segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Boca do Cinema por Tony de Sousa, parte I de IV: o primeiro filme

 Por Tony de Sousa

 

Paróquia dedicada a Nossa Senhora da Conceição- Santa Ifigênia que está neste local desde 1809. Foto: Matheus Trunk 

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Eu tive um monte de empregos quando decidi largar tudo pra viver de cinema. Acabara de fazer 25 anos e estava iniciando uma carreira no teatro. Embora Sérgio Bamba – o cara que me iniciou na arte da interpretação – e alguns amigos achassem que eu tinha algum talento como ator, eu queria mesmo era ser diretor de cinema. Isso porque, alguém falou certa vez, que o cinema era a síntese de todas as artes. Esse alguém, que agora não lembro quem foi, justificava essa afirmação, dizendo que o cinema reunia, na sua realização, a arte da interpretação, da música, da literatura, da pintura, etc. etc. etc. Para mim, isso caiu como uma luva, pois eu tinha a modesta intenção de ser reconhecido mundialmente como o rei das artes e, dessa forma, não precisaria mais me debates com o domínio de todas elas. Bastaria fazer cinema. Esse mesmo alguém esclarecia que um bom diretor de filmes deveria conhecer um pouco de cada uma dessas artes e funcionar como uma espécie de maestro que não precisa saber tocar todos os instrumentos, mas conhecer um pouco de cada um, suas potencialidades, etc. É óbvio que eu não queria ser um diretor qualquer, tipo esses caras de Hollywood, que só fazem o que o produtor manda e são submissos às estrelas do momento. Eu queria mesmo ser um Antonioni, um Tarkovski, um Glauber Rocha. Desses três, o Antonioni tinha a minha preferência. Por isso mudei meu nome, que no teatro era Antonio Di Sousa, para Antonini Silva. Fiz questão de manter o Silva do meu nome verdadeiro, Raimundo Silva, mas os caras lá da Rua do Triumpho trocavam sempre o Antonini por Antoninho, e eu acabei virando Antoninho Silva.

 

2

 

Tudo começou quando eu fazia um papel secundário numa peça de grande sucesso, O Último Trem, e fiquei sabendo que um cara chamado Eligê ia iniciar uma fita, O Cadillac Vermelho. Fui lá conversar com ele. Patati, patatá, falei de Stanislavski, falei do “método”, uns termos de cinema que eu havia aprendido num curso por correspondência, Eisenstein, Pudovkin, etc., e ele olhou para mim espantado e falou: “Tá contratado como meu assistente. Vá falar com Jun Tu Tu. Acerte o seu salário com ele”. E me levou até um chinês que estava sempre sorrindo. Eu já havia visto esse chinês descer de um Cadillac preto, com motorista particular e tudo, assim que cheguei ao escritório da produtora. Num primeiro momento, pensei que ele fosse o Eligê, mas alguém me falou que Eligê era um senhor de cabelos grisalhos, e aquele jovem oriental sorridente (devia ter a minha idade ou até menos) era o produtor da fita. Depois, enquanto esperava o Eligê na recepção, passou duas vezes por mim.

“Esse é meu produtor”, disse Eligê entrando na sala do chinês. E continuou:

“Tu Tu, contrate esse cara! Quero ele como meu assistente”

Tu Tu só balançava a cabeça e sorria.

“Quero receber a tabela do sindicato”, eu disse.

“Tudo bem”, Tu Tu respondeu.

Pegou uma folha de papel, datilografou um contrato e me deu para assinar. Nem olhei o que estava escrito e assinei.

Fui ao teatro e pedi minhas contas. Eles resistiram. Queriam me convencer a ficar mais um tempo. Queriam que eu esperasse pelo menos umas duas semanas até que outro ator se preparasse para assumir meu papel. Fui inflexível. Não podia perder a oportunidade de ser assistente de direção de uma fita tão importante como O Cadillac Vermelho, baseada num autor de sucesso da literatura nacional, Raimundo Nonato. O diretor da peça, Johnny Bianco, veio falar comigo. Um grande cara. Expliquei minhas razões. Eu tinha “um monte de coisas para conquistar” e estava “ali parado” há um ano. Acabou aceitando minhas explicações.

 

3

 

Esse meu primeiro emprego no cinema durou apenas uma semana. Eligê e o produtor se desentenderam. O primeiro incidente se deu quando precisamos de um Cadillac vermelho para filmar e o chinês disse que não ia pintar o carro dele de vermelho. Que arranjassem outro.

“Então providencie outro. Você não é o produtor da fita?”, disse Eligê.

Aí o chinês respondeu:

“Era. Não sou mais!”

“Como assim?”, quis saber Eligê.

E o chinês abriu o jogo. Ele não tinha dinheiro nenhum para pagar as despesas da filmagem. Vivia de mesada dos pais e achava que os convenceria a bancar o filme, como não havia conseguido tinha desistido de ser produtor.

 

4

 

Morávamos, meu irmão Saulo, meu irmão Deca e eu, num apartamento no bairro da Aclimação. O contrato do imóvel estava em nome do meu irmão Saulo e ele resolveu que não iria renová-lo. Com toda razão, ele tinha receio de consumir todo seu salário de sargento da aeronáutica com as despesas daquele apartamento, já que eu e meu irmão Deca não tínhamos empregos estáveis. Deca arranjou um emprego de eletricista num hospital lá para os lados do Tucuruvi e mudou-se para uma pensão que ficava perto. Eu ainda embromei um tempo, tentando convencer a imobiliária a aceitar a transferência do contrato que estava em nome do meu irmão para o meu nome, mas quando eles viram a minha profissão de ator, recusaram no ato. Então, ao acontecer o segundo incidente do Jun Tu Tu com o Eligê, no qual ele desistiu de ser produtor e disse que não tinha dinheiro para pagar ninguém, eu estava justamente nesse impasse de ter que entregar o apartamento e não saber direito onde ia morar. Não tinha mais cara de pedir favor para Tia Leo, com quem morei um tempo longo que cheguei em São Paulo, num sobradinho na Vila Mariana. Ela inclusive não tinha mais nesse lugar, havia se mudado para o Jabaquara. Pensei em procurar Armando, um antigo parceiro que morava em Osasco. Assim como eu, ele veio do Nordeste para São Paulo pensando em vencer na vida como artista e acabou desistindo. Toda vez que nos encontrávamos me chamava de louco, pedia para eu parar com tal maluquice e arranjar um emprego decente. Se fosse morar com ele seria capaz de me convencer a desistir do cinema. Então fui falar com Eligê. Contei meu drama para ele. “Não tem problema. Estou morando sozinho. Separei da minha mulher e ela vive num outro lugar com meus dois filhos. Pode mudar lá pra casa”. Fiquei muito tocado com a generosidade de Eligê. Isso é que era solidariedade. Eu precisava conviver com gente assim. Que não pede para você desistir da carreira no primeiro tropeço. Sem pestanejar, mudei-me para lá com todos meus bagulhos. Instalei-me num dos quartos da casa, onde, antes de Eligê separar-se, dormiam os seus dois filhos. Eu era tão pobre na época, que tudo que eu tinha cabia numa mala de tamanho médio. Essa mala inclusive, tinha uma história. Jerry Lewis, um cara que foi camelô nas ruas de Natal e serviu comigo na aeronáutica, vivia dizendo que a melhor mala do mundo era fabricada no Rio de Janeiro, chamada mala Kelson. Então, por influência dele, gastei mais de um mês do meu soldo de soldado de primeira classe para adquirir a tal mala com a qual viajei para São Paulo. Era uma mala realmente resistente. Quando tomei o metrô na estação Ana Rosa, depois de ter subido a Rua Topázio e Machado de Assis a pé com a mala pesada, vinha pensando nessa coisa da solidariedade humana a qual já me referi anteriormente, nos artistas que passaram por dificuldades antes de vencerem. Sempre houve alguém que estendeu a mão a um cara que venceu na vida. Como agora esse homem santo chamado Eligê, que mal conhecia Antoninho Silva e o convidava para morar com ele. Quando for um Antonioni, não poderei esquecer esse gesto magnânimo de Eligê, disse para mim mesmo. Estava pensando exatamente nisso e massageando meus braços que ficaram doloridos pelo peso da mala, quando Eligê veio com uma conversa que precisaríamos dividir as despesas da casa e o aluguel:

“Mas como? Eu estou desempregado. Pedi as contas no teatro para fazer o filme...”

“Se vira meu filho. Se vira. Eu também vivo desempregado e me viro”.

Concordei em dividir as despesas, mas disse que ele teria de descontá-las do salário que o chinês não me pagou. Afinal de contas, quando fui contratado, os dois eram sócios. Ele protestou e xingou o chinês:

“Não me fale nesse cara! Ele me arruinou. Quebrou as minhas pernas. Fiquei vários anos armando essa produção para um idiota chegar e colocar tudo a perder...”

Quando ele começava a se lamentar e botar a culpa dos seus fracassos em todo mundo, menos nele, levava horas e horas. Era uma tortura ficar ouvindo aquilo. Depois de muita conversa ele concordou que eu ficasse sem pagar nada durante um mês. Depois teríamos que dividir tudo meio a meio. Incluindo as despesas de supermercado.

 

Publicado originalmente em Sousa, Tony. Boca do Cinema. São Paulo: LCTE Editora, 2012.

 

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