Capítulo 7: Porto das Caixas
Paulo César Saraceni dançando com Léa Massari. Alberto Ruschel ao violão ao fundo
Por Paulo César Saraceni
Eu queria fazer um filme brasileiro que continuasse Arraial
do Cabo, na mesma temática, influenciado por Goeldi, Stroheim, Murnau e
evidentemente toda a minha experiência na Itália, principalmente Rossellini,
Visconti, Antonioni e Godard. Mas eu sabia que para fazer um filme novo tinha
que esquecer tudo e me basear na minha criação e no texto de Lúcio Cardoso. A
realidade de Porto das Caixas faria o resto. Para mim não há cinema sem
improvisação. É: você + a realidade = poesia.
Ia amadurecendo o filme enquanto esperava, senti que o filme
ia se impregnando em mim, fiquei mais tranquilo.
Fui a uma festa em Laranjeiras, na casa de uma namorada do Walter Athademus, o
dentista dos meus sonhos. Fui com Guerreirinho. Bebemos muito. Adolfo Celi chegou
com sua nova namorada, a lindíssima Marília Branco. Divina. Jovem, espontânea,
garota do Arpoador, esportista, loura, branca, mas com um pé na Zona Norte.
Tônia Carrero tinha dançado com Celi e eu fui dançar com Marília. Acabamos nos
apaixonando e indo para um apartamento em Copa, meio fugidos. Eu e Marília nos
amamos dias sem parar.
No quarto dia, Celi pediu Marília Branco em casamento e se
mandou para a Itália. Fiquei a ver jacarés galopando nas ondas do Arpoador. Mas
isto podia ser um bom sinal para Porto das Caixas. Fernando Campos me procurou
com a chave mágica. Conheceram um empresário simpático e sensível. Tinha jeito
de produtor de cinema. Chamava-se Elísio Freitas e era representante da
Ferrania. Mexia com filmes de raio-x e não perdia uma concorrência nos
hospitais. Era safo e bom de negócio. Batista de religião. Tomei mais um gole
de minha batida de limão e disse para o Champs que, como fora ele quem tinha
sacado Irma Álvarez, devia estar cedo com a relação ao produtor também.
Elísio Freitas tinha escritório na rua Araújo Porto Alegre,
bem em cima do bar Vermelhinho. Achei engraçado e perfeito o Champos encontrar
um produtor de cinema virgem bem em cima de uma porção de roteiristas também
virgens.
Era no segundo andar, e Elísio não quis ler o roteiro de
Porto das Caixas, pediu-me para contar a história. Perguntou quem seria a
mulher assassina. Eu disse Irma Álvarez, ele gostou, mas perguntou: “Ela é
atriz?” “Vai ser”, respondi. Pegou o orçamento e leu. Seis milhões, não é
mpouco, não? Doze mil dólares? Respondi que era pouco, mais ia dar. O filme é
sobre gente pobre, numa cidade pobre, miséria e abandono. Devia ser feito com
pouco dinheiro. Concordamos, saí dali com a certeza de que ia começar o meu
primeiro longa.
Mas cadê Ferdy Carneiro? Mário Carneiro ia se casar naquela
semana, ia ter que suspender a lua-de-mel para filmar, pensei.
Elísio me disse: “Você não ganha nada, mas fica sendo meu
sócio. Se der dinheiro, 50% para cada um. Se não der, só eu perco”. Topei. Vi
logo o que seria o produtor modelo do Cinema Novo. O autor-realizador tem que
correr os riscos junto com o produtor, que cuida das finanças, enquanto o
realizador cuida da criação, mas com responsabilidade de parte a parte. Melhor
que os produtores baianos do Gláuber.
Mário Carneiro casou-se com Marília no sétimo andar do
edifício onde morava Mário Pinto, pai de Marília e Maria Lúcia Pinto. Como
Mário só subia até o quarto andar, precisou tomar um porre de responsa e casar,
com os amigos o segurando para quer não se jogasse pela janela e se
esborrachasse nas pedras portuguesas da avenida Atlântica. Foi um belo
casamento e um grande porre. (Mário tem volúpia de altura, e se vê uma janela
aberta acima do quarto andar é um perigo.)
Antes de partir para Porto das Caixas deu uma olhada no CPC.
Eles preparavam o Cinco vezes favela, Couro de gato, de Joaquim Pedro, e mais
quatro episódios. Um de Marcos Faria, outro de Miguel Borges, outro de Leon
Hirszman e outro de Carlos Diegues, o Cacá.
Gláuber inventou uma bela união – Roberto Faria e Luís
Carlos Barreto, que era repórter fotográfico de O Cruzeiro. Levou os
dois ao Raimundo Wanderley, que cuidava da cultura no Banco Nacional. Magalhães
Pinto, dono do banco, e Magalhães Lins, seu diretor, sentiram que as esquerdas
avançavam com Jango no poder e começaram a abrir carteira de crédito,
financiamento com juros mais baixos, etc. Isso permitiu uma série de filmes
como Assalto ao trem pagador. Começa a aparecer aí esse personagem
importantíssimo do cinema chamado “novo”, o Raimundo (Dico) Wanderleu. Dico é
poeta e homem de cultura do Banco Nacional, possui uma grande visão política.
Na mesma época, Ruy Guerra se associa a Jece Valadão e
Daniel Filho para realizarem Os cafajestes, com Norma Bengell como
atriz.
Nélson Pereira dos Santos acaba a montagem de Barravento
e volta a pensar em Vidas secas.
Walter Hugo Khouri continua filmado em São Paulo.
Exatamente no mês de maio, quando eu já me preparava para filmar em Porto
das Caixas, Anselmo Duarte (como diretor) e Oswaldo Massaini (como
produtor) ganham a Palma de Ouro no Festival de Cannes, com O pagador de
promessas, baseado em peça de Dias Gomes. Achei muito estranho O pagador
ganhar um festival onde tinha filmes de Antonioni, Buñuel, Bresson, etc. Achei
também que O pagador não tinha a ver com o Cinema Novo.
Depois soube o motivo real desse prêmio. François Truffaut,
excelente crítico e cineasta da Nouvelle Vague, membro do júri de
Cannes, esteve no Brasil antes do Festival e foi guiado por David Neves com
toda sua cultura cinematográfica e seu entusiasmo. David levou Truffaut ao
Laboratório Líder, às moviolas, ao pessoal do Metropolitano, e principalmente
falou da geração do Cinema Novo. Em Cannes o júri estava indeciso entre três ou
quatro filmes para a premiação. Truffaut se lembrou de David Neves e do que
vira no Brasil, premiou O pagador. Isso não tira o mérito da performance
cheia de charme de Anselmo Duarte, o único capaz de falar inglês com uma
inglesa e americana durante uma hora sem que elas percebam que ele está falando
uma língua inventada na hora, mas com uma pronúncia perfeita do inglês de
Oxford.
O pagador de promessas não é um bom filme, parece trabalho
da Vera Cruz, acadêmico e sem nenhuma criatividade. Na ocasião, fui um dos
poucos a falar contra o prêmio. Anselmo Duarte fez filmes muito melhores depois
e não alcançou o sucesso que merecia. Nunca consegui entender a briga dele com
David Neves, o autor intelectual e espiritual da Palma de Ouro que ele
conseguiu em Cannes.
Massaini devia produzir um filme de David Neves, pagando a
promessa do prêmio.
Fui tirar Mário Carneiro de sua lua-de-mel. Marília Carneiro, é claro, não
gostou. Mas a equipe e o elenco do filme já estavam prontos. Eu não achava
Ferdy, por mais que procurasse. Fiquei com a impressão de que o nosso querido
amigo Zé Henrique Belo, o Ghigia, tinha feito um trabalho de ebó num terreiro
da Zona Norte para Ferdy sumir. Ghigia foi seu substituto na cenografia,
figurinos, letreis e cartazes do filme. Tudo foi adquirido em Porto das Caixas
mesmo. Ferdy ficou chateado comigo durante muito tempo e eu sofri por isso. Ninguém
merecia estar mais nesse filme do que ele. Felizmente, nove anos depois
voltamos a trabalhar juntos na realização da Casa assassinada.
Outra perda muito sentida, dessa vez no elenco: Nelson
Dantas tinha se separado de Ismênia e pirou. Não falava coisa com coisa, ou
pior, não falava, ficava pelos cantos, se escondendo. Chamei Paulo Padilha para
o papel de marido de Irma. Lúcio Cardoso insistia em Norma Bengell para o papel
da mulher, principal protagonista do filme. Eu só via Irma para o papel. O filme
seria ela. Norma faria a Nina de Casa assassinada. Lúcio concordou e deixou-me
inteiramente livre. Nunca apareceu nas filmagens, mas eu sabia que ele torcia
pelo filme. Terrível, eu iria fazer o filme sem Lúcio e Ferdy. Que vida ingrata
esta de bailarina: “Árdua e dura é vida de uma bailarina” – frase que Gustavo
Dahl usou como slogan, baseado na frase que eu e Ferdy ouvimos de uma
(...) na boate Balalaika, ao cair no chão depois de um passo errado, no ar,
evidentemente se julgando um Nijinski.
As coisas fluem para o bem ou para o mal, depende do astral,
sem que a gente tenha qualquer interferência. É uma brisa que amacia nossas
almas mas que pode destruir tudo. O fazer é a única coisa que interessa, que
nos faz humanos e nos dá um, pouco de prazer, mas o fazer em sua ação é
implacável com os seres mais queridos. Lá estava eu pensando em Faulkner de
novo. Haja coração e, como dizia Rossellini, colhão também.
Porto das Caixas era a cidadezinha perfeita para o filme que eu queria fazer. O
drama que Lúcio imaginou era para mim uma parábola da miséria do país e da
revolução que seria preciso fazer. E tão perto do Rio, de Ipanema. Bastava
tomar a barca cantareira na praça XV e quarenta minutos depois estávamos lá.
Cenário perfeito. A estação de trem desativada, perto o barraco isolado e
paupérrimo, uma fábrica abandonada, ruínas, uma pobre feita, a presença
constante e ameaçadora do trem que não vai a lugar algum. A igreja branca, um
palanque para os políticos, um desolado armazém e um nevoeiro surpreendente –
eu nunca tinha visto uma neblina daquela no Brasil. No tempo do Império, a
cidade fora um porto importante. O imperador visitava a cidade. Agora era o fim
do mundo.
Completavam o elenco: Reginaldo Faria, o amante; Paulo Padilha, o marido;
Sérgio Sanz, o solado; Josep Guerreiro, o barbeiro; Margarida Rey, o grilo, a
vendedora da arma assassina; Ghigia, um morador; Luís Carlos Miéle, Davi Conde,
Elísio Freitas e seus amigos faziam os políticos. O resto era a população de
Porto. Sérgio Sanz era meu assistente, Fernando Duarte era assistente do Mário,
Miele e Davi Conde faziam a produção, e a suíça Margoy, amiga de Zé Sanz e
namorada do Zózimo Bulbul, fazia a continuidade. Ela não sabia falar português,
mas era ótima companheira de filmagem.
O orçamento era mínimo, mas fui eu quem fez e quis assim,
ninguém impôs nada. Eu insistia em fazer um filme pobre, porém rico em criação
e inventividade. Cinema é isso. Produção é apenas supérfluo, coisa de gente
rica. Um retrato do Brasil para o nosso mercado vilipendiado pelos americanos.
Eu queria um novo mercado cinematográfico para filmes populares de arte. Como a
música de Cartola.
Isto tudo representava só 5% do mercado que os filmes
brasileiros disputavam com os filmes europeus, japoneses, latino-americanos.
Noventa e cinco por cento eram para filmes americanos. Não adiantava imitar os
filmes americanos para continuar nesses 5%, o negócio era fazer filmes
culturais e revolucionários, no tema e na linguagem, tentar o mercado externo e
aí ampliar o nosso mercado.
A chanchada tinha passado para a televisão e como bilheteria havia apenas
Mazzaropi. O resto não existia. O Cinema Novo tinha que desbravar esse
vergonhoso mercado, tinha que formar um público que amasse o cinema. Arriscar.
Arte é risco.
O tema de Porto das Caixas falava de miséria. E da
miséria da mulher na nossa sociedade machista de 1962. Eu sempre fui sensível
ao problema da mulher, escrava da casa. Minha mãe trabalhou fora bem cedo, e
trabalhou com alegria, nunca ausentou-se dos problemas da casa e dos filhos.
Mas o que eu via fora da minha casa era a escravidão e o despreparo para a vida
moderna. Sem falar do absurdo das empregadas domésticas, do tratamento e dos
papos dos machões sacaneando as mulheres, principalmente na camada mais rica ou
mais esclarecida.
Fui fiel a Lúcio, como Bresson foi fiel a Barnanos. No Pároco do campo
Lúcio era genial e extremamente visual e cinematográfico, e mesmo seus
diálogos, tão incompreendidos, eu amava. E fui rigoroso na minha fidelidade,
não mudei nada do seu argumento e fui mais fiel a mim mesmo. Fiquei livre,
afinal o filme era um grito de revolta do povo brasileiro e principalmente da
mulher: era feminista e religioso, antes mesmo da revolução feminina e dos
milagres que iria suceder ao filme na igreja da cidade de Porto das Caixas –
com o sangue da imagem do Cristo que até hoje, trinta anos depois, conduz
milhares de peregrinos à procura de salvação.
Um filme revolucionário não pode ser organizado e
panfletário como quer o CPC, com palavras de ordem como reforma agrária,
mais-valia, etc. Terá que ser uma revolta anárquica, mística, inconsciente,
espiritual e com a cara do povo brasileiro. É preciso dar esse grito
inconsciente para chegar à consciência do povo. Eu queria uma revolução e não
uma reforma agrária que o povo esfomeado e analfabeto não sabia o que era.
A mulher de Porto das Caixas precisava da redenção da
miséria. E só pelo crime ela podia se salvar. Uma salvação no corpo e na alma.
Vi na história cinematográfica de Lúcio Cardoso a oportunidade de me contrapor
a dois aspectos terríveis do cinema comercial de Hollywood. Um deles se opunha
à lei que, no fim do filme, diz que todos os crimes devem ser punidos com a
prisão ou a morte do assassino. Era uma lei de censura. Em Porto das Caixas
a mulher criminosa fica livre e iluminada por um sol redentor. Fica pura, não
existe polícia ali. O outro aspecto era quanto ao suspense a la
Hitchcock, usado e abusado por todo filme comercial: em Porto das Caixas, o
espectador fica sabendo desde o primeiro plano do filme que a mulher vai matar
o marido, não tem jogo com o espectador. Resumindo, o filme era um cantochão,
em que procurei inverter toda a lógica do filme de mercado corrupto e
discriminatório.
O orçamento foi calculado em cima do filme que eu queria
fazer. Se houvesse mais dinheiro, ia trabalhar. Dinheiro para fazer filmes deve
ser gasto nos filmes e não em carros, apartamentos, etc. Mas eu achava um
absurdo que os salários dos intérpretes e da equipe fossem menores que o preço
do negativo, da matéria-prima, do laboratório. Também era o cúmulo que para
fazer filme no Brasil a gente tivesse que pagar um imposto altíssimo (até hoje
é assim), enquanto o filme feito no exterior entra no Brasil de graça, sem
pagar. Nada pode ser tão brutal quanto esse neocolonialismo, verdadeiro crime
contra a nossa soberania e a nossa cultura. Que política de mercado é essa? No
Brasil só existe possibilidade de se fazer filmes culturais, é bom para os
artistas e bom para os aventureiros e os exibidores/produtores, ou infantis, se
tiveram apoio do exibidor ou da televisão. O Cinema Novo aproveitou essa
oportunidade para mudar a face do cinema internacional, rivalizando com o
neo-realismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. E foi formando um
público de seus filmes, de jovens e amantes do verdadeiro cinema. Queríamos um
público de qualidade, com o qual o diálogo pudesse ser em alto nível. Cinema é
emoção, e a classe menos favorecida ama o cinema de qualidade.
Nossos políticos nunca entenderam que o governo e a
sociedade americanos usam o cinema como a grande prioridade, seja na
alimentação de seu orgulho, seja na formação cultural do povo, e principalmente
para vender seus produtos industriais, suas doenças e seus remédios, seus
costumes e seu poder. Os políticos brasileiros são burros e antipatriotas (falo
dos não-corruptos), por deixarem o país ser uma casa-da-mãe-joana para os
americanos.
Em Porto das Caixas moramos durante 22 dias numa casa
espaçosa, a maior do local. Tanto o elenco como a equipe ficaram hospedados lá.
O aluguel era mínimo. Irma Álvarez estava feliz e se concentrava bastante,
conhecendo cada canto da cidade. Eu curto demais locação em que você pode ficar
conhecendo e se relacionando bem com as pessoas. Elísio Freitas não deixava
faltar nada, nem na cozinha – onde comíamos do melhor – nem no equipamento
mínimo pedido. Mário Carneiro exagerou um pouco: seus dois auxiliares eram um
eletricista, que jamais tinha visto uma filmagem, mero proprietário de uma
modesta loja de aparelhos elétricos, inventivo e conhecedor de eletricidade; e
o outro, que tinha alma de santo, o Lídio era maquinista e puxava uma perna.
Fiquei meio perdido, pois alguns travellings noturnos tinham que ser
feitos com câmera e refletor na mão. Mas confiei na paixão. E soltei a frase:
“O melhor profissional é o que tem paixão pelo que faz”. Reginaldo Faria e
Paulo Padilha eram atores sérios que estudavam muito e davam o melhor de si. Ghigia,
Miele e Guerreirinho animava os dias de Porto. Trabalhei muito com os atores e
os dirigi demais durante o filme. Talvez isso tenha sido fruto do meu
aprendizado como assistente de direção de teatro. Com Reginaldo, por exemplo,
eu queria que ele andasse com os ombros caídos e que esta condição fosse se
acentuando durante o filme. Eu pensava no ator do filme Aurora, do
Murnau, mas também numa metáfora do povo brasileiro que carregava o piano de
nossa sociedade. Padilha tinha que parecer repulsivo o tempo todo. Ele e
Reginaldo Farias deram um grande exemplo de disciplina e dedicação. Régi me
disse que Porto tinha sido o seu melhor filme. Pena não termos feito outro
filme juntos – eu adoraria.
Irma era toda fascinação. Todos nos apaixonamos por ela.
Gracinha pura. Vedete de teatro de revista, ela tem uma moral e um encanto que
te colocam à distância. As vedetes são feitas para receber rosas, joias, e isto
não significa nada, não tem essa de (...) uma grande vedete de teatro de
revista ou do teatro lírico. Com elas é diferente. Exigem muito respeito. Bom
momento para executar a máxima de Nélson Pereira dos Santos, que aliás só valia
para os outros: trabalho é trabalho...
Todos davam muita verdade aos diálogos difíceis de Lúcio
Cardoso. Guerreirinho, inesquecível no papel do barbeiro amedrontado pela fúria
daquela linda mulher à procura de um cúmplice para o seu crime. Que ator e que
pessoa inteligente! Moderno, se seu tipo físico era mais para Peter Lorre, seu
talento era da grandeza de Orson Welles. Margarida Rey era como eu a conheci
fazendo Shakespeare com Celi e Tônia: não era o destino da tragédia grega, era
o grilo, aquele que substituía a repressão (política, de cadeia, etc). Grilo
como baixo-astral mesmo.
Sérgio Sanz era um soldado leve, jovem como um filme de
Godard ou um samba bossa-nova cantando por João Gilberto. Ghigia era a saudade
do nosso tempo de Largo do Machado, e Miele e Davi Conde interpretavam os
diretores que produção que nada tinham que fazer, pois, produção, produção
mesmo, havia pouco. Eles animavam a locação. Mário Carneiro era melhor que
Ziembinski na luz. Seja na artificial ou na luz de Deus. A luz de Mário era
pintura – no caso de Porto, gravura – e me fazia viajar por Goledi. Ele
abria as janelas do pequeno barraco e fazia milagres com os rebatedores. A luz
noturna de Porto das Caixas era um breu total e era preciso dar esse
equivalente cinematográfico. Mário Carneiro quase enlouqueceu o Vítor, do
Laboratório Líder. Nós mesmos fomos dar uma mãozinha ao pessoal da Líder para
conseguir aquele breu. O mesmo faria depois Luís Carlos Barreto com a luz,
maravilhosa de Vidas secas. A nossa luz era preta e cinza, criando em
cima das gravuras do grande mestre Goeldi. Fernando Duarte aprendia tudo e se
tornaria, depois, o grande iluminador que é, um dos maiores do Brasil.
Devíamos render as maiores homenagens à imagem
cinematográfica brasileira, que começou com Edgard Brasil, um grande gênio dos
anos 20 e 30, autor das fotos de dois filmes tão diferentes como Limite, de
Mário Peixoto e Ganga bruta, de Humberto Mauro. Fotos de consagrar qualquer
artista. É de Edgard Brasil, também A mulher de longe, de Lúcio Cardoso. Vejo
com tristeza que esses filmes não sejam o prazer dos Ciacs e Cieps que a
ignorância oficial teima e não sacar. A educação hoje em dia é audiovisual.
Ghigia cuidou dos figurinos, comprou tudo ali mesmo na feira
de Venda das Pedras. A cenografia fizemos juntos, eu, ele e Mário. Estava tudo
ali, a trezentos metros no máximo da casa onde morávamos. Ghigia ainda fez o
letreiro do filme, e só me deixou vê-lo depois de filmado e revelado: era uma
homenagem ao time bicampeão do Brasil no Chile, com o genial Garrincha e o
intelectual e mestre Didi. Adorei. Ghigia fez também o cartaz do filme,
substituiu bem a minha tristeza de não ter Ferdy. E Ghigia ainda trouxe, para
música, Tom Jobim. Não foi pouco, pois eu estava em dúvida porque o jovem
Sérgio Mendes não largava a locação, fazendo fotos de cena e imaginando a
música enquanto se filmava. Mas Tom é Tom. A continuidade de Margot era feita
em várias línguas, de difícil decifração, Zózimo Bulbul dava uma mão enquanto
faziam amor. Como filme no mínimo uma sequencia por dia, não tenho muito
problema de continuidade. A quantidade de negativo era tão pouca, que o
material que ia para a moviola para ser montado era pouco, ficava fácil. Ainda
sobrou negativo suficiente para Sérgio Sanz e Fernando Duarte fazerem um curta,
Aldeia.
O clima das filmagens foi ótimo até chegar o grilo:
Margarida Rey, uma tremenda atriz, de personalidade forte e sombria. Ela já
chegou pronta para a personagem. Repito, não era destino, era a nota e o acordo
grave, como dizia Tom Jobim. Margarida foi logo armando confusão durante a
tranquila noite de Porto das Caixas, onde tudo era prazer e alegria; armou o
tal jogo da verdade, que fodeu tudo. Claro que era a hora do filme ficar mais
denso e tenso. Irma tinha encontrado a arma do crime, que começava a pintar no
filme...A morte e o crime chegavam com ela.
Margarida foi logo perguntando, no jogo fatídico da verdade,
se eu sabia que tinha sido por minha causa que Adolfo Celi se casara com
Marília Branco e deixara o Brasil. Margarida era lésbia e amicíssima de Celi e
Tônia Carrero. Evidentemente, apaixonada por ambos. O nome de Marília Bianco
naquele momento foi o pior que podia acontecer. Guerreirinho logo percebeu e
começou a agredir Margarida. O clima ficou pesado. Foi sobrar para a ingênua e
pura Irma, que evidentemente começou a chorar. Irma, como Norma Bengell, chora
à toa. Qualquer grosseria ou muita emoção, era choradeira firme. O teatro de
revista brasileiro é muito sensível mesmo. Irma correu para seu quarto, corri
até ela e ficamos conversando, ela contou várias fases de sua vida, como a
experiência junto à companhia de Walter Pinto. Eu estava adorando, acabamos
abraçados mas sem sexo. Ninguém acreditou. Todos queriam acreditar que eu tinha
me aproveitado da condição de diretor. Irma confirmava que nós não tínhamos
feito amor, mas o clima mudou. O grilo estava lançado. Toda a equipe ficou
puta, contra mim. Eu estava tranquilo, dizendo que seguia as demagógicas
palavras de Nélson Pereira. Não trepei. E, para piorar a situação, naquele dia
íamos filmar a cena em que Padilha, o marido enciumado, mata o gato de Irma.
Ela não queria que feríssemos ou matássemos o gato preto que era do eletricista
Lídio. Ameaçou abandonar o filme, fez escândalo, chiliques, etc. “Você está
doída, acha que vou matar o gato, o gato do Lídio? Isso é maluquice,
frescura...” Chamamos um veterinário do Rio. Eram duas sequencias, uma em que
Irma encontra o corpo morto do gato e outra em que ela vai enterrá-lo nas
ruínas do convento de Cachoeiras do Macacu. Tivemos de marcar a primeira
sequencia, era noturna, para as quatro horas da madrugada e a outra para as
seis, já ao amanhecer. Demos uma injeção no gato e tudo saiu perfeito, horas
depois o gato estava ótimo, correndo, pulando. Melhorou minua situação com a
equipe e Irma estava comovida com a minha gentileza. Dois dias depois, o gato
morreu. Ficamos tristíssimos. Irma chorou o dia inteiro e nem pôde filmar.
Lídia se conformou, não foi nossa culpa. Mas a barra contra mim aumentou.
E piorou quando tivemos de filmar a cena em que Padilha,
enlouquecido de ciúmes, tesão, frustração e ódio, chama Irma, como personagem
de Porto das Caixas, de vagabunda. Eu queria cortar o plano dos dois juntos
para um close de Irma, reagindo àquele “vagabunda” como se fosse uma bofetada
terrível. Rodei o plano três vezes e Irma não reagia como eu queria. Exatamente
naquele dia Marília Carneiro viera visitar seu marido filmando e estava ali
vendo a filmagem no minúsculo barraco. Gritei “câmera” para Mário e gritei
“puta” para Irma. Ficou perfeito, ela reagiu genialmente, e quando eu disse
“corta” ela saiu em desabalada carreira, chorando, desesperada. Assim não dá,
pensei. Mas Mário foi atrás de Irma e sumiu, ficamos esperando pelos dois,
conversando. Até Marília resolveu ir procurar o Mário e encontra-lo consolando
Irma da mesma maneira que eu, dias atrás. Mas Marília fez escândalo. Brigo com
Mário. Guerreirinho dizia que era culpa de Margarida.
De noite, já em casa, Mário me disse que eu estava querendo
acabar com seu casamento com Marília e arrasar com a carreira de Irma. Era um
absurdo, mas senti que o pessoal achava que Mário tinha razão. Tomei um gole de
cachaça pura e me mandei pelo breu da noite. Saí sem destino, caminhando pelos
trilhos do trem. No caminho vejo apenas trilhos e algumas lâmpadas fracas.
Escuridão aumentando a solidão. Se eu queria o clima de Goeldi, tinha
conseguido. Era terrível. Penso nele e na sua morte solitária. Depois, na minha
solidão...Fazer um longa-metragem é pior, muito pior do que um simples
documentário, o diretor fica só e tem que ser assim, numa dor de
estraçalhar...Quer você queira ou não, tudo depende de você, tudo fica nas suas
mãos. Tudo depende do diretor, a responsabilidade é só dele. Cinema de autor é
pior, é total. E no Brasil, então, onde a fome a burrice são visíveis
emoldurando essa miséria e essa incompreensão! Mas, porra, não, tem nenhum
boteco nesta merda?!
Meu Deus, onde estará Gláuber? Quincas? Leon? Gustavo?
Gianni? Onde estarão? Eu amo esta mulher de Porto das Caixas, ela é insegura,
pura, rigorosa, valente e radical. O filme é ela, tem que ser assim como ela é,
ou como o meu amor e minha paixão a veem – o que é a mesma coisa. O Cinema Novo
deve ser assim, cada um com sua paixão. Botando para fora a emoção. Mas, porra,
estão todos contra mim. Mário está de porre! Imagine se quero alguma coisa
errada para ele, eu adoro Mário, é um irmão mais do que querido. Acabar a
carreira dela? Acabar com seu casamento! Não posso digerir. Mário está louco –
logo eu que só acredito no cinema de sentimento.
Mas, porra, Porto das Caixas tem que ter a emoção da
música de câmara, mais o equivalente daquele grito do Pitanga em Barravento – a
revolução do Cinema Novo, aquela rebeldia que também trago no peito por tudo
que vejo à minha volta em qualquer parte do mundo onde eu esteja. Menos no bar.
Onde está esse boteco que tem que existir aqui, como aquele da estrada de
Arraial? Cidade sem bar é o fim da picada. Logo vi, lá longe, uma luzinha
amarela, pobrezinha, um barraco-boteco.
No boteco só tinha cachaça e coca-cola. Pedi um
samba-em-berlim, misturando as duas. Havia um pequeno balcão, com um senhor
mulato servindo e providenciando uma mesa com um caixote para eu me sentar, com
um negro de boa aparência, meia-idade, mas ainda robusto. Tomava seu samba. Fui
sentar a seu lado, batemos longo papo sobre Didi e Garrincha. Falamos de sua
infância em Porto das Caixas, o movimento que havia na cidade até a deposição
de Getúlio Vargas em 1945, a decadência e o abandono depois do fim da fábrica
de cerveja dos alemães, das mulheres sestrosas que viviam onde nós morávamos
agora, das ruínas de Macacu – ele se vangloriava de, na juventude, ter
carregado dois sacos cheios às costas.
Tomamos vários sambas-em-berlim falando mal da vida e das autoridades,
já estávamos abraçados, rindo. Amanheceu, o dono começou a dizer que estava na
hora. Paguei à conta, me levantei, ainda rindo mas já vendo em dobro, olhei
para trás, procurando o amigo, e vi um toco, um busto: o negro não tinha as
duas pernas. Os sacos que ele carregava pesavam muito. Era um retrato cru
demais. Agora eu pen sava em Newton Cavalcanti.
Voltei pelos trilhos, cambaleando, com saudades de casa e
das filmagens. Mas estavam me esperando, sentado na calçada em frente à igreja
onde, um ano depois, começariam os milagres da imagem de Jesus Cristo
sangrando, com milhões de peregrinos visitando Porto das Caixas. Nos abraçamos,
choramos, o porre do Mário era do tamanho do meu. Miele apareceu para dizer que
tinha marcado um jogo da equipe com o time de futebol de Porto das Caixas. Davi
Conde disse que achava que dava para folgar naquele dia e recuperar no dia
seguinte. Guerreirinho e Ghigia iam preparar um almoço de primeira linha.
Depois podíamos fazer uma festa.
Miele era um grande meio-de-campo: mesmo com sua bombinha de
remédio contra asma, que ele usava o tempo todo. Tinha muita noção do jogo,
cabeça erguida, vendo o campo todo. Fizemos um bom meio-de-campo juntos. Fiz
uma jogada sensacional, dando três chapéus nos beques adversários e depois uma
bicicleta, a bola bateu no travessão. Miele me disse que, se fosse no Maracanã,
a torcida do adversário estaria aplaudindo de pé. Ríamos muito quando Guerreiro
corria e ia soltando todos os gases de sua barriga enorme, dando peidos
monumentais. Mário fechou o gol. Ganhamos. Marília estava feliz e carinhosa.
Irma, linda e sorridente. A paz havia voltado. A comida estava divina e
requintada. Podíamos no dia seguinte filmar o crime. Perguntei ao Lídio se
estava tudo bem com o machado, a arma do crime. Estava brilhando me responde.
Todas as sextas-feiras eu, Mário, Ghigia, Serginho Sanz e
Fernando Duarte íamos a Líder, que ainda ficava na rua Álvaro Ramos, em
Botafogo, ver o copião. Saíamos contentes, apesar das caretas do Vítor. Numa
dessas sextas-feiras fui ao Gôndola e encontrei Miele sentado com duas mulheres
sensacionais; uma era Isabela, morena, baiana, desbocada, descabelada e estava
para o que desse e viesse – eu fui e me apaixonei.
Fui morar com Isabela no hotel Plaza. Isa era atriz,
trabalhara no episódio de Marcos Faria em Cinco vezes favela. Era
também, nesse tempo, aeromoça da Panair do Brasil. No hotel Plaza, na avenida
Princesa Isabel, só nas noites de sexta, depois, durante a montagem, o dia
inteiro. A Líder era perto do Plaza, eu ia e voltava a pé. Vítor achava
impossível revelar um filme com tão pouca luz, mas eu e Mário insistíamos que
queríamos assim: Porto é assim, outro poema deve ser diferente. A
tristeza é que, terminado um filme, além da separação do elenco e equipe, que é
como o fim de um casamento quando os parceiros ainda se amam, se tem a certeza
de que só fizemos parte dele: a imagem está ali, mas e o som? Vai ter que
dublar e eu não gosto de dublagem. Irma tem que virar brasileira, sem sotaque.
Mas quem dublará a argentina Irma? (Na Líder, uma grande alegria, a minha amiga
e querida Maria Ribeiro fora convidada para fazer a protagonista de Vidas
secas, Nélson Pereira a tinha chamado. Genial. Viu como foi bom ter chovido
e adiado Vidas secas? Nélson Pereira ia sair para um grande filme. Olho
de cineasta.)
Em Porto das Caixas o nevoeiro virou personagem importante.
No último dia de filmagem, que foi o fim do filme, mudei muito o argumento do
Lúcio, que visualizara uma chuva com Irma molhada e correndo para uns arbustos,
embaixo de uma árvore, para não se molhar mais, encontrado, no matinho, um
outro gato. Achei óbvio demais e preferi seguir a neblina que aparecia todas as
manhãs em Porto. Ele saía do nevoeiro após o crime e caminhava, iluminada pelo
sol. Radicalizei a revolta anárquica.
Quando voltei definitivamente para o hotel Plaza, recebi
duas notícias: uma boa, a volta de Joaquim Pedro depois do seu curso sobre
cinema direto. Quincas casara por correspondência com Sará e fora passar a
lua-de-mel na mesma casa onde ficamos em Arraial do Cabo, na praia dos Anjos. A
outra notícia era terrível: Lúcio Cardoso sofrera um derrame e estava com todo
o lado direito paralisado. Fui vê-lo no hospital. Ele me recebeu sorrindo, como
sempre fazia, mostrando várias notícias saídas nos jornais, falando das
filmagens de Porto das Caixas, com fotos de Irma, Reginaldo e Padilha. Mostrava
os recortes, feliz; não podia falar, apenhas grunhia sons estranhos, e eu não
sabia se ria com ele ou se chorava, mas ele continuava com a mesma alegria, me
mostrando o que podia fazer com a mão esquerda. Seus desenhos eram ainda mais
perfeitos, infelizmente não dava para ele escrever, formar uma frase ou um
pensamento. Lúcio não se mostrou triste ou desesperado em momento algum. Não
poderia acabar o seu romance O viajante, mas em compensação iria pintar
um quadro por dia com a mão esquerda. Ainda me mostrou um argumento que
escrevera antes do derrame, chamava-se Com os olhos no chão. Um terrível libelo
contra o dinheiro e a usura.
Com o amor, o carinho e a dedicação de sua irmã Lelena,
Lúcio viveria mais seis anos, até 1968, ano do AI-5. Fez ainda uma maravilhosa
exposição de pintura, brindada por uma brilhante crônica do poeta maior, Carlos
Drummond de Andrade, sempre atento à vida dos grandes artistas brasileiros.
Lúcio não veria Porto das Caixas nem A casa assassinada. Em seu
diário, vê-se que previu com grande precisão essas duas mortes: os dois
derrames, o de 62 e o de 68. Pouco antes de morrer ele já levantava o pé
direito até a altura do braço direito estendido, e já podia escrever frases e
pensamentos. Que energia, que extraordinário artista e ser humano, sem dúvida
dos maiores que conheci. Lutou até o fim contra a morte. E Otávio de Faria
acompanhou essa luta. Quando Lúcio faleceu, Otávio publicou as várias versões
do inacabado Viajante, num exemplo maior de amizade, dignidade e respeito de um
escritor por outro. Otávio considerava Lúcio Cardoso o maior romancista
brasileiro. Conviver com esses dois grandes mestres foi uma enorme dádiva para
mim.
Em 1973, no sítio de Pink Wainer, em Itaipava, Petrópolis, adaptei O
viajante. Como Lúcio, já fiz várias versões desse roteiro sem conseguir
termina-lo. É lindo demais. Volto a dizer que nunca entendi a sacanagem e a má
vontade dos meus amigos e da intelectualidade brasileira com Lúcio. Maleita,
seu primeiro romance, tem uma indignação e uma força que vejo muito pouco
nesses romances marxistas – dos quais nunca consegui ultrapassar as dez
primeiras páginas. Com exceção de Leon Hirszman, vi todos aqueles marxistas do
CPC se venderem com seu trabalho e sua alma à TV Globo ou ao sr. Roberto
Marinho. Como ousaram esculhambar Lúcio Cardoso? Um artista digno, marginal até
a medula. Ipanema devia se chamar Lúcio Cardoso.
Fiquei contente quando Champs me disse que ia filmar Luba:
a morte em três tempos, do grande romancista paulista Luís Lopes Coelho.
Produzido por Elísio Freitas, a atriz seria Irma Álvarez. Mário Carneiro na luz
e Paulo Emílio Salles Gomes como ator, na pele de um delegado, que na vida era
o delegado Leite, amigo de Almeida Sales e frequentador do barzinho dos amigos
do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Frequentando a Líder, conheci o montador argentino, já acariocado, Nello Melli.
Eu gostava dos seus papos e da rapidez com que montava os filmes. Era rigoroso
e organizado, mas muito legado e sensibilíssimo. Chamei-o para montar Porto.
O cinema brasileiro tinha melhorado sua imagem junto ao público, com o prêmio
de O pagador de promessas. Havia Assalto ao trem pagador, Os
cafajestes de Ruy Guerra. Gláuber também ganharia um prêmio no Festival de
Porreta Teme na Itália. Eu continuava fixo na ideia de que o Cinema Novo era
Barravento e seria Porto das Caixas, separando o joio do trigo, seguido por
Pérsio, pintor e marido de Edla.
Chega um convite para o Festival de Florianópolis. Deixo
Nelo Melli organizando o material e vou com Isa para Santa Catarina.
O ritmo de Nello Melli era fantástico e ele estava adorando
o filme e a montagem que fazia. Ghigia vinha à montagem e continuava a fazer
minha cabeça para Tom Jobim cuidar da música. Eu já estava de acordo, mas
Ghigia insistia, entusiasmado. Sérgio Mendes ficaria para outro filme, mas era
bom. Quem podia ser contra Tom Jobim? Tom/Villa-Lobos, outra vez.
Fomos para Florianópolis, terra dos dois Marcos, o poeta Konder e o cineasta
Faria. Eu conhecia Santa Catarina somente pelas histórias que os dois contavam,
principalmente Marcos, de sua infância em Itajaí, que eu adorava. Gente
misturada demais, parecia a Bahia branca, brasileira demais, apesar do ar e da
cor europeia. Muitas pessoas de cinema no Festival. Simpaticíssimas. Conheci
muita gente. Fiquei amigo de Fernando Peixoto e Ítala Nandi. Fernando era ótimo
crítico de cinema e teatro e estava cara que Ítala iria longe. Combinados um
roteiro juntos sobre a resistência de Brizola durante a renúncia de Jango, em
Porto Alegre, quando foi cometida a primeira grande quebra de hierarquia
militar. Brizola dera ordem aos cabos e soldados da Aeronáutica para que prendessem
os oficiais que tinham tomado e subido nos aviões para bombardear o Palácio do
Governador. Executada a ordem, nós achamos genial. Pena este roteiro não ter
ido para frente, talvez por causa das deliciosas pernas de Ítala, espertíssimas
embaixo da mesa, e de Isabela era a mulher mais ciumenta do mundo. Aquele
movimento iniciou as várias quebras de hierarquia militar dos anos Jango e do
golpe militar, com a invenção da guerrilha urbana de Marighella e a rural de
Lamarca.
Os ciúmes de Isabela ficaram famosos em Florianópolis.
Salvyano Cavalcanti de Paiva até relatou em sua crônica de jornal uma viagem
nossa de elevador: descemos do décimo andar do hotel onde estávamos, elevador
cheio; num andar mais abaixo entra a bela Marlene França, musa de Gianni Amico,
em sua primeira viagem ao Brasil. Morena, baiana, apimentada, linda de morrer.
Elevador cheio, eu ao lado de Isabela.
- É você o famoso Paulo César Saraceni? Tão jovem...-
pergunta e observa Marlene.
- É melhor ficar longe dele. Se não, vai haver muitas penas
voando por aí, não é, colega? – interfere Isabela.
Como aquele elevador chegou ao seu destino, só Deus sabe. O bate-boca das
baianas refazia toda a obra de Jorge Amado. Felizmente a turma do deixa-disso
deu um basta.
Paulo Emílio estava adorando o Festival. O grande pensador cinematográfico
aderira inteiramente ao cinema brasileiro: ator no filme de Champs, viajando
pela Bahia, se apaixonou e escreveu o roteiro Dina do cavalo branco para
a atriz Dina Skerr, mulata baiana que botava Anita Ekberg no colo. Olhos
verdes, pele canela e corpo monumental. Paulo Emílio também escrevia seu livro
sobre Humberto Mauro. Livro enorme e fundamental. Intelectual requintadíssimo
saído da escola de André Bazin e Henri Langlois. Autor de um livro famoso sobre
Jean Vigo na Europa. Paulo Emílio aderia ao Cinema Novo.
Irma Álvarez era a grande vedete do Festival de
Florianópolis. Tendo filmado Porto das Caixas e Luba, estava
radiante de beleza e fulgor. Por motivos óbvios, não pude estar muito com ela
em Florianópolis. Acho que a paixão é uma só, que vai tomando formas diferentes
durante a vida. A forma dessa paixão naquele momento era Isa. Eu gostava do
ciúme, do seu temperamento esquentado. (Mas sabia, como no estilo de Machado de
Assis, que o feitiço viraria contra o feiticeiro...e seria possível? Mas isso é
bem mais tarde, quando entrarem em cena Capitu e Bentinho, em 1967...)
Em Santa Catarina, eu e Isa fomos a Joinville, a convite de
um cineclube da cidade. Cidade alemã, da Alemanha, antes de ser destruída no
fim da Segunda Guerra Mundial. Fiquei encantado com a cidade. Eu e Isa nos
amamos muito e eu imaginava um filme baseado no livro de Michel Butor, escritor
do nouveau roman francês, que li em Roma e sobre o qual conversei
longamente com Marília Pinto Carneiro.
Depois da exibição dos curtas brasileiros, os pioneiros do
Cinema Novo, lançados pela Bienal de São Paulo, e depois da exibição de Arraial
do Cabo e de Couro de gato, com uma encantada exposição feita por
Paulo Emílio, o cinema veio abaixo de aplausos e alegria por ver nascer algo
novo. Aquele público esperto logo embarco freneticamente. Subo até o palco.
Paulo Emílio estava interessado em Porto das Caixas, que estava ainda
sendo montado por Nello Melli, no Rio e em Botafogo. Queria saber o porquê do
nome, o seu título. Nunca pude imaginar outro nome para Porto das Caixas;
era como Arraial do Cabo, era como os nomes das várias cidades por onde
passei em Santa Catarina, mas Paulo Emílio queria mais; disse-lhe que não podia
fazer como Vinícius de Morais fez ao colocar na valse de Porto das Caixas (de
Tom Jobim) o nome de Derradeira primavera. Irma Álvarez subiu ai palco e
foi aclamada com grande amor pelo público.
Paulo Emílio se encantou e escreveu um artigo no Estadão,
depois de já ter visto a mixagem de Porto das Caixas. Eis o artigo:
A proposta do Festival de Cinema em Florianópolis
É necessário não cair no exagero de dizer que de Cinema Novo
a Semana só teve o nome e duas fitas. Por minha parte foram numerosas as
experiências que vivi nesse terreno, sem falar da fundamental descoberta
interior.
Vou limitar minhas referências a três momentos em que senti
o Cinema Novo. Numa das sessões, Couro de gato foi projetado sem solução
de continuidade logo após Arraial do Cabo. A tempestade de aplausos que
recebeu a fita de Paulo César Saraceni prolongou-se durante toda a apresentação
dos letreiros da obra de Joaquim Pedro de Andrade, já vista na véspera.
Houve um momento em que o entusiasmo era simultaneamente
dirigido à fita que se tinha visto e áquela que se ia rever. É como se o
público tivesse vislumbrado agudamente, através de filmes totalmente diversos
pela temática, inspiração e estilo, a unidade misteriosa de um fato novo. Esse
sentimento de fato novo me foi transmitido ainda mais intensamente por um
depoimento do jornalista Cláudio Abramo, feito publicamente no palco do Cine
São José. Falou-se de conversão ao cinema brasileiro e não encontro expressão
mais adequada para qualificar a maneira como Cláudio Abramo falou de Couro de
gato e do episódio “O favelado”, de Marcos Faria, de Cinco vezes favela,
ao mesmo tempo que prestava homenagem à atriz que falara antes dele.
A atriz era Irma Álvares e esse nome nos conduz à terceira
vivência de Florianópolis que pretendo relatar. Um dia eu olhei para ela e
disse: “Você tem cara de atriz do Cinema Novo”. Ao voltar a São Paulo, vi uma
cópia do trabalho de Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni, no qual
Irma Álvarez interpreta o papel central, e fiquei abismado com a profundidade
da minha adivinhação. Aquela Bovary que o contexto do subdesenvolvimentismo[MT1] torna
feroz, aquela fascinante e atroz Capitu suburbana é o primeiro grande
personagem feminino nascido no cinema brasileiro. Para não asfixiá-lo dentro ou
fora de mim, tão cedo não vou tentar definir o Cinema Novo Brasileiro. Mas ele
existe.
Paulo Emílio Salles Gomes
Suplemento Literário do O Estado de S. Paulo, 1962.
Volto ao Rio e à montagem. Nello Melli não me esperara, já estava tocando a
montagem, me disse que não tinha muitas opções, o filme foi filmado já montado,
vou seguindo a atmosfera densa do filme. Que mujer!
Nello tinha entendido inteiramente o ritmo de cantochão de
Porto, a ênfase no ponto morto, nas pausas rosselinianas, com o molho inventado
enquanto eu filmava. Era preciso aproveitar tudo que acontece naquele mágico
momento enquanto a gente filma. Se as antenas estiverem ligadas, Deus ajuda, e
você viaja através dos limites e gangasbrutas. Que prazer era ouvir Nello
comentar cada plano do filme e intercalar as histórias de Torre Nilson e do
pai, sua paixão cinematográfica. Mas o som não estava lá, eu tinha que pensar
na dublagem, nos ruídos e na música de Tom. Tinha que me decidir quanto à voz
de Irma. Segui como sempre a minha intuição, que viajou até o recreio do Liceu
Francês: via Nani, andando com seus passos chaplinianos, via Amália ao seu lado
e, no fundo, uma ruiva, judia e grande atriz, já desde menininha. Era Teresa
Raquel.
A dublagem foi no Hélio Barroso, também em Botafogo. Bairro capital do Cinema
Novo. Muito sofrimento, mas Teresa Rachel e Irma ficara uma só. Nelson Camargo
e eu mesmo emprestamos nossas vozes ao filme. Nello estava contente – logo,
tudo certo. Vamos para os ruídos, o convívio com Geraldo José e Walter Goulart
com suas mágicas sonoras eram de um prazer enorme. Eles dentro do estúdio,
transformavam tudo em som, usando pequenos acessórios, de uma forma
deliciosamente artística, como uma brincadeira de criança fazendo arte. Os
ruídos todos da filmagem ficaram muito mais verdadeiros pela magia do cinema.
Adorei. A dublagem não, mas os ruídos sim. Esses técnicos são grandes músicos e
inventores.
Aí veio Tom Jobim. Capítulo à parte. Que delícia de gozo
observar Tom ver o filme na moviola, comentar a imagem e imaginar os acordes.
Os acordes viraram personagens, o coro que comentava o espetáculo da tragédia
grega. Margarida Ray não era o destino, como muitos bobos pensaram, era aquele
acorde do Tom que dava arrepio. Ele era, meu Deus, como aquela guardiã e
testemunha do segredo que só ela sabe e que é capaz de fazer sangrar a imagem
de Cristo. A mão oculta que se manifesta por sinais de imagens sonoras tão
sensíveis que nem de longe os computers de última geração conseguem
captar. Terrible woman, exclamava Tom. Ele chamou Bebeto para a flauta,
Tião Neto para o baixo e ficou no piano. Além deles, Villa-Lobos, através de
uma grande instrumentista da Orquestra Sinfônica Brasileira no celo.
Era um tema só, desenvolvido de várias formas, dependendo da
atmosfera do filme. Vários arranjos fundiam-se com a imagem falada e musicada
em ruídos e melodias. Mais tarde, Nara Leão gravou, divinamente, a Derradeira
primavera de Porto das Caixas.
A música de Tom tinha aquele mesmo abandono de Goeldi, de
Lúcio. E o interessante é que não era o seu equivalente, nem sua ilustração,
era outra criação que seria somada à emoção do conjunto chamado filme. Acho
graça dos defensores de decupagem de ferro. O produto é igual à soma de todos
os momentos do filme. Uma folha que cai no meio de um plano rodado pode ser um
toque definitivo para a reflexão que o filme quer instigar. O erro, para mim, é
um ato criador. Sempre o considerei.
Agora faltava mixar. Fui para São Paulo, orçamento previsto
e, já na Paulicéia, aproveito e mostro o filme ao Paulo Emílio. Sérgio Saraceni
estava em São Paulo e também aproveita para ver o filme. No final da exibição,
Paulo Emílio fica impressionado e marca um encontro com gente na Boca Baiúca,
onde cantavam Johnny Alf e Claudete Soares. Som da pesada, pré-Bossa Nova,
modelo e toques para o movimento.
Paulo Emílio foi logo dizendo que não dialogava, era conferencista e por isso
ia falar sobre sua emoção ao ver o filme. Ficamos ouvindo sem interrompê-lo
durante horas, ouvindo aquele discurso de mestre encantado com uma excelente
música ao fundo. “Irma era a primeira grande personagem feminina do cinema
brasileiro”. Aquela mulher assassina. (Depois, já no Estadão, comentando o
Festival da Bahia, falaria dos crimes que compensam. Paulo Emílio, ai saber que
eu me lembrava de Stroheim no Festival de 1954, em São Paulo, disse que nenhum
intelectual, jornalista ou cineasta tinha falado da importância da vinda de
Stroheim e André Bazin. Que maluquice esta intelectualidade acadêmica e
literária é atrasada e incapaz de ver que arte é o Cinema!)
No final, Paulo Emílio perguntou para o calado e respeitoso Sérgio, meu irmão:
- Você trabalha em quê? Sérgio lhe diz que é advogado. Paulo Emílio ordena,
então, que Sérgio seja o produtor dos meus próximos filmes.
Sérgio nunca largou o Direito, que com competência continua exercendo, ajudando
os amigos, mas se tornou também o produtor Sérgio Saraceni.
O artigo de Paulo Emílio sobre o Festival da Bahia é o
seguinte:
O sentimentalismo é algo absolutamente indispensável à
alquimia de um filme. É a única explicação que encontro para o sucedido com Porto
das Caixas, não só preterido pelos dois favoritos, mas que foi inclusive
colocado pela apreciação média atrás de Três cabras de Lampião. Como Assalto
e Tocaia. Porto das Caixas é uma obra que se nutre de crime. Só que nas
fitas dos Robertos, respectivamente, Faria e Pires são homens que matam, ao
passo que na de Paulo César Saraceni é uma mulher. Não é, porém, essa
circunstância que determina o comportamento do público, pois é sabido que os
espectadores cinematográficos são, como tribunal do júri, mais indulgentes com
mulheres do que com homens. O que faz realmente a diferença é o fato de que a
assassina de Paulo César Saraceni e Lúcio Cardoso não ter, como o Tião ou o
Firmino das outras fitas, amor, filhos ou mesmo, propriamente, ódio. A agudeza
extrema do desgosto e do fastio que faz a mulher de Porto das Caixas
matar não pode com efeito ser assimilada automaticamente ao ódio.
A natureza exata da paixão, terrível e humana, que a faz
agir não é claramente expressa ao longo do filme. Essa tensão obscura, esse
mistério gelado dão alento ao drama cuja secura implacável lança o espectador
num jogo cujas regras são diversas das que lhe são familiares em cinema. As
cartas dos realizadores de Assalto e Tocaia são conhecidas de toda gente,
nunguém ignora o delineamento da aventura e o destino final de Tião e Firmino.
Estamos, porém, em pleno jogo do faz-de-conta e o espectador se comporta
interiormente como se de nada desconfiasse. A primeira coisa que desnorteia o
público de Porto das Caixas é a explicitação imediata e inconfundível da
ação, é o fato de o desenvolvimento dramático estar desde o início, e
literalmente, na cara. Habitualmente objeto e cúmplice de engano, o espectador
não acredita que tudo possa ser tão simples assim e permanece à espera do
tradicional inesperado. A mulher deseja matar o homem com quem vive; para isso
compra um machado e procura um cúmplice para auxiliá-la no intento. O
espectador entende a clara exposição e aguarda os obstáculos, a complicação.
Quando esta não chega, ou antes, surge mas não a ponto de rechear e
diversificar o entrecho; quando o espectador percebe que tudo o que foi
anunciado no começo se está processando com ordem e método, que o filme
consiste nisso, então se sente enganado de fato e se retai. Fazendo isso ele se
perde, perde o fio e o filme. Aquilo que procurava inutilmente no entrecho e
nas situações, isto é, a fonte de emoções, se encontra inexaurível no
personagem central, cuja interpretação pela atriz Irma Álvarez possui uma
dimensão sem precedentes na cinematografia brasileira. Do momento que seja
facultado ao espectador este ângulo exato de apreciação, Porto das Caixas
aparecerá com o filme mais estimulante realizado na atual fase renovadora do
cinema brasileiro. Mas nem sempre será fácil a vinculação da assassina com o
público, e não apenas devido à ausência do sentimentalismo simplificador. Ela
emerge de uma situação social e nacional definidas mas que não a definem. Ele é
que lança alguma luz sobre o meio e o tempo que a produziram. A primeira vez
que falei de Porto das Caixas, a personagem me sugeriu semelhanças com
Emma Bovary transportada da burguesia provincial francesa do século XIX para o
subdesenvolvimento atual, ou de uma Capitu situada em subúrbios ou nas regiões
economicamente decompostas do Estado do Rio. Existem talvez algumas raízes
comuns entre essas personagens imaginadas e a heroína de Paulo César Saraceni.
A assassina de Porto das Caixas, porém, não é mulher que se nutre de
veleidades, e sua perfídia, se existe, não é daqueles que constituem apenas
certo estilo de ser. O que marca a personagem interpretada por Irma Álvarez é a
tranquila virulência, é a força sem mácula de quem caça cúmplices não à procura
de solidariedade moral mas tão-somente de auxílio físico. Ela assume o crime
para se libertar do nojo. A figura velada pela severa capacidade do sofrimento,
dura, inflexível, feroz, só e verdadeira- porque isenta de sentimentalismo-
acaba nos envolvendo e se torna fascinante como a virtude.
A preferência do público e do júri oficial do festival de
cinema brasileiro por Assalto ao trem pagador, Tocaia no asfalto
e até por Três cabras de Lampião foi equilibrada e retificada pela
Associação Baiana de Críticos Cinematográficos, que concedeu seu prêmio
principal a Paulo César Saraceni pela realização de Porto das Caixas.
O Festival da Bahia premiou com um berimbau de ouro a música
de Tom Jobim. E Porto das Caixas ganhou o prêmio da crítica, presidida
pelo jovem Caetano Veloso.
Mário Carneiro marcara mito a luz de Porto e tivemos que
convencer o Vítor, que acabou entrando inteiramente no filme. Lembro-me da
nossa terrível aflição ao ver o saudoso seu Ferreira montar o negativo
dos nossos filmes numa sala apertada, sem luvas. Em qualquer laboratório que eu
tinha visto, na América ou na Europa, era tudo branco, aventais, luvas,
pareciam médicos operadores. Na Líder, seu Ferreira montava sem luvas e
fumando. Tinha grande habilidade. A gente via a cinza do cigarro crescer,
enquanto rezava, torcendo para que ela não caísse bem em cima do negativo. Se
as cinzas caíssem nos fotogramas, arruinariam o plano, ou a sequência. Mas seu
Ferreira era perfeito: na hora em que a cinza ia cair, ele botava o cigarro no
cinzeiro. Não sei dos outros filmes que ele montou, mas Porto as cinzas não
caíram, eu fiquei de olho.
Entusiasmado com a boa recepção do filme na sua primeira cópia, Elísio Freitas
resolveu fazer uma sessão do filme em avant-première, convidando seiscentas
pessoas, exatamente o número de cadeiras do cinema. Fui contra. Alberto
Shatovski, que tinha gostado do filme e estava tentando convencer Severiano
Ribeiro a lançarem o filme num bom circuito, também não gostou. Os sete prêmios
de Arraial e as minhas entrevistas e reportagens nos jornais e revistas criaram
um grande interesse pelo filme. Era um bom momento de bilheteria dos filmes
brasileiros. “Elísio”, falei, “deixa o Shatovski marcar o filme primeiro”. Mas
os amigos dele queiram ver o filme. Elísio, entusiasmado, só falava do filme,
não quis me ouvir nem a ninguém.
A sessão foi marcada para a meia-noite de sábado no Bruni
Copacabana, rua Barata Ribeiro. Cinema de seiscentos lugares, seiscentos
convites. Quando o filme começou havia 3 mil pessoas. Três mil, gente de pé,
sentada no chão, no colo, onde desse. Olhei quase tudo, olhei para Ghigia e
fomos saindo em direção ao bar mais próximo para enchermos a cara, falando mal
do mundo, da vida e da burrice humana.
A expectativa e a tensão eram grandes, havia muitos amigos
achando que iam ver o filme da sua vida, outros com má intenção (o CPC, por
exemplo).
Além de Couro de gato, eu tinha gostado do episódio de Leon Hirszman que
se chamava “A pedreira de São Diogo”, genial ensaio eisensteiniano em que uma
pedreira ameaça a população de uma favela. Dos outros três episódios de Cinco
vezes favela não gostei. Sabia que o pessoal do CPC, que estava todo na sessão,
estava puto com minhas defesas do cinema de autor. Um cineasta é como um
romancista, um poeta, um pintor. Cinema é arte. O pessoal do CPC queria a
revolução do panfleto ou na forma de filme comercial, com conteúdo
revolucionário marxista. Eu duvidava, preferia a sinceridade do artista. São os
artistas que têm as antenas.
Então, para mim, o Cinema Novo era Aruanda, O
poeta do Castelo, Arraial, Couro de gato, Barravento, Pedreira
de São Diogo e Porto das Caixas. A lista era pequena, mas, em pouco
tempo de vida, já ter esses sete filmes, tava bom demais. O Cinema Novo tinha
que ter a dimensão do neo-realismo e da Nouvelle Vague. Cada um na sua.
Vi Os cafajestes, achei-o um bom filme, mas com muito de Nouvelle
Vague (Ruy Guerra faria melhor no segundo filme.) Norma Bengell, Jece
Valadão e Daniel Filho, ali, são nouvelle-vague. Parece um filme feito com mais
bossa e talento, mas é como os do Khouri. São filmes brasileiros sim, mas não
são Cinema Novo. Como não é O assalto ao trem pagador e O pagador de
promessas. Nem os de filmes de Nelson Pereira dos Santos, antes de Vidas
secas. Antes do Cinema Novo, só Limite e Ganga bruta são
cinema-novo.
Nara Leão estava namorando Ruy Guerra, elogiei o Ruy, mas
dei uma alfinetada babaca: disse a ela que podia dar certo porque o Ruy tinha
um lado de Ronaldo Bôscoli. Nara riu, não entendi, mas ela estava feliz com a
situação.
Isabela não gostou de eu não ter gostado do filme do Marcos
Faria, o episódio em que ela atuava em Cinco vezes favela. Achou que eu não
gostava de filmes populares. Popular para mim tem que ser bom.
Gláuber tinha chegado da Europa mas baiano do que nunca, e agora com a certeza
de que as cartas – minhas, de Joaquim Pedro e do Gustavo Dahl – diziam a
verdade. Ficou amigo de Gianni Amico e da turma “quente” da Europa. Tinha feito
sucesso, viajou a Cannes, onde esteve com Anselmo depois do prêmio do Pagador.
Mas tinha ficado com o prêmio maior, que foi a companhia da bela Regina
Rosemburgo, depois Simonsen, depois Leclery, uma das maiores pérolas que o
eterno feminino nacional criou. Só falar de Regina, de sua beleza, de sua
inteligência carioca, da importância que teve para o Cinema Novo daria um
livro...
Gláuber, que era cangaceiro, não gostou muito de todos terem
se apaixonado por Regina no Rosati. Marco Bellochio se apaixonou até demais. Gláuber
ficou na bronca.
Regina era amiga de minha irmã Norma, morava no Leme,
família burguesa. O tesouro da família. Preparada desde menina para seduzir,
não fazia o menor esforço para isso, nem lhe interessava, ela era a própria
sedução, espontânea e natural. Casou-se com Walinho Simonsen e a família era
dona, nos anos Jango, de vários edifícios na avenida dos Cham-Elysées, em
Paris. Ela era a rainha do café da Panair. Era inquieta, não tinha limites.
Joaquim Pedro chegara de sua lua-de-mel na moita. Veio
preparado e disposto a fazer um filme de cinema direto. Ligou-se com Luís
Carlos Barreto e Armando Nogueira para o projeto de Garrincha, alegria do povo.
Gustavo Dahl continuava no Centro Sperimentale e se preparava para fazer seu
filme, prova final do curso. Continuava envolvido com Martine e a holandesa que
me acudiu na minha doença romana, Lisbeth.
A sessão de Porto foi tumultuada. Vaias, aplausos,
gritos, urros, o pessoal chegou a levar um gato. Gláuber me contou que o CPC
foi mesmo disposto a fazer provocações e fez. Porrada no fim do filme, na sala
de espera, galeria do Bruni-Copa. Houve de tudo - e durante meses as brigas e
as porradas iriam continuar nas várias festas que frequentávamos. Os amigos
cineastas gostaram, em abraçaram muito, defenderam o filme para valer. Cacá
chorava, Gláuber urrava, eu e Ghigia, já de porre, víamos aquilo tudo como um
triunfo (mas que iria foder a carreira comercial do filme). O melhor da sessão
foi ouvir Nelson Pereira dizer que eu devia sacudir os colhões para todos, que
eu tinha feito um grande filme e que ele iria mudar todo o roteiro de Vidas
secas depois que viu Porto. O entusiasmo de quem gostou era forte, tão
grande quanto o ódio de quem não gostou. Nélson declarou no jornal que (tema
para ironias futuras) Porto era melhor que Antonioni. O pior da sessão:
Isa tinha odiado o filme, não tinha entendido nada. Como era possível defender
aquela mulher, adúltera e assassina? Elísio ficou feliz, ria de alegria. Irma
tinha adorado. Pedia a Elísio Freitas que inscrevesse o filme em Cannes ou
Veneza. Chorava e me beijava sem ligar para os olhares furiosos de Isabela.
Otávio de Faria e Marcos Konder Reis gostaram. Ana Letícia foi me agradecer por
Goeldi – o filme é dedicado a ele.
Mas, como eu e Alberto Shatovski prevíamos, os Severiano nem
quiseram ver o filme depois da repercussão dessa sessão. “Não faz mal”, dizia
Elísio, “depois de Cannes ele exibe”. Fiquei impressionado, ainda faltava muito
para o Festival, como iríamos aguentar até lá. Principalmente eu, que estava
sem um tostão e vivendo do bazar que Isa fazia no hotel Plaza, depois de suas
viagens pela Panair. Como fazer? A sessão não tinha sido boa para o filme, mas
fora ótima para o Cinema Novo e para a formação de novos cineastas, que
adoraram o filme. O CPC rachou. A briga foi feia e Carlos Estevão, que era o
Stalin de plantão, ficou em minoria.
Para o mercado de 5% que temos, Assalto ao trem pagador
e O pagador de promessas podem ser melhores, mas para um cinema que se
quer novo no Brasil, o filme é Porto, o primeiro grande impacto no
longa-metragem do Cinema Novo. Barravento custou a ser exibido no
Brasil. Logo, a referência era Porto das Caixas para um mercado novo.
Joaquim Pedro se entusiasmou e convenceu seu pai, o
Patrimônio Histórico e o Itamarati, com a presença sempre importante do cônsul
Arnaldo Carrilho, a trazerem para o Brasil o cineasta sueco Arn Sukesdorf, para
das lições sobre o cinema direto, e com ele um equipamento moderno, moviola,
câmeras e equipamentos de iluminações superleves e o famoso Nagra, equipamento
básico para o cinema a partir dos anos 60. (O curso formará diversos talentos.
Sukesdorf se espanta com a capacidade artística e técnica dos jovens alunos.
Todos querendo fazer Cinema Novo. Luís Carlos Saldanha chega a surpreender os grandes
cineastas do cinema direto, sendo capaz de conseguir o sincronismo perfeito de
um Nagra que não estava todo equipado para tal. A genialidade técnica de Luís
Carlos Saldanha, permitiu filmes como Garrincha, Maioria absoluta e Integração
racial).
Porto das Caixas vai à Bahia, e ganha com Tom o
prêmio Berimbau. Recebo notícias do entusiasmo de Caetano Veloso, que não
conhecia – músico, cineasta e poeta de vinte anos apenas. Porto ganha o
prêmio da crítica. Flávio Rangel, grande encenador de teatro, tinha resolvido
filmar Gimba, pela de Gianfrancesco Guarnieri; foi nos visitar nas
filmagens de Porto e convidou Mário Carneiro para fotografar o filme. Mário já
tinha dois filmes para fazer, Gimba e Luba, e mais vários
convites.
Louis Marcorrelles, famoso crítico francês do Cahiers du
Cinéma e Le Monde entusiasta do cinema direto e novo, vem ao Brasil. No
Rio, conhece e fica amigo do pessoal do Cinema Novo, escreve um artigo, em
1962, no Cahiers, com uma fotografia minha, de Mário e Fernando Duarte,
filmando Irma. Era a glória. Gustavo me escreve uma carta vibrando.
Marcorrelles adora Porto e Barravento. Torna-se um dos críticos mais
importantes do Cinema Novo, apoiando sempre os nossos filmes. Gláuber estava na
Bahia procurando um produtor para Deus e o Diabo na terra do sol, nova versão
da Ira de Deus, e me escreve uma carta:
Meu prezado Paulo
também você é péssimo caráter. Escrevi uma carta e zero de
resposta, il faut uma carta! Aqui merda total. terminei a banana do livro, mas
estou em franco processo de desentendimento com estes sócios daqui. Uma coisa é
básica – ou a gente faz filmes de autor, ou a gente se fode! Acho que eu, você,
nélson, luís carlos, cacá, joaquim e poucos outros estamos sozinhos nesta luta;
é uma merda que o cinema brasileiro esteja se desenvolvendo desta forma; até
caras velhos e antigos como celi voltam a dirigir; imagine sarra querido, que
merda!
tenho que começar do zero e deus e o diabo na terra do sol;
tenho três milhões no banco e tenho de levantar mais seis ou sete aqui; meus
sócios, por quem tanto fiz, estão na sacanagem baixinha, evitando que eu comece
o filme, porque acham que fiz barravento e não sou diretor comercial; pensam
que sou burro – formaram uma firma grande e queriam me jogar em atitude
burocrática; chegou a hora de romper, como rompi helena, paulino. Tem de ser
assim; cada tempo é uma fase; a gente tem poucos irmãos no mundo; ontem à noite
eu ouvia Schubert no apartamento de gerta, uma violinista alemã, e tive muita
saudade de você e falei muito lembrando nossa amizade; depois gerta leu poemas
com seu sotaque de anjo e de pássaro.
segue o artigo que fiz sobre porto – e como arraial amo mais
o filme, porque você é artista, é digno, tem o sentido trágico do mundo. você
não pode morrer e tem de fazer mais filmes geniais. escreva-me por favor, uma
carta maluca e mande o endereço de gustavo, que não sei onde anda nosso outro
irmão. rosinha está sumindo no inverno dos estados unidos e tudo passa; gerta
revela novo mundo. se arrumo o tutu aqui, faço o filme e volto em agosto; senão
vou aí, vê se arrumo lá. pé firme, tem de ser. E a bela isa? e você? manda
contar tudo, por favor, deixe de ser besta.
Lembranças a d. mariá, sérgio, norma e outros.
um abraço terrível do seu gláuber.
Eu continuava amando Isa e morado no Plaza, frequentava
muito o bar em frente à Líder em Botafogo, e o Beco da Fome entre as Ministro
Viveiros de Castro e Prado Júnior. Lugar perigoso, enfeitiçado do Rio Zona Sul,
quem caía ali era difícil sair. Que o diga o meu queridíssimo e genial cineasta
David Neves. Eu tinha pouco dinheiro, do bazar de Isa, de alguns que me
emprestavam, como Elísio, Sérgio, Champs, Mamãe etc. Jango caminhava para a
esquerda e nosso entusiasmo ia junto, com a amizade numa boa relação afeita,
entre os membros do Cinema Novo. Os movimentos se cruzavam, os artistas se
encontravam, os papos eram brilhantes e amorosos, um quebrando o galho do outro.
Na rua da Matriz, em Botafogo, moravam muitos cineastas e o convívio era
fraternal e entusiasmante. Rosa Maria Pestana, Rosinha de que o Gláuber fala na
carta, era uma menina estranha. Neta do grande romancista mineiro Cornélio
Pena, Rosinha continha o clima dos romances do avô. A menina morta é uma
obra-prima. As entrevistas que dávamos tinham muito peso, era discutidas
durante dias. Os papos pareciam dos anos JK, havia na mistura de Jango e
Lacerda um espaço cultural muito grande. Era como partidos que se digladiavam,
mas que se consideravam também. Bossa ou música de protesto, eis o tema
principal. Não havia opressão entre os grupos, os dois movimentos caminhavam
juntos e isso servia para cada atividade artística. Participávamos intensamente
da vida política e social do país.
Recebo carta de Louis Marcorrelles e Gustavo Dahl me
aconselhando a inscrever Porto não na competição oficial de Cannes, mas sim na
Semana da Crítica do mesmo festival. Eram o primeiro ou segundo filme dos
cineastas, e representavam a renovação na linguagem cinematográfica. Era, como
dizia Gustavo, a moda intelectual da Europa, principalmente Paris. A crítica
importante de lá estava nessa Semana: os críticos sabiam que os filmes dos anos
60 iam revolucionar o cinema e estavam se organizando para isso. A Semana da
Crítica de Cannes tinham o mesmo valor que os festivais organizados por Gianni
Amico na Itália.
Aceito e inscreve Porto. Gimba seria o filme
oficial.
Saí o livro de Gláuber, Revisão crítica do cinema brasileiro, em que ele
investe com coragem contra tudo que não seja sincero, defende a arte autoral no
cinema brasileiro. Mete o pau na crítica acadêmica e defende brilhantemente o
Cinema Novo (e Porto das Caixas, que considera genial). Era preciso
muito peito e fé para provocar tanto ódio, e ao mesmo tempo preparar o grande Deus
e Diabo.
O Itamarati não quis me dar passagem. O filme tinha
problemas com a Censura e a Semana da Crítica de Cannes não tinha ainda
importância para o Itamarati. Deram uma passagem para Irma Álvarez. Gimba
era o único brasileiro, chegou atrasado e só foi aceito no mercado. Logo, Porto
representaria o Brasil depois do prêmio de O pagador de promessas no ano
anterior. Eu não fui a Cannes, não tinha dinheiro, nem passagem, apesar do
convite. Elísio Freitas também não foi. Fiquei no hotel Plaza, aguardando
notícias de Irma, que estava radiante quando telefonou: o filme fora muito bem
aceito e ela lamentava que eu não estivesse na sessão de Cannes. Dias depois,
uma surpresa agradável: chega um telegrama de Gianni Amico convidado a mim e
Porto para o festival de Sestri Levante. Como não estava no orçamento do filme,
Elísio Freitas não foi nem quis me dar nenhum dinheiro para a viagem. Gianni
mandou a passagem.
Não foi fácil convencer Isa, mas eu lhe disse que seira por
pouco tempo, ficaria uma semana no Festival e dois dias em Roma. Ela escreveu
um bilhete-de-amor-em-série, que escondeu em cada camisa, meia ou cueca que eu
tirava da mala – não deu para não pensar nela. Mas tive a grande alegria de ir
com dois companheiros e amigos fundamentais em minha vida, David Neves e Arnaldo Carrilho. Ficamos muito
ligados nesta viagem. Naquele tempo David Neves trabalhava no Itamarati,
assessorando o cônsul Carrilho. Faziam uma tabelinha maravilhosa, co-autora da
vinda de Sukesdorf e do Nagra. Os dois me tiraram do Beco da Fome e me
separaram da minha amiga Lindaura, que fazia o melhor caldo verde que já comi.
Lindaura era a negra, personagem do roteiro de Amor de gente moça, pivô dos
ciúmes de Isabela, que rasgou o roteiro.
Preparo-me para voltar a Roma, com muita emoção em rever os
amigos, medo de querer ficar por lá. Carrilho era “Il Consule”, David “Il
Crítico” e eu “Il Registra”. Cônsul., crítico e diretor, fizemos um trio
infernal. Chegamos e fomos direto para o Rosati. Que alegria, rever os amigos,
la famiglia Franchina, Marco Bellochio, Guido Cosulich e o já famoso
cineasta Bernardo Bertolucci. Os brasileiros, Geraldo Magalhães, Paulo e Hilda,
Luigi e sua família, onde Carrilho e David se deliciaram com a divina pastaccuita
da santa Yole. Regina Castelo Branco estava viajando, Geraldo me deu o novo
telefone de Lea Massari.
Lea casara e mudara para uma casa de praia em Fiumiccino. Atendeu-me com grande
carinho, e convidou-nos para almoçar em
sua casa. Adiamos a nossa ida para Sestri Levante e fomos conhecer a nova casa
e vida de Lea. O marido era diretor da Alitalia e chegaria mais tarde, Lea
dizia que ele estava louco para me conhecer. Nos abraçamos e nos beijamos
muito. Mas, depois, a maravilhosa e discretíssima Lea Massari recebeu o santo
de Ana Magnani e ficou furiosa, me xingando de todos os palavrões, em dialeto
romano. Puxou-me e levou pela bela escada de sua casa e fomos para seu quarto.
Ela xingava, chorava, me veijava...Eu estava perplexo, sem entender nada...Foi
aí que ela me mostrou uma carta de sua amiga brasileira comunicando meu
casamento com Isabela – com recortes de jornais e tudo – e depois a certidão de
seu casamento, dois meses depois do meu. Eu me deprava com uma situação mais
própria de adolescentes, não sabia o que fazer, só podia beijá-la e pedir
perdão, me ajoelhando aos seus pés (Luschino Visconti faria assim). O marido
dela chegou e fui conhece-lo já na mesa, com Carrilho e David esticando uma
conversa sem nenhum sentido. Para piorar a situação, Lea me apresenta ao marido
dizendo que eu era o homem que ela mais amou na vida! Carrilho usava de todo o
seu talento diplomático para tornar aquele almoço menos tenso. Eu estava
envergonhado, me sentia um canalha e irresponsável. Lea e o marido se
desculparam muito por não poderem ir a Sestri Levante ver Porto. (Ela iria ver
o filme tempos depois, no cinema Pirajá, em Ipanema, numa visita relâmpago que
fez incógnita ao Rio. Adorou e ficou triste por não tê-lo feito. Ficou surpresa
com seu rigor. Na época, fomos visitar Lúcio e ele ria e imitava o gesto do
crime para Lea, como se ela tivesse sido atriz do filme).
Quando entrei no trem para Sestri Levante, já estava
vomitando até a alma.; Tinha bebido como merecia. Carrilho e David,
discretíssimos, amigos, tentavam consolar o inconsolável. Eles iam conhecer
Gianni Amico e o padre Arpa. Era um momento histórico importante. Com Gianni
foi maravilhoso: nos levou aos lugares onde havia os vinhos de Cinque Terrae,
vinhos brancos e muito saborosos. Conversas e afinidades – o amor pelo cinema
dava o tom. Sublime. Para Arpa ficou muito amigo de David e falaram sobre
Federico Fellini, seu tema prefertido. Revi em Sestri Levante os amigos Bruno
Torri, Adirano Aprà, a turma do Gianni.
Sandro adorou Porto; Bernardo achou-o rigoroso demais (em compensação,
achei o dele superficial demais); Bellocho vibrou com o filme, me mostrou o
esplêndido roteiro de Pugni in tasca e me falou de Gláuber – rodos
tinham adorado e rido muito com o baiano, e ficado espantados com sua fúria e
talento selvagem. Acharam Barravento genial. Revi o filme e me emocionei tanto
que saí chorando do filme e fui afogar com os amigos italianos as emoções,
pensando no encontro com Lea e a alegria de ser amigo de Gláuber. Fomos para um
bar que tinha uma vista sensacional e vinho de Cinque Terrae. “Buru, você é
demais”. Carrilho, grande diplomata, homem de cultura, com um sentido profundo
de política, caráter invulgar, virara figura de proa do Cinema Novo. Sua
carreira fora muito prejudicada por ser sensível e inteligente demais, merecia
já o posto máximo por tudo que fizera de bom para o Brasil. Eu, ele e David
combinamos fazer um filme juntos na volta ao Brasil, produzido pelo Itamarati.
Gianni Amico organizara um festival da melhor categoria. Porto ganha o prêmio
do júri. Michel Brout e o diretor argentino Antin adoraram e brigaram pelo
filme. Conheci pessoalmente Lea Maria que estava com seu marido Otávio Bonfim,
crítico de O Globo. Lea Maria estava linda e muito simpática. Terminando o
Festival, fomos a Manarola, onde Gianni tinha uma casa numa colina com vista
panorâmica para o mar. Helena Costa apareceu e namoramos numa atitude culposa.
Gianni não entendia o porquê da minha pressa em voltar. Eu tinha medo de ficar
por lá. A Itália e as manifestações de respeito pelo talento artístico e
possibilidades de trabalho me faziam tremer. Por outro lado, a saudade de Isa,
seus bilhetinhos, que lia três vezes por dia...Voltei correndo para Isa, e para
a Prado Júnior.
O saldo de Sestri Levante para Porto das Caixas foi
muito positivo e o filme pôde sair comercialmente nos cinemas dos Severiano
Ribeiro.
No meu último dia de Roma, vi Vanina Vanini, de
Rossellini. Definitivo.
Fiquei fechado no Plaza escrevendo um roteiro sobre notícias
lidas nos jornais, nas páginas de crimes e numa bela crônica de José Carlos
(Carlinhos) de Oliveira: o crime da Fera da Penha. Eu queria continuar
defendendo o feminismo e estava também preocupado com Gláuber que continuava
procurando produtor para Deus e o Diabo. Escrevi várias cartas. Gláuber
me respondia:
querido paulo
a colocação de muita coisa me faz escrever: ontem fiz o
prometido e nunca cumprido artigo sobre porto das caixas que remeti para
reinaldo e deverá sair em um dos próximos números de sr. foi um artigo lúcido,
profundo e baseado em fatos. vai dar polêmica, porque meti o pau na crítica.
não podia escrever no rio, porque estava meio louco e fatalmente sairia uma
besteirada e o filme é sério demais para ser perdido num artigo feroz. a morte
do miguel me abalou muito, logo depois de mário faustino. miguel era uma pessoa
muito próxima a mim, não era verdadeiramente um amigo, mas subitamente eu vi um
negócio terrível, que me apavora tanto e me excita tanto, que é a morte. aqui
nesta colônia morta, com o terrível sol e a pobreza agressiva, estou apenas
fazendo ginástica e lendo muito – literatura e filosofia: estou quase livre das
raízes e subitamente tenho a impressão de que a solidão humana só não é
absoluta porque você tem irmãos em determinados momentos da história com os
quais se comunica – ou lendo poetas mortos ou falando com os amigos. a morte é
inevitável, a vida não tem o menor sentido enquanto vazio, renúncia, recusa,
humildade: você é na medida em que você em relação com o mundo e faz. importa
apenas o que você fizer – você permanecerá pelo que você fizer, criar. eis a
vantagem de ser artista, de poder pensar sobre a natureza. o amor, o sexo, a
loucura diária no absurdo das relações – tudo isto é válido para você apenas.
não é válido para a história. a burrice dos comunistas profissionais é que eles
não entendem que o verdadeiro artista é um ser revolucionário; um ser em
oposição, em luta consigo mesmo e com o seu tempo: sempre e é preciso saber
disto para interferir. “verdade e moral” – é o que é “cinema novo” para mim.
uma “moral” revolucionária – pois não podemos viver na abstração, sem um
diálogo com a natureza – e se a natureza lhe propõe uma mentira ou uma verdade
cruel – urge mudá-la pela violência, pela insolência ou pela beleza. foi neste
sentido que escrevi sobre porto das caixas e é neste sentido que lhe escreve
pedindo que você nunca se perca no seu caminho, embora ele seja tortuoso, duro
de ser seguido. já lhe disse mais de uma vez que você é um homem à margem e
será muito difícil você marcar com a história do nosso cinema, porque você vai
na frente, assim como humberto mauro vai atrás e nelson vai conosco. sobre isto,
sobre mauro, nelson e você estou fazendo um artigo seríssimo que vou enviar
para sadoul publicar in “letres Françaises”, mas uma cópia mandarei para
jean-claude publicar in Estadão. Tenho agora de escrever muito porque esta
crítica está demitida, falida, aniquilada pela burrice. o brasil é um país
morto-vivo, onde poucos homens pensam e fazem. só filmarei em agosto, se
estiver vivo. não é por causa das chuvas; é um problema interior: agora eu
quero fazer ginástica, ler e escrever, aqui não tem mulher, pouco me interesso.
rosinha escreve dos estados unidos, eu escrevo: este amor é assim, algum dia
terá solução. minha mãe e paloma estão aí chez anecyr. minha mãe vai telefonar
aí para d. maria para levar paloma, avise ela. e a bela & grande isa? seria
tão bom que vocês viessem à bahia. se isa não tiver tempo, você não pode? se
tiverem medo de avião, a viagem de ônibus é ótima e você veria o sertão de
minas e passaria por conquista, minha terra. quais os planos? e os argentinos?
algum filme em projeto? ainda há crise? E angústia, de graciliano ramos?
escrevendo sobre porto das caixas, disse que, apesar de lúcio, a atmosfera era
da família do mestre graça. seria bom, logo depois de vidas secas, você fizesse
angústia – revendo a literatura brasileira verifico que o brasil mesmo está em
graça – esta raça triste e pobre, esta raça apodrecida antes de se desenvolver.
deveria dizer que a missão de nossa geração é revolucionária mas tudo é
tremendamente difícil. seremos mais um ato sacrificado: não existe uma
suficiente consciência crítica para que se faça uma revolução. por isto,
forçando a história, a nossa revolução estará entre o idealismo e a anarquia –
mas deixará uma pedra de toque bem montada. paulinho: não quero lhe enviar uma
palavra de desespero, mas não podemos perder tempo. é preciso filmar e brigar e
amar – mesmo que irrefletidamente. escreva-me logo, dando notícias, inclusive
se sabe do endereço de gustavo. E falando do rio, do que se passa. gostaria
muito que você viesse aqui.
Um
abraço mesmo do seu
gláuber.
Publicado originalmente em SARACENI, Paulo César. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
Um comentário:
Obrigado, Matheus!
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