Por Tony de Sousa
Paróquia dedicada a Nossa Senhora da Conceição- Santa Ifigênia que está neste local desde 1809. Foto: Matheus Trunk |
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Eu tive um monte de
empregos quando decidi largar tudo pra viver de cinema. Acabara de fazer 25
anos e estava iniciando uma carreira no teatro. Embora Sérgio Bamba – o cara
que me iniciou na arte da interpretação – e alguns amigos achassem que eu tinha
algum talento como ator, eu queria mesmo era ser diretor de cinema. Isso
porque, alguém falou certa vez, que o cinema era a síntese de todas as artes.
Esse alguém, que agora não lembro quem foi, justificava essa afirmação, dizendo
que o cinema reunia, na sua realização, a arte da interpretação, da música, da
literatura, da pintura, etc. etc. etc. Para mim, isso caiu como uma luva, pois
eu tinha a modesta intenção de ser reconhecido mundialmente como o rei das
artes e, dessa forma, não precisaria mais me debates com o domínio de todas
elas. Bastaria fazer cinema. Esse mesmo alguém esclarecia que um bom diretor de
filmes deveria conhecer um pouco de cada uma dessas artes e funcionar como uma
espécie de maestro que não precisa saber tocar todos os instrumentos, mas
conhecer um pouco de cada um, suas potencialidades, etc. É óbvio que eu não
queria ser um diretor qualquer, tipo esses caras de Hollywood, que só fazem o
que o produtor manda e são submissos às estrelas do momento. Eu queria mesmo
ser um Antonioni, um Tarkovski, um Glauber Rocha. Desses três, o Antonioni
tinha a minha preferência. Por isso mudei meu nome, que no teatro era Antonio
Di Sousa, para Antonini Silva. Fiz questão de manter o Silva do meu nome
verdadeiro, Raimundo Silva, mas os caras lá da Rua do Triumpho trocavam sempre
o Antonini por Antoninho, e eu acabei virando Antoninho Silva.
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Tudo começou quando eu
fazia um papel secundário numa peça de grande sucesso, O Último Trem, e fiquei sabendo que um cara chamado Eligê ia
iniciar uma fita, O Cadillac Vermelho.
Fui lá conversar com ele. Patati, patatá, falei de Stanislavski, falei do
“método”, uns termos de cinema que eu havia aprendido num curso por
correspondência, Eisenstein, Pudovkin, etc., e ele olhou para mim espantado e
falou: “Tá contratado como meu assistente. Vá falar com Jun Tu Tu. Acerte o seu
salário com ele”. E me levou até um chinês que estava sempre sorrindo. Eu já
havia visto esse chinês descer de um Cadillac preto, com motorista particular e
tudo, assim que cheguei ao escritório da produtora. Num primeiro momento,
pensei que ele fosse o Eligê, mas alguém me falou que Eligê era um senhor de
cabelos grisalhos, e aquele jovem oriental sorridente (devia ter a minha idade
ou até menos) era o produtor da fita. Depois, enquanto esperava o Eligê na
recepção, passou duas vezes por mim.
“Esse é meu produtor”,
disse Eligê entrando na sala do chinês. E continuou:
“Tu Tu, contrate esse
cara! Quero ele como meu assistente”
Tu Tu só balançava a
cabeça e sorria.
“Quero receber a tabela
do sindicato”, eu disse.
“Tudo bem”, Tu Tu
respondeu.
Pegou uma folha de
papel, datilografou um contrato e me deu para assinar. Nem olhei o que estava
escrito e assinei.
Fui ao teatro e pedi
minhas contas. Eles resistiram. Queriam me convencer a ficar mais um tempo.
Queriam que eu esperasse pelo menos umas duas semanas até que outro ator se
preparasse para assumir meu papel. Fui inflexível. Não podia perder a
oportunidade de ser assistente de direção de uma fita tão importante como O Cadillac Vermelho, baseada num autor
de sucesso da literatura nacional, Raimundo Nonato. O diretor da peça, Johnny
Bianco, veio falar comigo. Um grande cara. Expliquei minhas razões. Eu tinha
“um monte de coisas para conquistar” e estava “ali parado” há um ano. Acabou
aceitando minhas explicações.
3
Esse meu primeiro
emprego no cinema durou apenas uma semana. Eligê e o produtor se desentenderam.
O primeiro incidente se deu quando precisamos de um Cadillac vermelho para filmar
e o chinês disse que não ia pintar o carro dele de vermelho. Que arranjassem
outro.
“Então providencie
outro. Você não é o produtor da fita?”,
disse Eligê.
Aí o chinês respondeu:
“Era. Não sou mais!”
“Como assim?”, quis saber Eligê.
E o chinês abriu o
jogo. Ele não tinha dinheiro nenhum para pagar as despesas da filmagem. Vivia
de mesada dos pais e achava que os convenceria a bancar o filme, como não havia
conseguido tinha desistido de ser produtor.
4
Morávamos, meu irmão
Saulo, meu irmão Deca e eu, num apartamento no bairro da Aclimação. O contrato
do imóvel estava em nome do meu irmão Saulo e ele resolveu que não iria
renová-lo. Com toda razão, ele tinha receio de consumir todo seu salário de
sargento da aeronáutica com as despesas daquele apartamento, já que eu e meu
irmão Deca não tínhamos empregos estáveis. Deca arranjou um emprego de
eletricista num hospital lá para os lados do Tucuruvi e mudou-se para uma
pensão que ficava perto. Eu ainda embromei um tempo, tentando convencer a
imobiliária a aceitar a transferência do contrato que estava em nome do meu
irmão para o meu nome, mas quando eles viram a minha profissão de ator,
recusaram no ato. Então, ao acontecer o segundo incidente do Jun Tu Tu com o
Eligê, no qual ele desistiu de ser produtor e disse que não tinha dinheiro para
pagar ninguém, eu estava justamente nesse impasse de ter que entregar o
apartamento e não saber direito onde ia morar. Não tinha mais cara de pedir
favor para Tia Leo, com quem morei um tempo longo que cheguei em São Paulo, num
sobradinho na Vila Mariana. Ela inclusive não tinha mais nesse lugar, havia se
mudado para o Jabaquara. Pensei em procurar Armando, um antigo parceiro que
morava em Osasco. Assim como eu, ele veio do Nordeste para São Paulo pensando
em vencer na vida como artista e acabou desistindo. Toda vez que nos
encontrávamos me chamava de louco, pedia para eu parar com tal maluquice e
arranjar um emprego decente. Se fosse morar com ele seria capaz de me convencer
a desistir do cinema. Então fui falar com Eligê. Contei meu drama para ele.
“Não tem problema. Estou morando sozinho. Separei da minha mulher e ela vive
num outro lugar com meus dois filhos. Pode mudar lá pra casa”. Fiquei muito
tocado com a generosidade de Eligê. Isso é que era solidariedade. Eu precisava
conviver com gente assim. Que não pede para você desistir da carreira no
primeiro tropeço. Sem pestanejar, mudei-me para lá com todos meus bagulhos.
Instalei-me num dos quartos da casa, onde, antes de Eligê separar-se, dormiam
os seus dois filhos. Eu era tão pobre na época, que tudo que eu tinha cabia
numa mala de tamanho médio. Essa mala inclusive, tinha uma história. Jerry
Lewis, um cara que foi camelô nas ruas de Natal e serviu comigo na aeronáutica,
vivia dizendo que a melhor mala do mundo era fabricada no Rio de Janeiro,
chamada mala Kelson. Então, por influência dele, gastei mais de um mês do meu
soldo de soldado de primeira classe para adquirir a tal mala com a qual viajei
para São Paulo. Era uma mala realmente resistente. Quando tomei o metrô na estação
Ana Rosa, depois de ter subido a Rua Topázio e Machado de Assis a pé com a mala
pesada, vinha pensando nessa coisa da solidariedade humana a qual já me referi
anteriormente, nos artistas que passaram por dificuldades antes de vencerem.
Sempre houve alguém que estendeu a mão a um cara que venceu na vida. Como agora
esse homem santo chamado Eligê, que mal conhecia Antoninho Silva e o convidava
para morar com ele. Quando for um Antonioni, não poderei esquecer esse gesto
magnânimo de Eligê, disse para mim mesmo. Estava pensando exatamente nisso e
massageando meus braços que ficaram doloridos pelo peso da mala, quando Eligê
veio com uma conversa que
precisaríamos dividir as despesas da casa e o aluguel:
“Mas como? Eu estou desempregado. Pedi as
contas no teatro para fazer o filme...”
“Se vira meu filho. Se vira. Eu também vivo
desempregado e me viro”.
Concordei em dividir as despesas, mas disse que ele
teria de descontá-las do salário que o chinês não me pagou. Afinal de contas,
quando fui contratado, os dois eram sócios. Ele protestou e xingou o chinês:
“Não me fale nesse cara! Ele me arruinou. Quebrou as
minhas pernas. Fiquei vários anos armando essa produção para um idiota chegar e
colocar tudo a perder...”
Quando ele começava a se lamentar e botar a culpa dos
seus fracassos em todo mundo, menos nele, levava horas e horas. Era uma tortura
ficar ouvindo aquilo. Depois de muita conversa ele concordou que eu ficasse sem
pagar nada durante um mês. Depois teríamos que dividir tudo meio a meio.
Incluindo as despesas de supermercado.
Publicado originalmente em Sousa, Tony. Boca do Cinema. São Paulo: LCTE Editora,
2012.
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