Capítulo
4: 1958-1963: A Sina de Um Aventureiro
Por André Barcinski e Ivan Finotti
O fracasso de Sentença de Deus e
No Auge do Desespero abalou a confiança de Mojica. Ele já não estava tão
certo de que conseguiria fazer um longa-metragem. Foi quando Augusto veio com a
ideia de filmar um bangue-bangue, gênero muito popular na época. Mojica gostou
da sugestão e bolou a história de Passos da Vingança, um faroeste sobre
um pistoleiro que, depois de encontrar o amor e se regenerar, tem a mulher
assassinada por bandidos e parte para acertar as contas com os matadores. O
orçamento do filme ficou em 4 milhões de cruzeiros (equivalente, na época, 25
mil dólares). Mojica, esperto, escreveu dezenas de papéis para pode incluir o
maior número possível de alunos no elenco e, assim, conseguiu vender 1,5 milhão
de cruzeiros em cotas para a turma. Ainda faltavam 2,5 milhões.
A salvação foi a namorada de Augusto,
Nilza de Lima, uma quarentona enxuta e cheia da grana. Nilza havia chegado à
escola um ano antes, disposta a tudo para tornar-se atriz. Apesar da diferença
de idade (ela tinha 40 e ele, 22), os dois se apaixonaram e logo estava morando
juntos num bom apartamento no centro da cidade. Além de bonita, Nilza tinha um
caráter forte e obstinado, moldado por uma vida de sacrifícios. Ela nascera
numa pequena cidade de Goiás, Catalão, um verdadeiro faroeste onde brigas eram
resolvidas à bala. Aos 12 anos, fora obrigada pela família a casar-se com um
caubói da região, que morreu de pneumonia três semanas depois. Antes de
completar 19 anos, já era viúva três vezes e havia acumulado heranças dos três
maridos mortos.
Nilza topou financiar Passos da
Vingança, com duas condições: primeiro, que o título fosse mudado para algo
mais romântico e, segundo que seu irmão, Acácio de Lima, ficasse com o papel
principal. Ela sempre tentara ajustar o irmão, um bom vivant que vivia pulando
de emprego em emprego. Quem sabe no cinema não acabaria se revelando um
talento? Acácio era um sujeito grande, pintoso e, segundo Nilza, perfeito para
estrelar um faroeste, já que aprendera a montar a cavalo nas fazendas da
família, em Goiás. Mojica sequer conhecia Acácio. Não sabia se era loiro ou
moreno, alto ou baixo, caolho ou perneta. Não importava. Se Nilza colocasse a
grana, Acácio seria o ator principal.
O dinheiro saiu e Acácio ficou com o
papel de Jaime, o bandido regenerado. A aluna Shirley Alves foi escalada para
interpretar sua mulher, Dorinha. A atriz Ruth Ferreira, da Apolo, interpretaria
Rosária, amiga de Dorinha, e Augusto Pereira faria seu marido, o capitão
Osvaldo. O filme foi rebatizado com um título escolhido por Nilza: A Sina do
Aventureiro.
O próximo passo de Mojica seria
contratar uma equipe. Se até então ele havia usado basicamente o pessoal da
Apolo, agora, quando finalmente iniciava seu tão sonhado longa-metragem,
precisaria de profissionais para lidar com a parte técnica. Os primeiros técnicos
convidados foram o diretor de fotografia Honório Marin e o assistente de câmera
Corintho Giaccheri, dois veteranos do cinema paulista. Eles gostaram da
história e pediram para ler o roteiro. Assim que leram as primeiras linhas, no
entanto, desistiram:
- Isso aqui não é um roteiro, Mojica! –
disse Honório. – São só uns rabiscos! Cadê a divisão de planos? Cadê os
diálogos?
Ele tinha razão. Aquilo realmente não
era um roteiro.
Mojica havia, sim, pensado numa
história, nos diálogos e até nos movimentos de câmera, mas o problema é que
guardara tudo em sua cabeça. O que estava ali nas mãos de Honório não era um
roteiro normal, mas o que Mojica acreditava ser um roteiro. E só ele mesmo
poderia achar algum sentido naqueles rabiscos incompreensíveis. Mojica não
sabia o que era um plano americano ou um contré-plongée; plano sequência
para ele era grego. Seus roteiros não tinham diálogos, apenas instruções curtas
obre cada cena:
Cena 1: Jaime rouba o banco
Cena 2: Polícia persegue Jaime.
E só. Todo o resto – diálogos,
posicionamento de câmera, movimentação dos atores – era improvisado na hora.
Mojica trabalhava assim por absoluto desconhecimento de outro método. Era assim
que ele fazia desde adolescente. Nunca havia tido uma aula ou alguém que lhe explicasse
as técnicas de produção de filmes. Aprendera tudo por conta própria, e só sabia
fazer as coisas a seu modo.
Honório e Corintho agradeceram o
convite, mas disseram que, sem um roteiro definido, não poderiam se despencar
até o interior para filmar. Mojica tratou de procurar algum roteirista que
pudesse ajudá-lo. Acabou conhecendo Luís Sérgio Person, um jovem que despontava
como uma das boas promessas do cinema paulista. Person já tinha certa
experiência em cinema, tendo escrito o roteiro do longa-metragem Casei-me
com Um Xavante, de Alfredo Palácio e dirigido teleteatros para as TVs Tupi
e Record.
Mojica contou seu problema e Person
concordou em ajudá-lo. Este chamou então seu colaborador Glauco Mirko Laurelli
e juntos escreveram o roteiro de A Sina do Aventureiro, dando forma aos
confusos manuscritos de Mojica. Person só exigiu que se nome não aparecesse nos
créditos. Disse que estava envolvido em outro projeto e que não queria irritar
seu produtor. Na verdade, achava que o filme seria um desastre e temia ver seu
nome associado à Sina.
Com roteiro em mãos, Mojica convenceu
Honório e Corintho a aceitar o trabalho. Honório, dono de uma loja de aluguel
de equipamento cinematográfico, propôs usar na filmagem uma nova câmera que
havia adquirido, uma Cinemascope. A câmera produzia imagens mais “compridas”
que as câmeras normais, ou seja, com uma diferença maior entre o comprimento e
a largura. Enquanto as imagens produzidas por câmeras convencionais tinham uma
relação de 1,66 x 1 (ou seja, uma base 66% maior que a altura), o Cinemascope –
no Brasil batizado de “Gigantela” – gravara imagens na proporção de 2,35 x 1
(com uma base 2,35 vezes maior que a altura). A Sina do Aventureiro foi
o primeiro filme brasileiro rodado em Cinemascope.
Tudo que Mojica precisava agora era de
um local para as filmagens. Augusto Pereira lembrou-se de um amigo, Ismar
Jacintho, dono de uma fazenda perto de São José da Bela Vista, uma pequena
cidade a 400 quilômetros ao norte de São Paulo. Ismar gostava de cinema e
permitiu que eles rodassem o filme em sua fazenda. Era o lugar ideal para um
bangue-bangue, com paisagens lindas, vegetação abundante e nenhum indício de
modernidade. A região realmente parecia ter parado no tempo, São José da Bela
Vista não passava um quarteirão de casas, com as indefectíveis praça e igreja
para completar. Bois passeavam pelo meio da cidade; os moradores usavam chapéu
de vaqueiro e andavam a cavalo pelas ruas de terra. Alguns ainda carregavam
armas na cintura.
A cidadezinha tinha um prefeito, mas
quem mandava mesmo era o padre. Augusto e Mojica sabiam que a primeira regra
para uma convivência pacífica em cidades como aquela era fazer amizade com o
padre. Assim que chegaram, foram à igreja bajular o sacerdote e pedir sua
bênção para o filme. O sujeito, mal-humorado, já foi avisando que não gostava
“desse tal de cinema”, e perguntou se o filme era “próprio para famílias
cristãs”. Mojica tentou tranquilizá-lo, dizendo que a fita contava “a história
de um homem que encontra o caminho da verdade quando aceita Deus”. Só esqueceu
de mencionar as cenas de bebedeira no bar e as atrizes que tomariam banho de
cachoeira peladas...
A primeira cena a ser rodada era
justamente a do bar. Nesta sequência, a aluna Tônia Eletra cantava uma canção
sensual, enquanto dançava, toda fogosa e com os ombros de fora, em volta das
mesas. Mojica e Augusto recrutaram vários moradores para atuar como figurantes.
Só não contavam com a ira das esposas que, ao verem Tônia rebolando nas barbas
de seus maridos, ameaçaram interromper a filmagem as pauladas:
- Prostituta! Vai dançar assim pros
seus negos lá na capital!
O padre ficou horrorizado. Então era
esse o tal “filme cristão” que Mojica havia prometido? Se fosse para continuar
com aquela pouca vergonha, ele não permitiria a filmagem. Augusto desculpou-se
e disse que a cena era pesada assim porque mostrava “o baixo nível dos homens
que ainda não haviam encontrado Deus”.
Depois desse incidente. Augusto e
Mojica redobraram os cuidados para não ofender ninguém. A cena do banho de
cachoeira de Shirley Alves (Dorinha) e Ruth Ferreira (Rosária) foi filmada a
vários quilômetros da cidade, longe da vista dos curiosos. Mas a notícia da
cena erótica acabou se espalhando. Quando o povo soube que as duas haviam
rodado cenas nuas em pelo, houve uma comoção: as mulheres queriam matá-las,
enquanto os homens da cidade tomaram um súbito interesse pela sétima arte.
Apesar de alguns problemas com as
esposas ciumentas, Mojica e o resto da equipe foram muito bem tratados pela
população. Os moradores de São José estavam felicíssimos e orgulhosos com a
presença de “artistas da capital” e não tinham ideia de que na verdade aquela
produção era uma pobreza só. A equipe de Sina era tão pequena, que cada
um teve de assumir diversas funções: Mojica não só dirigiu e atuou no filme,
como também trabalhou como maquiador, carregador de equipamento, cenógrafo,
figurinista, cabelereiro e eletricista. Falou gente até para completar o
elenco, o que o obrigou a interpretar dois papéis: no início do filme ele
aparece como um coveiro e depois faz um dos bandoleiros que matam Dorinha.
O improviso foi uma constante durante a
filmagem. Certa tarde, estavam rodando uma cena romântica na qual Acácio e
Shirley se beijavam embaixo de uma árvore, quando caiu uma tremenda tempestade.
Mojica decidiu cancelar a filmagem e fazer os closes dos atores no dia
seguinte. Só que, no meio da noite, um raio destruiu a tal árvore. Quando a
equipe voltou ao local, havia apenas um pedaço de tronco chamuscado. Mojica
teve de finalizar a cena semanas depois, numa praça na Casa Verde, em São
Paulo. O beijo, que começaram em São José da Bela Vista, só foi terminar a 400
quilômetros dali, numa praça movimentada.
Em São José, a equipe hospedada numa
pensão furreca, cinco pessoas espremidas em quartos onde só cabiam duas. O
lugar tinha teto de zinco e, com o sol causticante que castigava a região, o
interior da casa se transformava numa verdadeira estufa, obrigando todos a
dormir de janela aberta. O problema é que, bem atrás da pensão, havia um
matagal de onde saia todo tipo de animal e inseto. Logo na primeira noite,
Mojica foi acordado por um ataque de morcegos. Dias depois, uma nuvem de
gafanhotos entrou pelas janelas e a equipe ficou a noite toda de toalha na mão,
espantando os bichos.
Estes não foram os únicos acidentes
zoológicos enfrentados pela turma: para filmar uma cena em que bois
atravessavam uma pequena ponte sobre um rio, Mojica pediu emprestado ao
fazendeiro Ismar trinta cabeças de gado. O sujeito deve ter entendido trezentas
porque, no dia marcado, os peões da fazenda trouxeram uma verdadeira manada. A
equipe de filmagem ficou sentada no parapeito da ponte, com a câmera protegida
por um jirau, só esperando os bois. Ninguém percebeu o excesso de bovinos, já
que os animais estavam atrás de uma curva na estrada, a 100 metros de
distância. Assim que Mojica deu um sinal para que os peões soltassem o gado,
ouviu-se um estrondo. Era a manada enlouquecida. Quando viram aquela boiada toda
correndo em direção à ponte, todos se jogaram no rio, inclusive o cinegrafista.
Outro exemplo da precariedade da
produção foi o acidente que feriu o assistente de câmera Corintho, marido da
atriz Shirley Alves. Durante o combate final entre Jaime (Acácio Lima) e o
bandido Xavier (Amides Martines), Mojica quis filmar uma cena na qual Jaime
disparava seu revólver em direção à câmera. Sua ideia era mostrar um close da
arma disparando o tiro fatal contra o bandoleiro. Era uma cena muito perigosa,
já que Corintho, encarregado de manejar a câmera, ficaria na linha de fogo.
A equipe não dispunha de nenhum técnico
em efeitos especiais e tampouco de pistolas de mentirinha que pudessem ser
usadas. Teriam de usar arma de verdade, com balas de festim. Mojica sabia que
tiros de festim podiam machucar, por causa dos pedaços de chumbo que ficam no
cano e que são projetados junto com a cápsula. Ele mandou Corintho vestir uma
proteção de couro que o cobria dois pés ao pescoço, e orientou Acácio a
disparar na direção do peito do cinegrafista.
Acácio, no entanto, estava muito
nervoso por causa da cena. Sua mão tremia feito gelatina. Resolveu tomar uma
pinga para se acalmar, mas exagerou na dose e ficou pior ainda. Quando Mojica
gritou “ação”, Acácio balançou a mão e o tiro atingiu em cheio o rosto de
Corintho, que caiu no chão com as bochechas todas furadas. O pessoal botou-o
numa perua e correu para o dentista. É que o dentista era também vendedor de
armarinho, secos e molhados, farmacêutico, barbeiro, alfaiate e médico. Ninguém
sabia se ele tinha o consultório dentro do armazém ou o armazém dentro do
consultório. O sujeito olhou para o ferido e disse que era melhor esperar pelo
ônibus e levá-lo para Franca. Corintho esbravejou:
- Não dá tempo! Se a pólvora esfriar,
vai grudar no meu rosto e não sai mais! Pega a navalha e o iodo vai tirando
minha pele!
O médico-dentista-barbeiro obedeceu:
com a navalha, ia arrancando a pele, enquanto queimava os ferimentos com iodo.
As bochechas de Corintho ficaram em carne viva. Shirley olhou para o rosto do
marido e desmaiou na hora. Nem Mojica aguentou assistir àquela cena torturante.
Corintho ficou com tantas marcas no rosto que, daquele dia em diante, nunca
mais fez a barba.
Mesmo com todos os sustos e
contratempos, conseguiram terminar o filme. Mojica estava radiante. Fazia
quatro anos que ele iniciara seu primeiro longa-metragem, Sentença de Deus
e agora, depois de dois projetos fracassados, finalmente teria um filme lançado
em circuito. Seria o seu verdadeiro batismo como diretor. Agora ninguém mais
poderia tomá-lo por um sonhador ingênuo. Era um cineasta.
Em 19 de dezembro de 1958, A Sina do
Aventureiro estreou no Cine Tangará, em Santo André. Pelos meses seguinte,
Mojica e Augusto excursionaram com a fita pelo interior paulista – Franca,
Ribeirão Preto, Piracicaba – e, em seguida, foram até Goiânia, onde Nilza de
Lima fez uma sessão especial para seus parentes. O filme só viria a estrear em
São Paulo em 19 de agosto de 1959, no Cine Coral, no centro.
A reação da crítica foi morna. Se por
um lado a inexperiência de Mojica realmente transparecia na tela, por outro
ficava evidente que ele tinha cacife para voos mais altos. As cenas de ação,
especialmente do assassinato de estilo cru e direto que Mojica aperfeiçoaria
anos depois nos filmes de Zé do Caixão. A violência do filme desagradou o
Serviço de Censura de Diversões Públicas, órgão responsável pela classificação
etária para filmes. O SCDP proibiu A Sina para menores de 18 anos,
prejudicando enormemente suas chances na bilheteria. Foi a primeira de muitas
decepções que Mojica teria com a Censura.
No jornal Diário da Manhã de
Ribeirão Preto, o crítico Osvaldo Brito ficou impressionado com a brutalidade
do filme e reclamou de alguns detalhes técnicos, mas encerrou sua avaliação com
elogios à equipe:
Há cenas de explosiva e
impressionante violência, entremeadas de bucólicas paisagens aproveitando a
cinegrafista as silhuetas bem-situadas, nos horizontes, reminiscências, talvez,
do trabalho famoso de O Cangaceiro, até hoje o filme-padrão no gênero,
dentro das possibilidades brasileira (...)
Uma certa descontinuidade e alguns cortes
súbitos, além de outros mal orientados, não prejudicam o valor intrínseco da
película. A Sina do Aventureiro é legítimo filme do gênero “western”,
relativo á gente dessas plagas. Não é super-filme, nem devo alinhá-lo entre os
melhores nacionais. Agrada, no entanto, porque tem algo a mostrar e revela o
ingente e desmedido esforço de um grupo bem-intencionado, do qual se espera
muito mais, em breve.
Já o crítico da Folha da Tarde,
B.J. Duarte não foi tão leniente com o amadorismo de Mojica:
O resultado é precário, a surdir
inexperiência e improvisação a cada metro da película projetada, a denunciar em
todos os setores da criação cinematográfica aquela falta de preparo técnico e
intelectual que vem caracterizando o cinema brasileiro (...)
Não duvido um só instante das boas
intenções de José Mojica Marins, das de seus companheiros de equipe, das de
quantas participaram de sua realização (...) mas, apenas com
sinceridade, fé e confiança em si próprio, não se faz cinema, não se faz
literatura, nenhuma arte se realiza plenamente. É um mister um aprendizado
geral, é necessária a cultura do espírito, impõe-se o conhecimento da técnica,
sem o que nunca se fará nada, a não ser obras medíocres e vacilantes.
A Sina do Aventureiro não foi um
estouro de bilheteria, mas também não decepcionou. Ficou três semanas no Coral
e depois correu o circuito suburbano com relativo sucesso durante o primeiro
semestre de 1960. Mojica bolou alguns espertíssimos truques de divulgação, que
usaria pelo resto da vida: seu preferido era mandar alunos para as filas de
outros filmes, com a ordem de elogiar Sina: “Você já viu aquela fita que
tá no Coral? Um bangue-bangue de arrebentar!”. Ele também fez amizade com
alguns donos de cinema e passou a organizar sessões especiais do filme, que
batizou de “A Sina do Aventureiro com atores ao vivo”. O espectador pagava um
ingresso, assistia ao filme, e ainda podia ver a atriz Tônia Eletra dançando
rumba de biquinho. Tônia, uma gordinha sensual e desinibida, subia ao palco de
saia, blusa e sapatos. Daí Mojica chamava os marmanjos da plateia para ir
tirando sua roupa enquanto ela sacolejava as cadeiras. Foi um sucesso.
Com o lançamento de Sina, a
Apolo prosperou. O cursinho de atores já tinha quase duzentos alunos. Mas a
concorrência também havia se fortalecido: várias escolas de interpretação
haviam sido inauguradas nos últimos meses, iniciando uma verdadeira batalha por
alunos. Mas a concorrência também havia se fortalecido: várias escolas de
interpretação haviam sido inauguradas nos últimos meses, iniciando uma
verdadeira batalha por alunos. Um dos rivais de Mojica, Hélio Menezes, começou
a oferecer dinheiro para tirar os melhores atores da Apolo. Seu primeiro
convite foi para a Tônia Eletra, a gordinha sexy, mas ela preferiu ficar com
Mojica (infelizmente, a promissa carreira de Tônia chegaria ao fim um ano
depois, quando ela morreu afogada durante um banho de mar em Santos). Para
contra-atacar, Mojica promoveu alguns de seus melhores alunos a
“caça-talentos”, espécie de olheiros que deveriam andar pela cidade atrás de
novos alunos para a escola. O trabalho dos “caça-talentos” não se limitava a
descobrir jovens de inclinação artística: eles também precisavam checar se os
pretendentes a uma vaga na escola tinham condições de pagar as mensalidades.
Foi um desses olheiros que trouxe Mário
Lima, um nordestino conhecido nos salões de baile do subúrbio por sua
habilidade na dança do “brasileirinho”. Em seu teste de admissão para a escola,
Mário surpreendeu Mojica com uma atuação convincente: quando foi instruído a
simular uma briga com outro aluno, partiu para cima do sujeito com tanta
convicção que teve de ser contido para não o surrar. Mojica gostou de Mário e
logo se tornaram bons amigos.
Outra bela “aquisição” da Apolo foi
Maria José do Prado, uma mineira de corpo escultural. Mojica – casado há menos
de dois anos com a igualmente bela Rosita – não resistiu à morenice brejeira da
moça e passou a galanteá-la dia após dia, até que ela também caiu de amores.
Não era a primeira vez que Mojica traía Rosita: com tanta mulher dando sopa na
Apolo, ele trocava de namorada quase toda semana. Maria, no entanto, foi seu
primeiro caso mais sério e duradouro.
No fim de 1960, alguns alunos vieram
com a ideia de fazer uma revista sobre cinema. Mojica viu no projeto uma boa
oportunidade não só de faturar um trocado, mas também de divulgar a Apolo. Em
abril do ano seguinte, saía o primeiro número de A Voz do Cinema,
trazendo uma fotonovela com cenas de A Sina do Aventureiro e diversos
artigos sobre a escola. Como todos os outros projetos da Apolo, a revista
pecava pelo amadorismo, mas transmitia uma empolgação fora do comum. Mojica
havia conseguido contagiar seus alunos com a ideia de que todos poderiam ser
estrelas, mesmo que tivessem de fabricar a própria celebridade. Sua teoria era
simples: para que esperar a fama bater à sua porta, quando você pode ficar
famoso por conta própria? Com isso em mente, eles fizeram de A Voz do Cinema
um deslavado veículo de autopromoção, onde todos eram tratados como astros.
É claro que ninguém se promoveu mais
que Mojica. Ele assumiu o cargo de editor e passou a escrever todos os
artigos da revista, além de poemas, contos e ensaios, cada um pior que o outro
(numa comovente prova de modéstia, assinou uma coluna intitulada “O Mundo
Fabuloso de Minha Imaginação”). Sua falta de intimidade com o mundo das letras
resultou em diversas barbaridades gramaticais. Logo na capa do primeiro número,
já cometia o primeiro pecado:
A única revista de fotonovela, que
apresenta,
filmes dramáticos, selecionados inteiramente
nacionais.
Na edição seguinte, quando um leitor
reclamou do alto preço da revista (60 cruzeiros, ou dois ingressos de cinema),
Mojica respondeu com uma surreal lição de economia: “Em relação à nossa
tiragem, consumimos 30% de papel sobre o preço do exemplar desta revista, 50%
de clicheria, 20% em trabalhos gráficos, 30% no trabalho fotográfico, 30% na
execução de seu conteúdo e 40% na sua colocação”.
Mas nada se comparava a seus poemas. O
melhor deles, adequadamente intitulado “O eterno sono”, dizia:
Sinto-me o homem mais poderoso
De uma força diferente sem igual
Torno-me nesse instante glorioso
Da imensa terra, o mais feliz mortal
Teria também força para barrar
O próprio tempo que certo caminha
E em voz alta para o mundo gritar
Que eres minha, somente minha
Estou no feitiço da fascinação
Seus lábios para mim é um tormento
Que me leva a vida e obsessão
Mas deixe-me viver este momento
De repente acordo, era um sonho
De perdê-la não haverá perigo
Voltarei a um mundo belo e risonho
No descanso do eterno sono contigo
A Voz do Cinema tinha uma tiragem de 10 mil exemplares, distribuídos em bancas pelos
próprios alunos da Apolo. O grupo chegou a vender assinaturas anuais de doze
números, mas a revista foi um fracasso de vendas e só durou quatro edições.
Outro motivo que colaborou para seu cancelamento foi o súbito desinteresse de
Mojica, cuja vida pessoal sofrera uma tremenda reviravolta causada pela notícia
da gravidez de sua amante, Maria.
Ela passou a viver um grande dilema: estava cada vez
mais apaixonado por Maria, e ao mesmo tempo via seu casamento com Rosita indo
para o brejo. A principal causa de sua crise conjugal era a dificuldade que
Rosita estava tendo para engravidar. Mojica, que crescera num ambiente
machista, em que as mulheres eram relegadas simplesmente à função de procriar,
via a ausência de um filho como uma falha pessoal da mulher. Daí a maior
atenção que passou a dedicar à amante, inclusive alugando para ela um pequeno
apartamento na rua Coronel Albino Bairão, no Brás.
Em julho de 1962, Maria deu à luz um menino. Mojica,
extasiado, fez uma lista de dez nomes e pediu que ela escolhesse um. Maria
optou pelo menos bizarro, Crounel, uma homenagem – com grafia incorreta, mas
assim uma homenagem – ao lorde protetor da Inglaterra, Olivier Cromwell. Anos
depois, quando Crounel reclamou da estranheza de seu nome, sua mãe respondeu:
- Dê graças a Deus; teu pai queria te chamar de
Estrunguinaldo!
Mojica escondeu de Rosita o nascimento do filho. A
chegada do menino, no entanto, provocou algumas brigas com Maria, que passou a
exigir que ele largasse a esposa. “Você pode ser casado com a Rosita, mas eu
sou a mãe do seu filho”, dizia. Pouco depois de Crounel completar um ano,
Mojica jurou a Maria que iria contar tudo à esposa e acabar de vez com aquela
farsa. Ela tomou coragem e foi falar com Rosita. Seria um baque para ela, mas
era preciso endireitar a situação. Mojica nunca poderia imaginar a surpresa que
o aguardava. Rosita, chorando de alegria, lhe deu a notícia que esperaram por
seis anos: estava grávida! Mojica ficou de boca aberta, sem saber se ria ou
chorava. Agora não teria coragem de separar-se de Rosita, e também não poderia
romper o compromisso com Maria. Entre quebrar o coração de uma mulher ou de
outra, ele optou por uma terceira solução, mais comodista: simplesmente deixou
tudo como estava e continuou dividindo seu tempo entre a esposa e a amante.
Foram meses difíceis aqueles: Mojica vivia correndo
da casa da esposa para os braços da amante, visitando o filho Crounel e ao
mesmo tempo cuidando de Rosita, grávida. Ele não sabia como aquela história
iria terminar. Tinha consciência de que, um dia, teria que decidir entre as
duas mulheres, mas preferiu adiar a escolha indefinidamente. Estava ocupado
demais com o cinema para pensar nesses “probleminhas”.
Mojica ainda não tinha ideia de qual seria seu
próximo filme. Queria fazer uma fita policial, mas temia novamente a
implicância da Censura. Também tinha medo da reação dos padres, que haviam
reclamado muito da brutalidade de A Sina do Aventureiro. Hoje pode
parecer estranho que um padre tenha o poder de influenciar na bilheteria de um
filme, mas naquela época uma palavra de desagrado durante a missa dominical
para que o público fugisse do cinema. Mojica sentiu isso na própria pele quando
exibiu Sina em cidades do interior e foi criticado pelos beatos. Chegou
a discutir com um deles: “O senhor pode entender de missa, mas de cinema
entendo eu!”.
Preocupado, resolveu pedir ajuda a um homem que
entendia de missa e de cinema: o padre Lopes, fundador da Escola Superior de
Cinema São Luiz, uma das primeiras escolas de cinema do Brasil. Lopes o
aconselhou a fazer uma fita para toda a família, de preferência com crianças,
tipo Marcelino, Pão e Vinho, um estouro na época. Mojica não se empolgou
muito, mas prometeu pensar na ideia. Alguns dias depois, leu no jornal uma
reportagem sobre Franquito, “o garoto da voz de ouro”, um cantor mirim que
fazia bastante sucesso nas rádios com a balada “O jornaleiro”. Seria o ator
perfeito para um filme infantil! Sem perder tempo, Mojica procurou o pai de
Franquito – que era também seu empresário – e ofereceu ao menino o papel
principal de sua próxima fita. Depois se enfurnou por três dias no escritório
da Apolo e escreveu o roteiro de Meu Destino em Tuas Mãos, um dramalhão
sobre cinco garotos maltratados pelos pais que resolvem fugir de casa e morar
nas ruas. O script intercalava a história dos meninos com vários números
musicais, que seriam interpretados por Franquito.
Augusto Pereira e Nilza de Lima gostaram do projeto
e resolveram entrar com metade da verba. Para completar a outra metade, Mojica
sugeriu Franquito gravar um LP com as músicas do filme, cujo lucro seria
revertido para a produção (um caso singular de trilha sonora lançada antes
mesmo do filme ser rodado!). O próprio Mojica incumbiu-se de compor algumas
canções, apesar de não saber a diferença entre uma clave de sol e uma chave de
fenda (simplesmente assobiava a melodia para um aluno com melhores dotes musicais,
que escrevia tudo bonitinho na partitura). Depois convenceu a gravadora
Copacabana a prensar o disco, que saiu no fim de 1962. Por meses os alunos
correram os subúrbios vendendo o LP em festas e gincanas, até que finalmente
arrecadaram o necessário para completar a verba de Meu Destino em Tuas Mãos.
O produtor Augusto Pereira montou uma super-equipe,
liderada por Ruy Santos, um dos melhores fotógrafos do país. A exemplo do que
havia ocorrido em A Sina do Aventureiro, os técnicos reclamaram do
roteiro de Mojica: não havia descrição dos planos, os diálogos estavam
incompletos, enfim, uma zona. Augusto saiu à procura de um roteirista que para
burilar o script. Acabou contratando um desconhecido que, anos mais tarde, se tornaria,
ao lado de Mojica, um dos pais do cinema marginal brasileiro: Ozualdo Candeias.
Mojica rodou Meu Destino em Tuas Mãos com o
único objetivo de fazer um filme de sucesso. Tinha até certa vergonha da
história, um besteirol moralista e ingênuo sobre cinco crianças forçadas a
abandonar suas casas por causa dos maus-tratos dos pais (ele próprio
interpretava um pinguço que batia no filho). Como todo dramalhão lacrimejante,
este também tinha um final feliz: os pais se arrependiam, voltavam a armar os
pimpolhos e todos viviam felizes para sempre.
O filme foi terminado a toque de caixa, em junho de
1963, e exibido numa sessão especial para padres e freiras, organizado pelo
padre Lopes. Os religiosos aplaudiram muito no final: “Isto sim é um filme
cristão”, elogiou um deles. Augusto e Mojica até choraram de felicidade. “Vamos
ficar ricos”, disse Augusto. A profecia, infelizmente, não se concretizou. Se
os párocos haviam adorado o filme, a reação dos exibidores foi oposta: “Isso é
uma tremenda água com açúcar!”. Ninguém queria lançar a fita. A Censura também
não ajudou muito, proibindo o filme para menores de 14 anos. Desesperado,
Mojica alugou por duas semanas o Cine Europa, na praça da República, para ver
se o público se animava. Não deu certo: as crianças estavam proibidas de entrar
e os adultos não se empolgaram a com a história piegas e a voz chorosa de
Franquito.
O fracasso de Meu Destino em Tuas Mãos deixou
Mojica numa pior. Completamente duro, passou a sobreviver vendendo o encalhe
dos discos de Franquito. Mas um golpe de sorte o livraria da pindaíba total:
algumas semanas depois, foi apresentado a Jaime “Cubano”, dono de três cinemas
de filmes eróticos no centro de São Paulo, e sugeriu ao exibidor relançar A
Sina do Aventureiro em suas salas. Jaime topou, contanto que Mojica
incluísse algumas cenas mais picantes:
- Você põe umas mulheres peladas, um pouco de
sacanagem, e eu passo nos meus cinemas!
Mojica e seus alunos construíram uma réplica do bar
de A Sina do Aventureiro e rodaram, em apenas uma tarde, cerca de dez
minutos de cenas adicionais, incluindo uma sequência em que Mojica,
interpretando um velho assanhado (seu terceiro papel no filme, depois do
coveiro e do bandido), obriga várias mulheres a fazer strip-tease sob a mira de
um revólver. Quem fotografou essas cenas foi o italiano Giorgio Attili, um
veterano da Vera Cruz, que a partir daquele momento se tornaria o cinegrafista
predileto de Mojica. A versão erótica de A Sina do Aventureiro foi
exibida nos cinemas de Jaime e rendeu um bom dinheiro. Nenhuma fortuna, mas o
bastante para aliviar os prejuízos causados por Meu Destino em Tuas Mãos.
Ainda sobrou um trocado, que Mojica usaria em seu próximo filme...
Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.
Nenhum comentário:
Postar um comentário