastas brasileiros em PBY: Entrevista com Fábio Barreto (janeiro de 2010)

Playboy entrevista Fábio Barreto

 

Uma conversa franca com o diretor do melodrama Lula, o Filho do Brasil sobre o uso eleitoral do filme, perseguição da crítica, influência polícia, César Benjamin, omissões no roteiro, fracasso em Hollywood e sua obsessão em ganhar o Oscar

Desde a indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro por O Quatrilho, em 1995, o cineasta Fábio Barreto não experimentava o doce sabor dos holofotes. Foram 14 anos de ostracismo e alguns fracassos até que ele se tornasse o diretor de cinema mais badalado do país graças ao filme Lula, o Filho do Brasil, que narra a trajetória do presidente da República desde o nascimento até a morte da mãe. No fim de 2009, certamente não havia no país cineasta mais requisitado para entrevistas, debates e eventos do que ele. Fábio estava confiante que Lula representava uma retomada profissional e por isso dizia, com segurança desconcertante, “Eu sou o cara”.

 

O curioso na autoconfiança que Fábio exibia no fim do ano era o fato de seu filme estar no centro de uma polêmica política e cinematográfica que não lhe rendia, exatamente os mais fortes aplausos. Em todas as entrevistas que concedeu e em todos os discursos que fez nas aberturas de festivais e pré-estreias, Fábio defendeu-se da acusação de ter produzido não um filme, mas uma peça de marketing político feita sob medida para enaltecer a figura do presidente e, assim, favorecer o candidato oficial na corrida deste ano ao Palácio do Planalto. Fora isso, o longa foi metralhado sem meias palavras pela crítica especializada. Segundo o jornal O Globo, o filme tem “dramaturgia limitada” e constrói “uma personalidade exageradamente heroica” de Lula. O jornal O Estado de S. Paulo destacou que “os diálogos são muito fracos”.

 

Nenhuma das críticas e acusações, no entanto, parecia capaz de abalar a excitação de Fábio Barreto. Há seis anos, quando anunciou que faria um filme sobre a vida do presidente, ele foi advertido de que os ataques viriam e de que os riscos de o trabalho dar errado seriam grandes. Apegou-se, então, a uma frase do presidente Lula – “Só me prometam uma coisa, que vocês vão confiar em vocês mesmos” – e tocou a empreitada, a mais cara da história do cinema nacional: ao todo, foram gastos 16 milhões de reais entre produção e comercialização. Na tentativa de evitar críticas, não captou recursos por meio de leis de incentivo à cultura. Conseguiu patrocínio direto de empresas, mas não evitou o tiroteio. Foi acusado de ter feito uso da máquina do governo a fim de sensibilizar os empresários para liberar a chave do cofre.


Filho do meio do “casal 20” do cinema nacional, Fábio tem 52 anos e é casado com a atriz Deborah Kalume (sua terceira mulher). Tem quatro filhos e dois netos. Antes de dirigir seus próprios filmes, atuou como assistente do irmão Bruno em três trabalhos, incluindo Dona Flor e Seus Dois Maridos, de 1976, recorde inquebrantável de público do cinema nacional com 12 milhões de espectadores. Sua estreia na direção ocorreu em 1982, com Índia, a Filha do Sol, estrelado por Glória Pires – que agora interpreta dona Lindu, mãe de Lula. O auge da carreira ocorrei com a indicação ao Oscar de O Quatrilho. “Na época, fiquei mesmo deslumbrado”, reconheceria. Seguiu-se então uma coleção de fracassos: Bella Donna (1998), A Paixão de Jacobina (2002), Nossa Senhora de Caravaggio (2006), além da adaptação do seriado Donas de Casa Desesperadas (2007) para a Rede TV!. Com Lula, o Filho do Brasil, Fábio pretendia reverter a má sorte.

 

A família Barreto estava certa de que começaria 2010 em grande estilo, com a estreia do filme em grande estilo, com a estreia do filme marcada para o primeiro dia do ano, mas foi surpreendida por uma tragédia. No dia 19 de dezembro, Fábio capotou sua Mitsubishi Pajero ao voltar do aeroporto na zona sul do Rio de Janeiro. Deu entrada no Hospital Miguel Couto em estado grave, com traumatismo craniano. Foi submetido a uma cirurgia de emergência e, no dia seguinte, transferido para o Hospital Copa D´Or, onde sofreu novas intervenções. Até o fechamento desta edição, o quadro de Fábio era grave, mas estável.

 

Dezessete dias antes do acidente, um expansivo Fábio Barreto recebeu a PLAYBOY para esta entrevista. Numa bagunçada sala da produtora LC Barreto, no Rio de Janeiro, ele respondeu com bom humor um questionário de mais de 100 perguntas, interrompendo o papo apenas uma vez para fumar um cigarro. Não se abalou nem mesmo quando a editora Adriana Negreiros sugeriu a uma comparação entre ele e alemã Leni Riefenstahl, cineasta da era nazista famosa pelos filmes de propaganda de Adolf Hitler.


 



Se dermos um Google com a combinação “Fábio Barreto” e “Leni Riefenstahl”, aparecem mais de 700 ocorrências. A comparação entre vocês dois faz sentido?

(Risos). Nenhum sentido. Leni...Eu tenho até admiração por ela como cineasta, pela qualidade dela, mas eu não tô fazendo propaganda de nenhum regime, de nenhuma ditadura, ainda mais nazista. Não é um filme de propaganda política, ou eu teria cobrado 1 milhão de vezes mais do que cobrei. Não acho que ao film desse filme as pessoas vão sair dizendo que vão votar em Sicrano ou Beltrano.

 

E você? Vai votar em Dilma Rousseff (ministro da Casa Civil e favorita de Lula na disputa presidencial)

Olha, o meu voto é secreto, e eu me reservo o direito de não dizer em quem vou votar. Neste momento não é conveniente entrar nessa seara. Eu já estou sendo tão atacado...

 

O fato de as pessoas criarem simpatia pelos protagonistas de seu filme não faz com que elas fiquem mais propensas em votar na candidata dele?

Não, porque ali não tem a performance dele como presidente da República. Tem ele até 1980. O filme não entra no mérito de julgá-lo, e é isso que a pessoa deve fazer ao avaliar seu voto. Eu fiz esse filme em homenagem ao povo brasileiro. Esse filme conta a luta pela sobrevivência de milhões de brasileiros. Na vida de qualquer ser humano, seja ele quem for, desde o milionário Eike Batista...

 

O Eike Batista?

Ah, vamos dizer que o Eike Batista não tem problema para sobreviver? Não tem problema material, claro, mas e os espirituais? Uma pessoa sobreviver a ter uma vasta fortuna é muito difícil. Se é tudo muito fácil materialmente pra ela, e a vida espiritual da pessoa, como é que fica?

 

Você não pensou em esperar para lançar o filme depois das eleições?

A gente tinha de ter o dinheiro de volta. O filme deveria ter sido lançado um ano atrás, mas fomos tombados por uma crise financeira mundial que atrasou nossa captação de recursos. Não foi proposital. Mas não podíamos ficar com filme parado durante um ano na prateleira só por causa da eleição.

 

Você sentiu alguma reação negativa por parte de seus colegas cineastas quando anunciou que faria um filme sobre Lula?

Não, ninguém falou nada. A imprensa falou, não os meus colegas. Quer dizer, teve uma entrevista na PLAYBOY do Fernando Meirelles (em setembro de 2008), mas eu mandei uma cara pra ele, estranhando aquilo, e ele me mandou uma de volta, que foi publicada na revista se retratando.

 

Você ficou chateado com o Meirelles?

Ele tem todo o direito de dizer o que acha, entendeu? Mas eu achei estranha a postura dele. Eu conheço o Fernando, já o defendi em debates, quando acusaram Cidade de Deus de ser uma cosmética da fome. Mas às vezes a gente fala besteira. O importante é que ele reconheceu isso depois.

 

Você tem dito reiteradamente que seu filme é um melodrama. Em sua opinião, essa é a razão pela qual ele não agradou a boa parte da crítica?

A única parcela da crítica que se manifestou contra até agora foi um artigo na Folha de S. Paulo de um sujeito que nem é crítico de cinema. Uma coisa virulenta, raivosa, na qual ele chama minha família de vulgar.

 

Você se refere à matéria escrita pelo jornalista Fernando de Barros e Silva em que ele define o filme como “incrivelmente ruim”?

Esse mesmo. Não considero uma crítica. Dizer que a Glória Pires sabe fazer telenovela...A pessoa começa a ler aquilo ali e já para no meio, vê que a pessoa tem algum problema, tá alterada. Então você não pode generalizar, porque eu li tudo sobre o filme e não há nada além daquilo ali. Quer dizer, tem aquela matéria da Veja, tem o Diogo Mainardi falando do meu pai. Esse menino, coitadinho, é tão triste...Eu tenho prazer em falar isso: o Diogo Mainardi é medíocre. Quer estar o tempo todo comendo no restaurante Fasano e se encontrando com gente muito rica, com príncipes, princesas, pra “se sentir”, sabe? Isso existe no Brasil, entendeu?

 

Isso o quê?

O que existe no Brasil? Uma elite que quer se eternizar com um bando de miseráveis mortos de fome a seus pés. E que não admite absolutamente que esse bando de miseráveis venha para a classe média. Pô, hoje a classe média é quase 60% da população. A renda está sendo redistribuída. E essas pessoas ficam muito abaladas com isso porque querem ser os reis, querem ser a elite inabalável no seu trono. São essas pessoas que combatem a cultura brasileira.

 

Bem, além da Folha e da Veja, há outros veículos que fizeram críticos a seu filme, como o Globo e o Estadão. E um ponto comum às críticas é a observação de que o presidente Lula é retratado de forma heroica, quando poderia ser um personagem mais complexo. O que você acha disso?

Acho que isso pode proceder. Muita coisa ficou fora do filme porque era fraca dramaticamente. Mas ali tem um personagem exposto em seus momentos de fraqueza? Tem. Você vai dizer que, quando ele passou a mão suja de óleo no macacão, ele enganou a mãe? Tem um lado ali, o cara se sujou para mostrar que estava trabalhando! Ele era um adolescente e queria se exibir pra mãe. Não tô indicando isso, mas existem coisas dentro do filme que você pode dizer que ali a pessoa derrapou.

 

Por exemplo?

A prensa que ele dá no presidente do sindicato. Aquilo ali é uma maneira, vamos dizer, bastante brutal de passar por cima de alguém. Você pode dizer: “Pô, mas precisava disso?”. Ali você mostra uma truculência política no cara. É claro que o ideal é a gente botar toda a ambiguidade que o personagem possa ter, mas é difícil. Eu não tive elementos na vida dele, algum fato que realmente desaprovasse a fundo a conduta dele. Mesmo o episódio da filha, que a gente foi obrigado a tirar porque ela não autorizou (refere-se a Lurian, filha que Lula teve com uma namorada, Miriam Cordeiro, caso que foi usado na campanha presidencial de 1989 pelo então candidato Fernando Collor de Mello. Na época, Mirian contou na televisão que Lula lhe pediu que fizesse aborto).

 

Vocês chegaram a colocar o caso no roteiro?

Estava no roteiro. Tava lá dentro. Não e menina, as duas, não autorizaram. Era uma questão abertamente tocada no filme, mas não colocamos porque depois a mulher iria interditar o filme. Ou querer uma fortuna.

 

Como o episódio estava no roteiro?

Como aconteceu. A moça aparece grávida e ele diz: “Não sei se quero, acho que não”. E a mãe dizia que ele tinha uma responsabilidade ele dizia: “Se vier, vou registrar”. Na época em que o Collor levantou isso, a menina era registrada, sempre recebeu pensão.

 

A maior polêmica surgida a reboque de seu filme diz respeito à acusação feita pelo colunista da Folha de S. Paulo César Benjamin de que o presidente Lula teria tentando abusar sexualmente de um garoto enquanto estava preso no Dops, o tal “menino do MEP”. Como você se posicionou em relação a esse assunto?

(Pausa.) Deixa eu ver como é que eu vou falar sobre isso...O que aconteceu foi que tinha um marqueteiro americano no almoço e o Lula quis sacanear o cara. Ele contou essa história de brincadeira para chocar o americano. E aí esse cara (César Benjamin), não sei por que cargas d`água...Esse cara não é boa bisca, ele já processou a gente em O Que É Isso, Companheiro? (dirigido por Bruno Barreto, irmão de Fábio, em 1997). É uma pessoa que vive querendo aparecer, é um ressentido. E aí a imprensa, no caso a Folha, dá esse destaque. A Folha tem problemas e algum objetivo com isso. A Folha de S. Paulo tá mal. O Otavinho (Otávio Frias Filho, diretor de redação) pegou o jornal que o pai tanto trabalho teve pra botar onde botou e tá afundando. E tá querendo chamar atenção por meio disso pra que alguma coisa seja feita pro jornal virar vítima e conseguir se reerguer. O problema é que eles estão falidos.

 

Por que o César Benjamin processou vocês?

Não sei exatamente, mas sei que ele tava ali num bolo de gente que se achava maltratada no filme do Bruno.

 

Ele é retratado no filme?

Não. Mas ele tentou insuflar as pessoas a se voltar contra o filme. É um cara que vive tentando se promover. Então ele inventou uma mentira.

 

O presidente Lula gosta de fazer piadas. É de se supor que, no encontro com o elenco, ele tenha feito algumas brincadeiras com Rui Ricardo Dias (intérprete de Lula), com Cléo Pires (que interpreta Lourdes, primeira mulher do presidente) e Juliana Baroni (como dona Marisa). Isso realmente aconteceu?

Até a dona Marisa! O Rui estava muito tímido com ela, sabe? Até ela pegou ele, agarrou e disse: “Ah, tu fica agarrando todo mundo, por que não pode me agarrar também? Deixa de ser babaca, vem cá!” E o Rui: “Olha o presidente...” (Risos.) O Lula ficava brincando: “Venham cá, minhas Marisas, venham cá!” E também falou para a Cléo: “Pô, Lurdinha tu ressuscitou bem, hein?” Fica esse clima de descontração. O Lula é uma pessoa que tá sempre de bem. Nunca vi, sabe? Mesmo quando eu o conheci em campanha. O sujeito que passou o que ele passou na vida...O próprio irmão dele, o Frei Chico, diz que nada abala o Lula. Quando ele faz que tá irritado, é só uma atuação.

 

Colocar uma atriz bonita como a Cléo Pires como primeira mulher de Lula não é forçar um pouco a barra?

Não. Escolhi a Cléo porque ela é muito parecida com a Lourdes. A Lourdes era muito bonita mesmo. O irmão dela, inclusive, disse que ela era ainda mais bonita que a Cléo.

 

Mas o filme dá um desconto para dona Maria na cena em que Lula diz a ela que nunca esteve perto de mulher tão bonita.

Ele é um sedutor, né?

 

Nota-se que você tem bastante admiração pelo presidente Lula. Votou nele?
Votei, votei. Eu conheço o Lula tem muito tempo. A primeira vez que ouvi a voz dele foi no rádio, em 1977. Me emocionou, me tomou. Eu não sabia bem quem ele era, ouvi a voz e me arrepiei. Falei: “Uau! Agora, vai mudar, vambora!”. Porque era alguém falando contra o governo no rádio. Daí pra frente me encontrei com ele muitas vezes.

 

Em que oportunidades?

No ABC, na época da greves, em debates eleitorais. Eu tenho admiração por muita gente, pelo Fernando Henrique, pelo José Serra (governador de São Paulo e pré-candidato à sucessão de Lula). Pelo Aécio (Neves, governador de Minas Gerais), pelo Ciro (Gomes, deputado federal pelo PSB). Eu acho que eles só colaboram para elevar o nível da política. E o Lula, na minha opinião, tem uma contribuição para o Brasil que é a de libertar o brasileiro de um complexo de inferioridade secular. Essa coisa de ser povinho, terceiro mundo.

 

Seu pai, o produtor Luiz Carlos Barreto, é bastante hábil nas relações políticas. Você herdou isso dele?

Eu aprendi muito com meu pai e tenho essa habilidade dele, essa coisa pragmática, conciliadora, política. Mas, quando chega a hora de ir pro pai, vamos pro pau também.

 

Ainda sobre seu pai, ele é amigo do ex-ministro José Dirceu e do senador José Sarney, entre outros integrantes da classe política. Essa proximidade com os políticos não compromete a liberdade de criação de um artista?

Absolutamente. A gente tem de estar próximos dos políticos para eles fazerem o que a gente quer, pra passar os nossos projetos no Congresso. Políticos passam, o cinema fica, entendeu? A gente tem, sim, de ter relações. Tivemos relações, por exemplo, com a ditadura militar. E nós conseguimos fazer o cinema sobreviver porque tivemos relações com eles. Eles são o poder, e a gente precisa do poder pra conseguir fazer o que a gente quer. Entendeu?

 

Entendi.

E não implica em nada que a gente vá de fazer concessões.

 

A propósito de políticos passaram e o cinema ficar, digamos que, nas próximas eleições, José Serra se eleja presidente. Você não teme que seus projetos sejam barrados por ter feito um filme sobre Lula?

Deixa eu te dizer, meu amor. Eu, no governo Lula, concorri a vários editais – Petrobras, BNDES – e nunca entrei. Eu fui marginalizado pelo governo Lula. Eu e o Bruno nunca tiramos nada porque a família Barreto não precisa de incentivo fiscal, não precisa de imprensa estatal investindo, entendeu?

 

A que você atribui isso?

Ah, houve uma política, a chamada política de descriminalização positiva. Ou seja, tá na hora de dividir o bolo, pulverizar e deixar a elite de fora, porque a elite já pode usufruir disso etc e tal. Só que aí não é política de mercado, e por isso o cinema regrediu em termos de mercado no governo Lula. No primeiro ano do governo Lula nós tivemos 23% de mercado, que foi fruto ainda do governo Fernando Henrique. Nos anos seguintes o número foi caindo e só voltou a subir em 2009. No fim do governo Lula vai subir de novo no mercado, graças a Deus. Mas eu não acho que vá ser marginalizado. Eu sou um cineasta que tem um passado. E, além disso, eu tô trabalhando pra não precisar de incentivo fiscal pra fazer meus filmes.

 

A respeito de incentivos fiscais, você informa logo no começo do filme que ele foi feito sem nenhum centavo proveniente de leis de incentivo.

(Interrompe). E ainda ficam falando mal. O que querem, então? Tem incentivo, falam mal; não tem, também falam mal? Ah, porque as empresas têm contrato com o governo...Qual é a empresa no Brasil que não tem contrato com o governo? Você entendeu? Por que não botam a Rede Globo na lista? Ela é investidora do filme.

 

O fato de seu filme ter sido feito sem dinheiro de renúncia prova que o cinema brasileiro pode funcionar sem ela?

Claro. A gente construiu uma indústria que tem solidez e competitividade suficientes pata não precisar de ajuda fiscal.

 

Leis de incentivo devem acabar?

Lógico. Incentivo fiscal tem de acabar. O defeito do incentivo fiscal é que a coisa fica ali sem precisar dar retorno, o cara faz e acabou. Faz pra meia dúzia, pra mostrar na casa dele. Com isso eu não tô negando a necessidade de um cinema de arroubo autoral, de um cinema mais a fundo perdido. Existe essa necessidade.

 

O fato de seu filme ser sobre o presidente Lula ajudou na captação dos recursos sem renúncia fiscal?

Não pelo fato de ser o presidente, mas pela história dele. Quem não quer estar ligado a história de um vencedor? Isso interessa para a empresa. Não é porque é o Lula. A Veja escreveu que todo mundo tem contrato com governo como se fosse uma coisa imoral. Imoral é o que eles falam do Brasil e dos brasileiros. Deveriam olhar para o próprio rabo.

 

Segundo a Veja, alguns políticos ligados ao Palácio do Planalto sugeriram mudanças na trilha sonora em exibição que você fez para eles.

Isso jamais aconteceu. A Veja também disse que o Franklin Martins (ministro da Comunicação Social) foi quem mais captou recursos para o filme. Transformaram o cara, de ministro, num captador de recursos, querendo baixar a bola do filme. Nunca estivemos com o Franklin. Inclusive na pré-estreia, em Brasília, eu estava saindo do hotel e dou de cara com ele chegando. E eu disse: “E aí Franklin, vamos lá na pré-estreia?” Ele respondeu (imitando a voz do ministro): “Não vou, não gosto de badalação”. Vou ver na minha casa, tranquilo”. Aquele cara é um chato, né? Deus me livre. Eu disse que ele ia ter de esperar até sair em DVD. Ele disse: “Eu espero”. Ô, homem chato!

 

O que você pretende fazer com relação a essa acusação?

Nós não devemos fazer nada. Se há uma pessoa que deve fazer, é o Franklin Martins.

 

Durante a produção do filme, você esteve com o presidente Lula?

Três dias antes de filmar.

 

Com que objetivo?

O objetivo foi esclarecer com ele algumas dúvidas, algumas situações que ele tinha passado.

 

O filme foi exibido para o presidente Lula na pré-estreia em São Bernardo do Campo (cidade do ABC paulista). Você estava ansioso com a reação dele?

Eu estava emocionado. Você praticamente faz o filme esperando aquele momento da pessoa reagir. E eu fiquei impressionado com o impacto que o filme teve sobre ele. Ficamos um bom tempo conversando, eu, meu pai e ele. E ele ficou falando sobre as impressões dele e tal.

 

Ele faz alguma ressalva?

Se tivesse feito, eu não iria te dizer. (Risos). Ele fez uma observação que a Tiana, a irmã dele, não seria tão nova naquela cena do hospital. Ele também falou que não se lembrava dessa coisa tão violenta do pai dele. Disse ainda que se emocionou muito na morte da primeira mulher. Mas eu não tinha nenhuma expectativa ruim porque sei que o filme é bom, sabia que ele iria gostar. Não que eu tenha feito pra ele gostar, não é isso, mas sabia que ele ia gostar. Porque é um filme forte. E, apesar de eu saber que ninguém nunca vai falar disso, esse filme tem uma estética do caceta, entendeu?

 

E por que não vão falar?

Porque todo mundo só vai falar de política, do suposto lado eleitoreiro, disso e daquilo. Alguns já falaram do time, como o Arthur Xexéu (articulista do jornal O Globo), que disse que toda a primeira parte parece Cinema Novo e a segunda, neorrealismo italiano.

 

Quem são os diretores de cinema brasileiros que você admira?

Eu acho que tem muita gente boa começando e tem os estabelecidos que eu admiro – Cacá Diegues, Fernando Meirelles, o Waltinho Salles. Gosto também do Cláudio Torres, do José Henrique Fonseca, do Andrucha Waddington, do pessoal da Conspiração.

 

Você gosta de todo mundo, então.

Todo mundo, não, tem muito mais gente do eu isso. Eu estou falando daqueles com que tenho mais afinidade. Agora, um que diga “esse é o cara”...No momento o cara sou eu! (Risos.) Porque eu gosto muito desse filme que eu fiz.

 

No material de divulgação do filme há uma frase sua dizendo que se deslumbrou quando foi indicado ao Oscar por O Quatrilho. O que aconteceu ali?

Eu me deslumbrei no sentido de achar que aquilo seria o ponto de partida de uma carreira internacional. Segui o caminho tradicional: Hollywood, Los Angeles, agente, advogado, manager. E era muito chato, me mandavam milhões de roteiros horrorosos. Esse sonho de ir pra Hollywood, de fazer cinema no lugar que tem mais recursos, de chegar ao que seria o topo da carreira de diretor de cinema...Nós temos exemplos de pessoas que tentaram isso, conseguiram em parte e se frustraram.

 

Quem?

O Hector Babenco, meu irmão Bruno, o próprio Walter Salles, o Fernando Meirelles. Todos sofreram algum revés. O Babenco estourou no Beijo da Mulher Aranha, encarou o fracasso com Ironweed e depois com Brincando nos Campos do Senhor. Hollywood é implacável. Fernando Meirelles tá bem, ele foi bem no Jardineiro Fiel, mas Ensaio sobre a Cegueira já foi um filme mais difícil de fazer sucesso. O filme do Waltinho, Água Negra, também foi um filme que não aconteceu como deveria. Carreira internacional é uma coisa muito difícil. Então eu me deslumbrei no sentido de achar que ia acontecer lá fora e aí vi que isso não ia acontecer. E tentei um projeto lá fora que me decepcionou muito.

 

Qual projeto?

Da Frida Kahlo. Era um roteiro que a Madonna passou adiante porque queria fazer um musical. Chamamos o Robert de Niro para fazer o Diogo Rivera e a Jennifer Lopez para fazer a Frida. Ao mesmo tempo tinha um projeto correndo em paralelo, que era o da Salma Hayek, com roteiro da Miramax. No meio disso tudo a roteirista quis me dar um golpe. A gente já estava com recursos da Sony, eu já tinha lido o roteiro com o De Niro e a Jennifer. Só que os produtores ainda não tinha pago à roteirista os direitos do roteiro. E ela falou: “Não, quem vai dirigir sou eu. Tira o Fábio”. Foi uma frustração, uma decepção muito grande pra mim. Fiquei bastante triste.

 

E o que aconteceu depois disso?

Passou um tempo, fiz A Paixão de Jacobina, que também não foi bem, fiz Nossa Senhora de Caravaggio mais por uma questão de sobrevivência. Então acho que Lula é uma retomada pra mim. Eu tive ali um filme que marca o início pra mim. Eu tive ali um filme que marca o início da retomada do cinema nacional que foi O Quatrilho. E agora estou tendo minha própria retomada.

 

Para muitos estudiosos de cinema, o filme que marca a retomada não é O Quatrilho, mas Carlota Joaquina (1995), de Carla Camurati.

Ah, eu não quero ser o pai da retomada. Carlota foi o primeiro filme, foi bem comercialmente, mas em seguida veio O Quatrilho com a indicação do Oscar e foi muito bem comercialmente, entendeu? Melhor do que Carlota Joaquina. Ou seja, ele repicou o Carlota e foi além. E tivemos nesse mesmo ano Terra Estrangeira, do Walter Salles, que foi muito bem. Então você pode dizer que três filmes marcam a retomada.

 

Na pré-estreia de seu filme em São Bernardo, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos disse: “O Lula já trouxe as Olimpíadas, agora ele vai trazer”

(Interrompe.) O Oscar! (Risos). Tomará, né? Eu espero que sim, porque já estive lá e dessa vez quero voltar trazendo o Oscar. Quero ser o primeiro. Seria uma coisa tão boa para o Brasil...Quem sabe no ano que vem o filme seja indicado. Acredito que tenha chances.

 

O Ministério da Cultura vai dar uma força na indicação por se tratar de um filme sobre presidente?

Isso jamais. Jamais haveria qualquer tipo de pressão para que o filme fosse indicado, entendeu? Ingerência política, nada disso. Tem lá o perfil do filme ideal para concorrer ao Oscar, e acho que ele se enquadra. É uma história humana, bonita. Vamos ver. Olha, o filme tá pronto, minha missão tá cumprida.

 

Na pré-estreia em São Bernardo, você não esperava uma reação mais calorosa da plateia ao filme?

Ali era uma plateia misturada, uma coisa meio oficial, ministros, senadores, o próprio presidente. Teve lá os aplausos no final, discretos, porque o filme acaba pesado, na morte da mãe. Não é um final pra cima.

 

Também se comentou sobre a frieza da plateia na pré-estreia no Festival de Brasília.

Absolutamente. Ririam durante a projeção, aplaudiram no final. O que acontece é que se torce muito contra. Tem uma torcida contra o Lula e, como o filme é sobre ele, torce-se contra o filme. Não têm o que falar e ficam falando de apagão, filme, o que aparecer. Agora, têm de olhar para o rabo deles, porque o DEM...E foi o DEM que se utilizou da projeção em Brasília, foi o DEM que esculhambou tudo.

 

Como assim?

Quem convidava para a projeção era o governo do Distrito Federal, que é o José Roberto Arruda, do DEM. O secretário da Cultura invadiu a projeção com 300 pessoas sem serem convidadas. Pegou o lugar que estava reservado para a gente e disse: “Aqui não tem lugar reservado pra ninguém”. E não tinha lugar pra gente sentar nem para os atores do filme. Ele encheu do eleitorado dele.

 

Em São Bernardo, antes da estreia você quase chorou ao falar da dona Lindu. O que aconteceu?

É porque paira assim uma coisa, entendeu? Eu acho que no fundo a dona Lindu tá lá em cima cuidando para que tudo dê certo. Essa coisa do ator, a gente tinha pouco tempo para preparar o Rui. Foi um filme que tinha tudo pra dar errado.

 

Por quê?

Você já pensou o que é pegar três gerações e trabalhar as três famílias, três Lulas diferentes? E ter uma unidade dramática? É muito difícil.. Eu acho que um dos pontos altos do filme são os atores.

 

No filme, em algumas cenas, Rui Ricardo Dias parece esquecer-se de falar como Lula. Você não notou isso durante as filmagens?

Claro. Eu não queria que ele falasse ou não. Não importava.


Você chegou a pedir que ele falasse como o Lula?

Não pedi nada. Falei: “Faça o seu Lula”. Isso é muito importante para o ator, ele estar acima do personagem. Ele controlar, dominar. Não pode ser dominado pelo personagem.


Qual foi o truque para esconder o dedo do Lula?

Computação gráfica. Ele trabalhava o tempo inteiro com o dedo para dentro, numa prótese. E depois a gente apagou virtualmente o que ficava evidente.


Dentre as muitas observações feitas a seu filme, uma é sobre o uso da expressão “brahmeiros”...

(Interrompe.) Isso não é só a Brahma. Tem vários merchandisings dentro do filme. Volkswagen aparece no táxi. É uma coisa que a gente tem de ter, vai fazer o quê? Os patrocinadores querem ter a vinculação da marca. E tem muito Brahma Chopp no filme inteiro, nos rótulos das garrafas.

 

Mas a observação é a propósito de a expressão ser descontextualizada no tempo.

Porque é atual, né? Mas isso foi uma liberdade poética. Falaram também da novela Irmãos Coragem, que foi ao ar depois daquele momento que eles estão vivendo.

 

E também do nome de Lula escrito errado no diploma do Senai.

Gente, é Luiz com Z, né? Vieram me dizer isso ontem. Tem de mudar esse negócio. Vai custar dinheiro...

 

Fábio, não posso deixar de fora desta entrevista uma pergunta clássica da PLAYBOY. Como foi sua primeira vez?

Foi com uma prostituta vesga no Paraná, num prostíbulo perto da fazenda de café da minha avó. Era perto de uma cidadezinha tipo faroeste, de barro. Ela era novinha. E no dia seguinte eu fui embora pro Rio me encontrar com meu irmão para fazermos a nossa primeira viagem para a Europa.

 

Agora que já estreou o filme sobre Lula, o que você pretende fazer da vida?

Vou filmar Bodas de Seda, com minha mulher no elenco. É um filme de humor negro. E produzir dois. Um deles é um livro de Nelson Motta, Bandidos e Mocinhos, em que a Luana Piovani interpreta uma delegada. Aliás, uma “delegata”.

 

Nenhum outro político brasileiro vivo renderia um bom filme?

Já falaram de brincadeira para eu fazer “Serra, o Filho do Verdureiro”. (Risos.) Mas não sei se a vida do José Serra renderia um bom filme. Uma vida assim, parecia coma do Lula, é difícil, né?

 

Publicado originalmente na revista "Playboy" em janeiro de 2010

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

A Playboy pegou pesado com o cineasta,só pergunta pra desmerecer o trabalho do cara.