Capítulo 16: 1979-1983: Deputado Zé do Caixão, ás suas ordens
Por André Barcinski e Ivan Finotti
A viagem para a Espanha servira para
inflar o ego de Mojica, mas seu bolso continuava vazio. As reportagens
publicadas sobre sua premiação no exterior não renderam nenhum convite para
novos filmes e, no Brasil, tudo continuava na mesma: cinemas fechavam e produtoras
independentes faliam. Mojica não poderia prever, mas Perversão seria o
último longa-metragem inteiramente seu a chegar às telas. Dali em diante,
trabalharia apenas como diretor contratado. Completamente duro, ele fechou o
estúdio da Moóca e ocupou um escritório que pertencia à “milionária assassina”,
Elza Leonetti do Amaral, na rua 7 de Abril, centro de São Paulo.
Sua vida pessoal estava um caos absoluto: escondia
Fátima de Nilce, Nilce de Maria e, vez por outro, ainda tinha
namoricos-relâmpago com outras alunas. Começou a beber cada vez mais. Chegava a
virar duas garrafas de licor de menta por dia. Cafezinho, só tomava batizado
com rum. Vivia deprimido de tanto álcool e várias vezes teve de ser carregado
para casa. Nilce, deprimida, pegou sua filha Nilcinha e foi morar na casa de
sua amiga Elza Leonetti, no Itaim Bibi.
Por volta de março de 1979, Mojica atingiu o fundo
do poço. Estava a um passo da mendicância. Desesperado, reuniu os últimos
alunos que lhe restavam e começou uma campanha, batizada de “Faxina em Prol do
Cinema Nacional”. Todo dia a turma ia de porta em porta, no Brás e na Moóca,
oferecendo faxina de graça em troca de revistas velhas, que depois eram
vendidas para bancas de jornal do centro da cidade. Nilce também começou a se
virar como pôde: ela pegava saquinhos de plástico, fazia kits com um exemplar
do livro Sentença de Deus, um gibi de Zé do Caixão e um compacto com a
marchinha “Castelo dos Horrores”, e saía vendendo os pacotinhos pela
rua, dizendo que era para ajudar os cegos e paralíticos.
Em julho, Mojica procurou os jornais para anunciar
que estava colocando à venda sua coleção de gibis. Eram mais de quatro mil
revistas, muitas raríssimas, que guardara desde a infância e das quais nunca
sonhara em se desfazer. Para ele, acostumado a procurar a imprensa para
divulgar um novo filme ou projeto, foi uma humilhação ter de confessar sua
penúria e apelar para a caridade alheia.
Apesar das várias matérias publicadas, ninguém se
interessou pela gibiteca. Mojica, precisando urgentemente de dinheiro, fantasiou-se
de Zé do Caixão e foi com Elza Leonetti para a praça Ramos, no centro de São
Paulo, onde montou uma barraquinha para vender os gibis. Foram os dias mais
tristes de sua vida: multidões paravam para rir daquela insólita dupla de
camelôs: pedestres faziam piadas e o ridicularizavam. Mojica sentiu-se como uma
atração de circo. A humilhação acabou compensada pela venda de várias revistas,
que lhe garantiram sustento por mais alguns dias.
Mesmo passando por tantas dificuldades financeiras,
Mojica nunca desistiu de filmar: vivia caçando produtores na Boca do Lixo,
mostrando seus roteiros e tentando convencer alguém a financiar a continuação
da saga de Zé do Caixão. Ninguém lhe dava bola. Cansados de esperar, alguns
alunos resolveram fazer uma coleta para produzir um filme. Arrecadaram uma
mixaria. Mojica fez os cálculos e disse que, com aquele dinheiro, só teriam
condições de usar filme Super-8, muito mais barato que o negativo de 35 mm
normalmente usando em fitas profissionais. Alguém sugeriu filmar em Super-8 e
depois ampliar para 35 mm. Essas ampliações invariavelmente resultavam em
imagens granuladas e de pouca definição, mas Mojica não estava preocupado com a
qualidade. Só queria filmar.
Ele reuniu a equipe numa salinha no bairro do Pari e
rodou A Praga, história de um homem cujo corpo começa a apodrecer depois
de ser amaldiçoado por uma bruxa. O roteiro havia sido escrito por Rubens
Lucchetti para um episódio do programa Além, Muito Além do Além, e fora
adaptado para quadrinhos na revista O Estranho Mundo de Zé do Caixão,
número 3. O filme foi inteiramente rodado, mas faltou dinheiro para a montagem
e o projeto acabou esquecido.
Logo depois, Mojica decidiu filmar um curta-metragem
para aproveitar a lei que obrigava os cinemas a exibir um curta nacional em
cada sessão de filme estrangeiro. Era uma mamata: qualquer porcaria passava –
até 1984, não existia sequer uma comissão de seleção dos curtas – e o produtor
recebia 5% da bilheteria das produções estrangeiras. Quem desse a sorte de ter
seu curta-metragem exibido junto a um filme de sucesso como Contatos
Imediatos de Terceiro Grau ou Os Embalos de Sábado à Noite poderia
ficar rico da noite para o dia.
Os cinemas brasileiros foram subitamente invadidos
por dezenas de curtas sobre cerzideiras nordestinas, concursos de pipa em
Realengo e artistas plásticos piauienses. Muitos diretores fizeram seu
pé-de-meia com esses filmes: Nilo Machado, o maior gênio da trambicagem cinematográfica
brasileira, fez dezenas de curtas usando colagens de velhos filmes
estrangeiros, que ele comprava aos quilos (um dos mais famosos foi Ginástica
– Base Para Uma Boa Saúde, totalmente montado a partir de um filme sueco
que mostrava um bando de garotas brincando de bambolê).
Mojica convenceu sua turma a fazer outra “vaquinha”
e rodou nada menos de cinco curtas-metragens em um mês. Ele não escondeu do
pessoal que só estava fazendo esses filmes pela grana: seriam todos rodados às
pressas, sem muito capricho, e serviriam apenas para faturar um troco e dar
mais experiência à turma. Seu plano era usar o dinheiro que ganhassem com os
curtas para produzir filmes melhores.
O primeiro curta-metragem foi A Imigrante (Simplesmente
Mulher), que nada mais era do que a história da vida de Nilce. Ela chegou a
ficar emocionada com a homenagem, antes de descobrir que Mojica havia convidado
a amante Fátima para interpretar o papel principal. Em seguida, ele rodou um
filme experimental sobre a automatização da sociedade, chamado Evolução-
Homem versus Máquina: A Luta do Século no Planeta dos Botões. O curta –
interessante apesar da precariedade da produção – consistia de vários
flagrantes de pessoas, na rua e no trabalho, fazendo gestos robotizados e
apertando botões. A montagem ficava cada vez mais acelerada, mostrando uma
infinidade de botões – em elevadores, calculadoras, máquinas registradoras –
até que alguém aperta o botão da bomba atômica e o mundo explode. O filme
termina mostrando o homem de volta ao tempo das cavernas, comendo carne crua e
carregando uma clava.
Mojica depois fez dois curtas de protesto, É
Proibido Caças Produtores de Cinema – Espécie em Extinção, sobre um
produtor que comete suicídio depois de ver seu filme fracassar, e Justiça,
Justiça, história de um ator que se aproveitava da bondade de seu produtor
(interpretado pelo pai de Nilce, Antônio Feo) e depois rouba seu dinheiro. Este
filme foi inspirado no episódio envolvendo o ator Amaury Silva, que anos antes
ganhara uma ação trabalhista contra Mojica depois de morar de graça em seu
estúdio.
O papel do ator desonesto em Justiça, Justiça
ficou com Carlos Alberto de Mattos, um aluno mais conhecido por “Tarzan”. Cinco
anos mais tarde, provavelmente inspirado por seu personagem, ele entraria com
um processo contra Mojica, alegando que trabalhara por vários anos sem receber
nada. Só que Tarzan não parecia bater muito bem da cabeça: no tribunal, disse
que morava para lá de Ribeirão Preto, a quarto horas do estúdio. Quando o juiz
perguntou como ele conseguia trabalhar num lugar tão longe e gastar oito horas
por dia num ônibus – quatro para ir e quatro para voltar – Tarzan afirmou que
só conseguia porque havia feito um curso de sobrevivência na selva, onde
aprendera a suportar qualquer privação. O juiz, irritado, mandou arquivar o
processo e ameaçou prendê-lo, caso continuasse mentindo.
O último curta-metragem da série foi Brincadeira
Fatal, inspirado por um episódio verídico ocorrido com o aluno Manoel
Cardoso, um louco de pedra. Mojica tinha dó do rapaz, e até deixou que ele
morasse no estúdio por uns tempos. Certa noite, alguns alunos resolveram pregar
uma peça em Manoel: esconderam-se no estúdio e, de madrugada, começaram a
imitar fantasmas: “Uuuuhhhhh! Manoel, viemos buscar a sua alma!”. Ele ficou
apavorado. Um dos engraçadinhos se meteu debaixo de um lençol e tentou
assustá-lo. Manoel tomou coragem, sacou um canivete e furou a barriga do
“fantasma”. Depois, saiu comemorando pelas ruas: “Sou um herói! Matei o
fantasma do estúdio do Zé do Caixão!”. O ferido foi levado para o
pronto-socorro, e Manoel, para a delegacia.
Dos cinco curtas, somente os dois primeiros – A
Imigrante e Evolução – foram distribuídos comercialmente. Os três
últimos nem chegaram a ser sonorizados. Mojica acertou a exibição dos filmes
com o dono de um grande circuito de cinemas no Rio de Janeiro, mas o sujeito
passou a bola para o filho – um conhecido traficante e cocainômano – que nunca
pagou tudo que devia.
Em setembro de 1980, nasceu Rose, segunda filha de
Nilce e Mojica. Nilce tinha esperança de que o nascimento da menina finalmente
convencesse Mojica a ir morar com ela e as filhas. A situação bem que levava a
crer que isso acabaria acontecendo: o romance de Mojica e Maria estava no fim e
ele decidira, depois de anos de adiamentos, entrar com um pedido de divórcio de
Rosita (o desquite sairia em 1981). Além do mais, seus filhos com Maria e
Rosita já estavam crescidos. Se havia alguém precisando de um pai, era Nilcinha
e a recém-nascida Rose. Quando tudo parecia caminhar para um final feliz, veio
a bomba: Fátima estava grávida de Mojica. Nilce ficou arrasada. Pediu demissão
do estúdio e arrumou emprego numa confecção. Estava resolvida a largar o cinema
e nunca mais procurar Mojica.
A situação de Fátima também era crítica: sua família
não aceitou a gravidez e a expulsou de casa. Sem ter onde ficar, foi morar com
a mãe de Mojica, dona Carmen, num pequeno apartamento no Brás. Ela passou meses
dormindo num sofá desconfortável, sem dinheiro para fazer qualquer exame
pré-natal e sobrevivendo da aposentadoria de dona Carmen. Quando nasceu seu
filho, Denilson, em abril de 1981, ela não tinha dinheiro sequer para comprar
mamadeiras ou fraldas. O bebê dormia no gavetão de uma cômoda. Alguns meses
depois, foram despejados do apartamento e acabaram nos fundos de uma garagem,
onde nem cômoda havia. Fátima e a criança dormiam no chão.
Enquanto isso, Mojica continuava a viver de biscates
e aparições em festas. Chegou a montar um pequeno grupo teatral para
apresentar-se em bailes, encenando esquetes mambembes nas quais saía de seu
caixão e rogava pragas para a plateia, enquanto seus alunos, fantasiados de
monstros, entretinham o público. O destaque da trupe era Jurandir, um sujeito
que tinha pernas mecânicas e duas garras de aço no lugar dos braços, capaz de
apavorar qualquer plateia.
Mojica não sentia prazer algum em participar desses
shows. Na verdade, achava uma amolação ter de despencar até o subúrbio para
encenar esquetes tão furrecas e constrangedoras. O público só tinha duas
reações: ou caía na gargalhada com o ridículo da cena ou vaiava impiedosamente.
Mas Mojica não tinha opção; era isso ou vender gibis na rua. Para aliviar sua
depressão, bebia cada vez mais.
Sua constante embriaguez causou diversos problemas
durante as apresentações de seu grupinho teatral: certo dia ele foi convidado
por um amigo, o empresário Samuel Moura, para participar do “Baile das Bruxas”,
uma festa a fantasia num clube em Jundiaí, perto de São Paulo. Uma semana antes
do baile, Mojica precisou ir a Belo Horizonte dar aulas numa escolinha de
atores, mas garantiu que voltaria logo para São Paulo. Os dias foram passando e
nada de ele voltar. Samuel, desesperado, mandou um assistente buscá-lo em Belo
Horizonte. O sujeito caçou Mojica por toda a cidade e só o encontrou na manhã
do baile, bêbado de cair. Levou-o para o aeroporto e marcou um voo para aquela
mesma noite, mas na hora do embarque desabou um temporal na capital mineira e o
avião não pôde decolar.
Samuel estava dentro do clube quando recebeu a
notícia de que Mojica não viria. Do lado de fora, mais de 2 mil pessoas –
fantasiadas de diabos e bruxas - esperavam na fila. Ele procurou um dos
diretores do clube e contou tudo. O sujeito ficou tão irritado que começou a
arremessar cadeiras contra uma parede. Os outros diretores deram no pé, com
medo de serem linchados. O baile foi cancelado e Samuel perdeu um bom dinheiro.
Isso foi fichinha perto de um show em Araçoiaba da
Serra, 110 quilômetros a oeste de São Paulo. No dia marcado, Mojica estava
novamente dando aulas em Belo Horizonte. Samuel, com medo de um novo fiasco,
resolveu buscá-lo pessoalmente. Durante o voo para São Paulo, Mojica roubou
três garrafas de vinho do carrinho da aeromoça e chegou totalmente chumbado. Já
passava das onze da noite quando chegaram a Araçoiaba da Serra. Mojica não
conseguia nem andar: caiu duro num sofá e só acordou á uma da manhã, quando foi
colocado no caixão e carregado para o palco, totalmente grogue. O público, que
à essa altura já achava que Zé do Caixão havia dado o cano, invadiu o palco
para ver mais de perto. No meio do fuzuê, um sujeito, conhecido na cidade como
“Capeta”, chegou perto de Mojica e arrancou-lhe uma das unhas da mão. Depois
saiu gritando: “Viva! Arranquei a unha do Zé do Caixão!”. Mojica, chorando de
dor, voltou correndo para o camarim, e o delegado teve de intervir para que o
baile não terminasse em batalha campal.
Não faltavam ofertas de trabalho para Mojica, mas
sua falta de organização e irresponsabilidade punham tudo a perder. Ele foi
convidado para aparecer em diversos programas de rádio e na TV, mas vivia
bêbado e nunca cumpria os horários. Sua grande chance de recuperação surgiria
em julho de 1981, quando a TV Record o convidou para estrear um novo programa.
A emissora estava passando por uma fase difícil com
a inauguração da TVS, o novo canal de Sílvio Santos, que havia contratado
alguns dos maiores nomes da Record, como Jacinto Figueira Jr., que apresentava O
Homem do Sapato Branco, um show de entrevistas especializado em
“mundo-cão”. A Record pensou em criar um programa de auditório com Zé do
Caixão, no qual ele apresentaria cantores e faria concursos de calouros.
Chegaram a rodar um piloto, mas o resultado foi tão ruim, que o projeto foi
imediatamente engavetado. Foi então que a TVS anunciou que O Homem do Sapato
Branco entraria no ar aos sábados às onze da noite. A Record resolveu
colocar Zé do Caixão para disputar cabeça a cabeça com Figueira Jr., e sugeriu
a Mojica um programa popularesco sobre terror e esoterismo. Três semanas
depois, estrearia Um Show de Outro Mundo.
O novo programa misturava episódios fictícios
(roteirizados por Norbert Novotny, amigo de Mojica), com apresentações de todo
tipo de rituais esdrúxulos e macabros. Mojica exibiu um sujeito que dizia ser
lobisomem, um artista de rua – Dito Satã – que comia cobras vivas, e um mago
chamado Augustok, que atravessava a própria garganta com um espeto de
churrasco. Também apresentou um ritual de satanismo comandado pela “diabóloga”
Lina Capeta e um casamento de umbanda celebrado por Pai Jaú que, antes de ser
macumbeiro, ganhava a vida como zagueiro do Corinthians.
A novidade do programa era a presença de um “júri”
composto por supostos especialistas em fenômenos sobrenaturais, que analisavam
as bizarrices mostradas. Participaram do grupo de jurados o padre Quevedo,
líder de um instituto em estudos parapsicológicos; Jamil Rachid, presidente da
Federação dos Umbandistas de São Paulo, e Arlete Moreira, atriz de Perversão
e figurante dos Trapalhões.
Mesmo com o novo emprego e as novas
responsabilidades, Mojica não parava de beber. Às vezes chegava tão biritado ao
set, que precisava se amparar em cadeiras, para não cair. No dia da gravação do
primeiro programa, tiveram de tirá-lo à força da casa do amigo Francisco
Cavalcanti, onde estava há 48 horas jogando pôquer. O diretor artístico da
Record, Hélio Ansaldo, proibiu o pessoal de beber em dia de filmagem, mas não
adiantou: Mojica mandava um de seus assistentes encher uma garrafa de guaraná
com pinga e fingia estar tomando refrigerante.
Apesar de todos os problemas, os índices de
audiência foram surpreendentes: o primeiro programa deu quase trinta pontos,
equivalente a metade dos televisores ligados no horário e a um público de quase
2 milhões de pessoas, só em São Paulo. Mesmo com a estreia de O Homem do
Sapato Branco, em 22 de agosto – o que causou uma queda considerável na
audiência de Mojica – seus números permaneceram fortes: sua média durante o mês
de agosto foi de dezenove pontos (1,2 milhão de espectadores).
A crítica, no entanto, saiu matando: Gabriel Priolli
Netto, da Folha de S. Paulo, disse que preferia ver mais terror e menos
“mundo-cão”. Na Folha da Tarde, o jornalista Ferreira Netto – que havia
transferido seu programa de entrevistas da Record para a TVS – criticou sua
ex-emissora e zombou do português de Mojica: “Aviso ao mocinho: ‘pograma’ não
existe; ‘exprocação’ também não”. (Netto encerrou a coluna escrevendo
“prevaleceu” com “S”).
Com o sucesso na TV, alguns produtores voltaram a
procurar Mojica: Enzo Barone, que começara sua carreira em cinema trabalhando
como ator em O Estranho Mundo de Zé do Caixão, disse que havia comprado,
num leilão do interior, a carcaça de um velho avião, com poltronas e tudo o
mais, e queria usá-la num filme. Mojica pediu ajuda ao filho, Crounel, e em
poucos dias escreveram o roteiro de O Diabólico Voo de Zé do Caixão,
sobre um avião que é sequestrado por Zé e levado para outra dimensão, sobre um
avião que transformaram nas figuras históricas com as quais mais se
identificam. Assim, um passageiro transforma-se em Hitler, outro em Napoleão,
um terceiro em Jesus Cristo, e por aí vai. Barone chegou a convidar Anselmo
Duarte e o famoso grupo de discoteca As Frenéticas para atuar no filme, mas o
projeto acabou ficando muito caro e nunca foi levado adiante.
Mojica ficou tão entretido na produção da fita que
se descuidou totalmente do programa de TV: chegava sempre atrasado às filmagens,
não decorava suas falar e faltou diversas vezes. O show caiu de qualidade e a
audiência despencou: de dezenove pontos em agosto, passou para nove em setembro
e seis em outubro. A Record ainda tentou transferir o programa para domingo,
mas não houve jeito: no fim de outubro, apenas três meses depois da estreia, Um
Show do Outro Mundo foi cancelado.
Não havia passado uma semana desde sua demissão da
Record, quando Mojica foi com seu parceiro Mário Lima à Câmara dos Vereadores
de São Paulo visitar um amigo, que havia prometido conseguir dinheiro para um
filme. A Câmara vivia um período de intensa agitação, por causa das eleições
marcadas para dali a um ano. Nos corredores, políticos faziam alianças
estratégicas e tentavam atrair bons nomes para suas chapas. Mojica mal colocou
os pés no recinto e foi logo abordado por vários vereadores, que o convidavam a
se candidatar a um cargo público:
- Você é muito famoso, Zé, não quer ser candidato?
Podemos fazer um bom par, você como deputado e eu como vereador – disse um
sujeito do PMDB.
- É, mas tem que ser no PDS – respondeu outro,
puxando-o pelo braço.
Em cinco minutos, ele recebeu convites de todos os
partidos e tendências, do mais reacionário direitista do PDS ao mais xiita dos
petistas.
O tal amigo de Mário Lima trabalhava no Partido
Popular (PP), um grupo liderado por Tancredo Neves e egresso da ala moderada do
antigo MDB. Mojica foi apresentado ao presidente regional do PP, o banqueiro
Olavo Setúbal, dono do Itaú, que imediatamente o convidou para ingressar no
partido e candidatar-se a deputado estadual:
- Você é muito importante para nós. Se resolver sair
candidato pelo PP, garantimos todo o apoio!
O PP, assim como todos os outros partidos, estava
realmente desesperado atrás de candidatos. Pouco antes, um novo pacote
eleitoral proibia as coligações partidárias, o que intensificou a luta por
candidatos de peso. Na corrida para ganhar votos valia qualquer coisa: o
próprio PP havia convidado Solange Joubert, a autoproclamada “rainha das
massagistas” – e imortal da Academia de Letras do Vale do Paraíba, por sua obra
Estes Homens Passaram por Minha Mesa de Massagem – para concorrer a uma
vaga na Assembleia Legislativa. Agora era a vez de Zé do Caixão.
Mojica nunca havia sonhado em entrar para a política
e não entendia nada do assunto. Quando lhe perguntavam sua posição ideológica,
dizia situar-se “em algum lugar entre a esquerda e a direita, mais para o
meio”. Era impossível negar, no entanto, que aquela bajulação toda não lhe
havia subido à cabeça: por que não poderia ser um deputado? Se todos aqueles
políticos já davam como certa sua vitória, por que não arriscar? Afinal, um
deputado ganhava bem, tinha privilégios, e tudo que ele precisava naquela hora
era um empreguinho bom. Resolveu aceitar.
Se houve uma classe de profissionais que se
favoreceu de imediato com a candidatura de Zé do Caixão, foi a dos jornalistas.
Nunca foi fácil criar manchetes bacanas. Algumas das melhores: “O candidato das
forças ocultas”; “Zé do Caixão garante que não será um político-fantasma”;
“horror na Assembleia”; “Mojica, uma luz nas trevas da política”; “O candidato
que é um horror” e “Da urna funerária à urna eleitoral”.
Em entrevistas, Mojica afirmava que, caso eleito,
concentraria seus esforços na defesa de três classes que considerava as mais
desprivilegiadas do país: os coveiros, os lixeiros e os cineastas. “São pessoas
que ninguém gosta, mas todo mundo precisa”. Quando um repórter lhe perguntou
por que havia escolhido o PP, um “partido de banqueiros”, ele retrucou: “É
melhor que sejam banqueiros, assim já são ricos e não precisam mais roubar.
Pior seria se eu tivesse me juntado a uns mortos de fome!”. Depois, disse que a
política nacional se assemelhava a um filme de ficção-científica e terror:
“Veja só, os candidatos prometem mundos e fundos e, depois de eleitos,
desaparecem, como se fossem tragados por um disco voador para outra dimensão.
Só aparecem de novo na época de outra eleição. Parecem umas múmias, que só
acordam de tempos em tempos”.
Sua plataforma incluía a proibição de seriados de TV
americanos (“Precisamos prestigiar os programas brasileiros!”) e cursos
obrigatórios de tiro para vigias noturnos (“Esses coitados arriscam a vida para
proteger a família brasileira e nem aprender a atirar; é um absurdo!”). Mas ele
também tinha boas ideias para incentivar o cinema nacional, como a criação de
escolas para formar técnicos de laboratórios onde cineastas independentes
pudessem revelar seus filmes por preços mais baixos.
Poucos dias antes de Mojica formalizar sua
candidatura, o PP fundiu-se ao PMDB. No novo partido, o mais poderoso do país,
não haveria lugar para Zé do Caixão. Foi então que o radialista Fernando
Silveira, candidato a deputado estadual pelo PTB, convidou-o para se filiar a
seu partido, prometendo arcar com todos os custos da campanha caso Mojica
topasse aparecer ao seu lado em cartazes e santinhos. Só havia um problema:
como Silveira já estava concorrendo a deputado estadual, Mojica, se quisesse
entrar numa dobradinha, teria que se candidatar a deputado federal – uma parada
muito mais dura. Mesmo assim, ele topou. Na mesma hora, Silveira o levou para o
diretório central do PTB, na avenida Angélica, onde o apresentou a Ivete
Vargas, filha de Getúlio, que preencheu pessoalmente sua ficha de inscrição.
Mojica saiu empolgado: “Pô, a filha do Getúlio Vargas preencheu minha ficha!
Esse partido é bom mesmo!”.
O candidato do PTB ao governo de São Paulo era outro
velho conhecido de “forças ocultas”: Jânio Quadros. Mojica foi apresentado ao
ex-presidente, que logo o convidou para um bate-papo em seu apartamento. No dia
combinado, Mojica foi à casa de Jânio. Não passava das dez da manhã quando
tocou a campainha. Jânio atendeu a porta de pijamas e chinelos. Bem-humorado,
levou-o para a mesa da sala, onde sua esposa, dona Eloá, serviu suco de laranja
e biscoitos.
- José, quero que você saiba que sua presença é
muito importante para nós – disse o ex-presidente. – Você é uma pessoa de nome,
pode atrair muitos votos!
Mojica só balançava a cabeça,
concordando. De vez em quando soltava uns “é claro”, “sim, sim”, mas na maior
parte do tempo ouviu calado. Jânio pediu que não esquecesse de incluir seu nome
para governador em todos os santinhos, e disse que Mojica teria de trabalhar
muito para se eleger:
- Tem que fazer campanha o tempo todo, sem descanso.
É preciso fazer como eu, que acordo todo dia às seis da manhã e durmo à
meia-noite! (Mojica continuaria dormindo às seis da manhã e acordando
meio-dia). Jânio deu dicas de como falar em comícios, e reiterou a importância
da campanha corpo-a-corpo. Aí, Mojica falou pela primeira vez:
- Jânio, estou com um problema muito sério...Eu não
tenho dinheiro para a campanha...
- Eu também não tenho pra te dar, mas vou te passar
o telefone de dois amigos que podem te ajudar...
Os amigos de Jânio eram o dono de uma fábrica de
embalagens em Santo Amaro e o proprietário de uma casa lotérica. Também não
tinham grana, mas prometeram emprestar uma kombi para a campanha. Já a
dobradinha com Fernando Silveira não deu certo: os dois brigaram e Mojica
acabou se juntando aos candidatos Fábio Porchat (deputado estadual) e Fábio
Fleming (vereador), que também se dispuseram a imprimir cartazes e santinhos,
com a condição de que ele os apoiasse. Alguns dias depois, Mojica recebeu do
Tribunal Regional Eleitoral (TER) a oficialização de sua candidatura: Zé do
Caixão, candidato a deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro, com o
número 430. Até soava bem.
Mojica logo percebeu que campanha política não era
brincadeira: ele começou a ser chamado para reuniões do partido e encontros com
políticos. Gostava especialmente das reuniões de cúpula do PTB, no centro,
porque serviam uísque importado com amendoim. Mas nunca bebeu além da conta,
pelo menos na presença dos graúdos. Sempre que avistava Jânio, Ivete Vargas ou algum
outro figurão, maneirava na birita. Vexame mesmo só deu numa convenção do
partido em São José dos Campos, quando subiu ao palanque com duas garrafas de
Tatuzinho na cuca e fez um discurso que ficou para a história da política
joseense:
- A quem pertence a terra? A Deus? Ao Diabo? Ou aos
espíritos desencarnados? Meus eleitores, a besta está chegando para tomar a
terra e o leite das crianças! Vamos dar leite pras crianças! Temos que dar
leite pras crianças!
Num comício no Anhangabaú, Mojica foi rodeado por um
grupo de motoristas de ônibus, que queriam saber mais sobre sua plataforma. Ele
disse que pretendia liberar o jogo do bicho e legalizar a prostituição,
inclusive dando 13º salário e benefícios às profissionais do ramo. Depois de se
recuperar do baque, um dos motoristas perguntou o que ele pretendia fazer pela
economia. Mojica, longe de ser um Galbraith, respondeu:
- Vou aumentar os juros da poupança! Vamos ficar
ricos!
Os motoristas disseram que, se ele aumentasse os
juros da poupança, as lojas também aumentariam seus preços, e ficaria tudo na
mesma.
- Não, não, você vai ver! Vamos aumentar a poupança
sempre mais que a inflação! Confiem em mim!
A campanha de Mojica era realmente revolucionária:
ele substituiu o tradicional “corpo-a-corpo” pelo “copo-a-copo”: todo dia,
visitava um bairro diferente e fazia a ronda dos botecos, enchendo a cara com
os eleitores e divulgando sua plataforma, entre um gole e outro de Velho
Barreiro. Enquanto isso, a candidatura de Jânio não decolava: os institutos de
pesquisa anunciavam uma liderança folgada de Franco Montoro, do PMDB, seguido
de longe por Reinaldo de Barros, do PDS. Jânio só aparecia em terceiro,
empatado com Lula, do PT.
Para dar impulso à campanha, o PTB marcou um grande
comício para o dia 9 de outubro em Sapopempa, na zona leste. As maiores
atrações, além da presença de Jânio e Ivete Vargas, seriam um show de Moacir
Franco – também candidato – e um concurso de sósias de Getúlio Vargas, Sílvio
Santos e Pedro de Lara. O evento foi visto como a última grande cartada de
Jânio. Ele declarou aos jornais que, se não conseguisse levar pelo menos 20 mil
pessoas a Sapopemba, renunciaria à candidatura. Todos os candidatos do PTB
foram convocados a discursar, inclusive Zé do Caixão.
Jânio cumpriu sua promessa: bem mais de 20 mil
pessoas compareceram ao comício. Naquela manhã, Mojica vestiu um terno,
encontrou-se com o amigo Samuel Moura e partiram juntos para Sapopemba. Antes,
porém, deram uma paradinha na casa de Elza Leonetti, onde Mojica matou meio
litro de Cinzano. Acabaram chegando atrasados ao comício. Largaram o carro numa
esquina qualquer e só então perceberam que haviam estacionado ao lado errado,
próximo à multidão e longe do palanque. Tiveram que atravessar a massa a pé,
cortando pelo meio do povão. Mojica era reconhecido e abraçado. Foi um sufoco.
Levaram quase uma hora para alcançar o palanque e, quando chegaram, os
discursos já haviam terminado. Mojica não pôde discursas e ainda sofreu a
humilhação de ouvir o apresentador chamá-lo de “José Maria Marin”.
Com todas essas galhofadas, não foi surpresa alguma
quando saiu o resultado da eleição: Zé do Caixão obteve 1.228 votos, ficando em
61º lugar entre os 71 candidatos do PTV. Na classificação geral, ficou em 256º
lugar entre os 278 candidatos. Jânio acabou mesmo em terceiro, atrás de Franco
Montoro e Reinaldo de Barros. Os parceiros de Mojica também entraram pelo cano:
nenhum dos Fábios, nem Porchat nem Fleming, conseguiu se eleger. Mojica depois
acusou o TRE de ter anulado os votos dados a Zé do Caixão e computado apenas as
cédulas com seu nome verdadeiro, mas a reclamação não procedia: em sua ficha de
inscrição, ele havia registrado tanto o nome José Mojica Marins quanto Zé do
Caixão.
Publicado
originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o
cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.
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