segunda-feira, 18 de julho de 2022

Mojica early years, parte II: Da Espanha para o Brás

           Capítulo 1: Da Espanha para o Brás

         

Antônio Marins, o pai, e Carmen, a mãe 

Por André Barcinski e Ivan Finotti

 

Talvez a genética explique a impulsividade de José Mojica Marins. Em sua família, não são raros os casos de pessoas que largaram tudo para começar uma vida nova. Seus avós, tanto os Mojica como os Marins, deixaram a Espanha no início do século para tentar a sorte em São Paulo.

José André Martins e Ana Mello Marins saíram de Barcelona em 1904. Francisco Mojica e Conceição Mojica Imperial partiram de Madri no ano seguinte. Os casais cruzaram o Atlântico num cargueiro e vieram parar no bairro do Brás, zona leste da cidade. Os Marins alugaram uma casinha na rua Carneiro Leão. Já os Mojica foram para a rua Piratininga, a apenas dois quarteirões de distância. Apesar da proximidade, o encontro entre as famílias demoraria trinta para acontecer.

 

Quando as duas famílias chegaram a São Paulo, a cidade parecia uma sucursal da Europa: entre 1890 e 1909, mais de 1 milhão de imigrantes desembarcaram no Estado, entre 600 mil italianos, 175 mil espanhóis e 116 mil portugueses.

A viagem até o porto de Santos era um verdadeiro martírio. Por três semanas, os imigrantes viajavam espremidos em porões superlotados, sem as mínimas condições de higiene. Muitos não suportavam e morriam de fome, doença ou exaustão. Outros chegavam doentes e morriam em terra, enquanto aguardavam a legalização de seus documentos. Eram tantos os mortos que a capitania do porto de Santos decidiu construir um cemitério para enterrá-los, evitando assim qualquer risco de contaminação por doenças contagiosas (os paulistas ainda tinham na memória a terrível epidemia de varíola que havia atacado a região em 1875).

Muitos imigrantes já tinham família no Brasil. Os mais sortudos contavam até com um emprego, obtido graças a algum parente. Para os que chegavam sem ter onde ficar, no entanto, a melhor opção era procurar abrigo em uma das hospedarias de imigrantes construídas em São Paulo. Na época, o governo garantia hospedagem e alimentação gratuitas por oito dias para qualquer família de imigrantes que viesse tentar a sorte na capital. Havia grande interesse em atrair imigrantes. As fábricas e fazendas precisavam de mão-de-obra e a cidade crescia rapidamente. Setores como a construção civil e o comércio careciam de trabalhadores.

Essas hospedarias passaram a funcionar como agência de empregos: era lá que as fábricas recrutavam operários e onde os fazendeiros buscavam trabalhadores para suas lavouras. Uma das maiores hospedarias da cidade foi erguida na rua Visconde de Parnaíba, no Brás. O albergue atraiu muitos imigrantes e acelerou ainda mais o crescimento do bairro que, desde meados do século XIX, era uma das regiões mais procuradas de São Paulo. Em 1860, o viajante Augusto Emilio Zaluar descrevia o Brás como “um dos arrabaldes mais belos e concorridos da cidade, já notável pelas elegantes casas de campo e deliciosas chácaras onde residem famílias abastadas, ao lado, todavia, de casebres e ranchos meio aristocráticos, mas que nem por isso deixam de formar um curioso contraste”.

Muitos imigrantes, especialmente italianos e espanhóis, começaram a se mudar para o bairro. A população local, de apenas 2300 habitantes em 1882, multiplicou-se por quinze em menos de uma década. O bucolismo tão admirado por Zaluar logo deu lugar a vilas de operários e a diversas fábricas – a primeira, a São Paulo Gás Co., fundada em 1875 -, além de cortiços e de infectos quiosques onde se fritavam lascas de fígado, sardinhas, bolinhas de bacalhau e qualquer bicho que tivesse o azar de cair na chapa – daí o apelido de “frita-moscas”.

O Brás, como outros bairros proletários paulistanos do início do século – Moóca, Bom Retiro, Belenzinho -, era pobre. Enquanto muitos imigrantes prosperaram trabalhando nas lavouras de café no interior, os estrangeiros que ficaram na capital não tiveram outra opção senão trabalhar em fábricas ou viver de biscates. É curioso notar que os espanhóis, donos, no passado, de um gigantesco império, foram tratados como cidadãos de quinta categoria quando chegaram ao Brasil. Isso se deveu principalmente ao preconceito de seus próprios conterrâneos, que consideravam emigrantes espanhóis como “traidores da Pátria”.

Diferentemente da Itália, que encorajava a emigração para solucionar problemas internos de superpopulação e pobreza, a Espanha, orgulhosa via o emigrante como um símbolo de seu atraso e miséria. As autoridades consulares espanholas pouco fizeram para unir a colônia no Brasil ou para ajudar os conterrâneos. Um espanhol que desembarcasse no Brasil não tinha uma autoridade a quem pudesse pedir ajuda. Por isso, muitos não tiveram sequer a preocupação de regularizar sua situação quando chegaram ao país, preferindo burlar a burocracia brasileira a correr o risco de extradição.

Os espanhóis começaram a abraçar ofícios menos qualificados, trabalhando como cocheiros, vendedores ambulantes, sapateiros, pedreiros e carroceiros. Muitas famílias passaram a morar em cortiços imundos. Com tanta miséria, os índices de criminalidade, alcoolismo e prostituição entre a comunidade cresceram rapidamente. Logo os espanhóis passaram a ser vistos como “escória da cidade”, humilhados em charges de jornais e em piadas racistas. Uma vila de imigrantes hispânicos na rua Ana Neri, na Moóca, foi apelidada pelos paulistanos de “La Mierda”.

Apesar da pobreza, o Brás do fim do século XIX era uma festa: os bares da região ficavam lotados de italianos tomando vinho, comendo provolone e jogando scopa e víspora. Os espanhóis se reuniam nos chamados pavilhões, clubes onde se dançava o flamenco e se comiam paellas deliciosas. Foi nesse bairro, humilde, porém festivo, que os destinos das famílias Mojica e Marins viriam a se encontrar.

 

Em 1903, uma carta chegou à casa de José André Marins, em Barcelona. Era de um amigo, Pedro, um carpinteiro que havia emigrado para São Paulo no ano anterior. Na carta, Pedro dizia que havia conseguido um bom emprego numa fábrica de roupas e sugeria a José e a sua mulher, Ana Mello, que se juntassem a ele em São Paulo. A vida na Espanha estava mesmo complicada para José e Ana: os biscates que ele fazia de pedreiro não rendiam o suficiente para sustenta o casal e o filho, Miguel. José havia perdido o emprego de garçom fazia mais de um ano e não via perspectiva de trabalho no futuro próximo. Resolveu aceitar a sugestão de Pedro. Em janeiro de 1904, o casal e o filho, Miguelito, embarcaram num cargueiro rumo ao Brasil. Um mês depois, estavam estabelecidos em um casebre na rua Carneiro Leão, no Brás.

José era um sujeito ambicioso. Desde pequeno sonhava em tornar-se um toureiro famoso. Era fascinado pelas touradas e passava suas tardes de folga na plaza de toros, admirando os grandes mestres da época. Chegou a tourear na Espanha, mas a concorrência era forte demais. No Brasil, pensou, seria diferente. Em seus primeiros meses na nova terra, José conseguiu relativo sucesso toureando em circos e plazas improvisadas no interior do Paraná e de São Paulo, mas sua incipiente carreira sofreu um baque quando a polícia proibiu a matança de touros em espetáculos públicos. José não se abalou e resolveu criar um número novo, misto de tourada e espetáculo circense, no qual enfrentava o touro amarrado a uma cadeira, vendado ou vestido de palhaço. Não era a forma mais honrosa de praticar a velha arte espanhola, mas era preferível adaptar-se às exigências locais do que abandonar sua paixão.

Sua família sempre o acompanhava nessas touradas pelo interior. Foi durante uma dessas excursões, a São José do Barreiro, no nordeste do Estado, que, no dia 7 de setembro de 1905, nasceu o segundo filho do casal, Antônio André Marins, que viria a ser pai de José Mojica Marins. Os Marins levavam uma vida excitante: viajavam de cidade em cidade, acompanhando circos e espetáculos teatrais. Desde pequenos, os irmãos Miguel e Antônio se acostumaram à vida itinerante de artistas.

Em 1909, Ana engravidou novamente. José queria uma menina para completar o trio. O parto, no entanto, correu mal: Ana perdeu muito sangue, sofreu uma hemorragia e morreu ao dar à luz uma menina, que também morreu. José ficou sozinho com Miguelito e Antônio. Ele continuou a levar os filhos para as touradas no interior. Os meninos cresceram praticamente dentro de circos e plazas, e logo começaram a mostrar jeito para a coisa.

 

As touradas também eram a paixão de Francisco Mojica, um humilde alfaiate madrilenho. Foi numa plaza de toros, em maio de 1901, que ele conheceu Conceição Imperial. Ele tinha 21 anos e ela, 17. Casaram-se seis meses depois e tiveram dois filhos, Francisco e Vicenta.

Os dois Mojica também foram atraídos ao Brasil por uma carta, escrita pela irmã de Conceição, Josefa, que trabalhava em São Paulo como costureira de uma sapataria. Josefa dizia que várias sapatarias e confecções da cidade estavam precisando de mão-de-obra e que ela poderia ajudá-los a conseguir um emprego. No início de 1905, Francisco, Conceição e as duas crianças viajaram para São Paulo e se estabeleceram numa pequena casa de dois quartos da rua Piratininga, no Brás. A casa logo ficou pequena para abrigar outros quatro filhos: João, nascido em 1907; Carmen (mãe de Mojica), em 1912; José, em 1914 e Conceição, em 1917.

Em 1918 chegou ao Brasil uma epidemia que mudaria para sempre a vida dos Mojica: a terrível gripe espanhola. Até hoje não se sabe ao certo a origem da epidemia: alguns cientistas afirmam que ela teria nascido nas trincheiras fétidas da Primeira Guerra, outros dizem ter sido uma variação da febre suína. Na Espanha, certamente não foi, mas como o rei espanhol foi um dos primeiros a cair doente, ela acabou batizada de “espanhola”.

Foi a epidemia mais devastadora do século XX: num período de dois anos, a gripe atingiu todos os países do planeta, debilitou a saúde de 1 bilhão de pessoas e matou cerca de R$ 25 milhões. Só na Ásia morreram 16 milhões. Na África, outros 6 milhões. Nos Estados Unidos morreram 500 mil pessoas. A espanhola era letal e fulminante: pessoas entravam num ônibus, bem-dispostas, e morriam sentadas nos bancos, sem tempo sequer de pedir ajuda. Morria gente dentro de escritórios, em restaurantes, no meio da rua. Em Nova York, a cada parada de metrô, fiscais vistoriavam os vagões para retirar vítimas.

A epidemia chega ao Brasil em outubro de 1918 e rapidamente propagou-se pelas áreas mais populosas do país, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro. O governo tomou algumas medidas de prevenção, como o fechamento de jardins públicos e a proibição de concertos e peças, mas não conseguiu evitar a disseminação. Para piorar, as farmácias passaram a cobrar até cinco vezes mais pelos remédios, e o limão, cujo suco era usado como elixir pela população mais pobre, sumiu do mercado e passou a ser vendido como ágio.

A população mobilizou-se para tentar conter a tragédia: postos médicos foram improvisados em escolas e igrejas; moradores promoveram distribuição de comida e remédios nas áreas mais afetadas. Mesmo assim, brasileiros morriam às dúzias. Os cemitérios não usavam dando conta de tantos enterros. No Rio e em São Paulo, as prefeituras ordenaram aos familiares das vítimas que deixassem os cadáveres em frente às suas casas, onde seriam recolhidos por caminhões de limpeza pública.

A fase crítica da epidemia durou de novembro de 1918 a janeiro de 1919. Nesses três meses, ela infectou 40% dos paulistas e 50% dos cariocas. Em São Paulo, morreram quase 5 mil pessoas, o equivalente a 1% de sua população. No Rio, a tragédia foi ainda pior: quase 15 mil mortos, ou seja, 1,5% dos habitantes da cidade. Em pouco mais de um ano, a espanhola matou 35 mil brasileiros. Nem o presidente eleito, Rodrigues Alves, escapou: morreu em 1919º, sem conseguir tomar posse em seu segundo mandato.

O Brás foi um dos bairros mais afetados. O cemitério local chegou a ter cinquenta enterros por dia. Por volta de fevereiro de 1919, no entanto, a mortandade havia diminuído e a vida começava gradualmente a voltar ao normal. A família Mojica parecia ter passado incólume pela tragédia: a não ser por alguns resfriados inconsequentes, nenhum deles caiu vítima da gripe. Francisco e Conceição rezavam todos os dias, agradecendo a Deus por tê-los poupado da morte que havia levado tantos vizinhos e amigos. Mas a epidemia reservara uma surpresa fúnebre para a família...

Em 3 de março de 1919, Francisco acordou bem-disposto. Era aniversário de sete anos da filha Carmen e ele queria, antes de ir para o trabalho, passar numa confeitaria e encomendar um bolo. Despediu-se da mulher, beijou os filhos e saiu a pé pela rua Piratininga. Morreu três quarteirões depois, fulminado pela espanhola.

A situação financeira dos Mojica ficou desesperadora. Conceição, viúva aos 35 anos e com seis filhos para criar, não teve outra alternativa senão tirar as crianças da escola e botá-las para trabalhar. O mais velho, Francisco, 16 anos, conseguiu emprego numa fábrica. Vicente, 15 anos, e João, 12, foram vender bananas e mexericas na rua, enquanto Conceição ficava em casa tomando conta de Carmen, mal havia completado 10 anos, foi contratada como fiandeira da fábrica de sacos de juta Santana.

 

Em 1931, Carmen e sua irmã Conceição conseguiram empregos na Fábrica de Cigarros Caruso, na rua São Bento, no centro da cidade. Trabalhavam encarreirando cigarros, oito horas por dia, seis dias por semana. O salário era pequeno e o trabalho, monótono e estafante. A única coisa que motivava Carmen a ir todo dia para a fábrica eram os galanteios de um simpático gerente, Antônio Marins.

Antônio era considerado o bonitão do pedaço: 26 anos, moreno, alto, só andava de terno e com os cabelos perfeitamente alinhados por gomalina. Ganhava pouco, mas se vestia com bom gosto e aparentava um nível social muito superior ao seu (da primeira vez que o viu, Carmen comentou com a irmã que o rapagão parecia o Rodolfo Valentino). Ele havia conseguido o cargo de gerente da fábrica graças a um longínquo parentesco com a família Caruso, e seu salário sustentava também o pai, José, que a essa altura já havia abandonado as touradas. Depois de alguns anos acompanhando José em touradas, Antônio havia decidido procurar um emprego mais estável. Seu irmão Miguelito, no entanto, continuava a percorrer o país toureando em circos.

Antônio gamou em Carmen, a espanholita tímida de olhos grandes, que vivia grudada na irmã menor. Não havia um dia em que ele não passasse pela seção da moça, com a desculpa de checar seu desempenho. Conhecedor da rígida moral espanhola, flertava com cautela, para não parecer desrespeitoso. Carmen, criada sob os olhares atentos da mãe, retribuía os galanteios com discrição.

Numa tarde nublada, quando as duas irmãs estavam saindo da fábrica, um temporal desabou sobre a cidade. Elas ficaram paradas na porta, esperando que o toró passasse. Antônio vinha saindo e se ofereceu para levá-las em casa:

- Eu tenho um guarda-chuva bem grande, dá para nós três!

Eles resolveram esperar até que a tempestade arrefecesse. Antônio foi a cozinha da fábrica e trouxe café com biscoitos. Passou um bom tempo conversando com Carmen, enquanto Conceição entretinha com as bolachas. Assim que o temporal diminuiu, os três rumaram para a casa dos Mojica. Quando chegaram em frente ao portão, Carmen mandou a irmã seguir em frente: “Vai, entra, que eu quero conversar um pouco com seu Antônio”, ordenou, cheia de segundas intenções. Ali mesmo, ele a pediu em namoro.

Carmen temia que a mãe desaprovasse o namoro. Afinal, a matriarca já havia proibido um noivado com outro pretendente, por este ser um pobretão. “Minha filha, você tem que arrumar um homem bom e com dinheiro, para poder ficar em casa só cuidando dos filhos”, dizia Conceição. E Antônio não tinha um tostão furado. Mesmo assim, Carmen decidiu arriscar e o apresentou à família. Para sua felicidade, todos tomaram afeição por ele e a mãe consentiu com o namoro. Antônio parecia um sujeito bom e honesto. Pesou também o fato de os Mojica conheceram seu pai, José Marins, o toureiro.

A vida foi boa para Carmen e Antônio durante os anos seguintes: cada vez mais apaixonados, eles começaram a juntar dinheiro, pensando no casamento. De certa forma, Antônio supriu a falta de uma figura paterna para os adolescentes José e Conceição, e apegou-se com tanto carinho à futura sogra, dona Conceição, que até a chamava de “mãe”.

 

Antônio e Carmen casaram-se em 21 de dezembro de 1933. Ele tinha 28 anos e ela, 21. Poucos meses depois, Antônio foi convidado pela família Caruso para tomar conta de uma chácara que os donos da tabacaria tinham na rua Domingos de Moraes, em Vila Mariana (onde hoje fica o Corpo de Bombeiros, quase em frente à estação Santa Cruz do metrô). A propriedade estava hipotecada e, enquanto não era resolvido o litígio, os Caruso acharam por bem deixar alguém tomando conta do lugar. A chácara tinha um belo pomar e um casarão de três andares. A função de Antônio seria manter a casa limpa e o terreno arrumado, além de supervisionar a venda de flores que eram cultivadas na propriedade e vendidas para floriculturas de toda a cidade.

O salário oferecido não era lá muito alto, mas os Caruso permitiriam que Antônio ocupasse o primeiro andar do casarão. Ele teve uma ótima ideia: em vez de mudar-se para a chácara levando apenas Carmen, levaria toda a família dela, garantindo moradia gratuita para todos. O primeiro andar da casa, afinal, tinha sala, cozinha, um banheiro grande e cinco quartos, mais do que suficiente para abrigar a todos. Assim, além de Antônio e Carmen, mudaram-se para a chácara dona Conceição, seus dois filhos mais novos – José e Conceição – e também sua filha Vicenta, acompanhada do marido, Carlos Paz, e das duas filhas pequenas.

A mudança foi um choque para os Mojica: subitamente eles saíam de uma casa velha no Brás e ocupavam uma mansão em Vila Mariana. O casarão tinha móveis caros, luxuosas escadarias de mármore e imensas janelas que abriam para um quintal florido. No segundo andar havia um salão festas e uma sala de música com piano. Um andar acima, ficava o salão de fumantes. A família formou uma espécie de comuna: enquanto as mulheres trabalhavam na limpeza da casa e do terreno, os homens – com exceção de Antônio – trabalhavam fora. Carlos Paz era tipógrafo e José, garçom do Hotel Esplanada, no centro da cidade. Todo o dinheiro arrecadado era dividido igualmente e usado para comprar alimentos e roupas para a família.

Antônio acordava às cinco da manhã para cuidar dos pés de caqui, goiaba, café e abóbora. Depois limpava o pequeno lago que havia na propriedade e colhia as camélias, rosas e hortênsias do jardim. Toda manhã, uma charrete puxada a burro vinha à chácara recolher os buquês, que eram então distribuídos para as floriculturas. Apesar do trabalho duro, Antônio não poderia estar mais feliz: órfão de mãe desde criança e vivendo constantemente longe do pai, pela primeira vez ele realmente tinha a chance de experimentar a vida em família.

Os nove faziam tudo juntos: aos domingos, iam à missa numa igreja vizinha à propriedade dos Caruso. Depois, dona Conceição preparava um almoço caprichado, às vezes, até uma feijoada. Quando a saudade dos patrícios apertava, eles pegavam um bonde e passavam o dia no Brás. No fim da tarde, reuniam-se na varanda da mansão e ouviam discos de Carlos Gardel, saboreando goiabas e mangas tiradas do pomar. Era uma vida de sonhos. Só faltava uma coisa para completar a alegria de Antônio: um filho.

Em agosto de 1935, Carmen deu ao marido a notícia que ele tanto esperara: estava grávida. Antônio, exultante, disse que, se fosse um menino, batizara-o com o nome de seu cunhado predileto, José. Às quatro da manhã do dia 13 de março de 1936, nasceu José Mojica Marins. Era uma sexta-feira 13.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

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