quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Playboy entrevista José Padilha (março de 2008)

 Playboy entrevista José Padilha

 


Uma conversa franca com o diretor de Tropa de Elite, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, sobre críticos desinformados, colunistas deselegantes, estudantes estereotipados, legalização da maconha e o seu outro troféu, o DVD pirata recolhido na casa do ministro Gilberto Gil

 

As olheiras profundas e o ar abatido do diretor José Padilha, de Tropa de Elite, não deixavam dúvidas de que aquela havia sido uma semana atribulada. Naquela tórrida tarde de quarta-feira em que concedia entrevista para PLAYBOY, ele parecia ter chegado ao limite de seu esgotamento físico. Calça jeans, camiseta surrada e o sem boné com que costuma esconder sua calvície, Padilha não lembrava em nada o altivo cineasta que, apenas quatro dias antes, de gorro e cachecol, subira ao palco do Festival de Berlim para receber o prêmio máximo da competição, o Urso de Ouro, das mãos do cineasta russo Costa-Gravas, presidente do júri. José Padilha parecia exausto. Mas com indisfarçável sensação de dever cumprido.

 

Aos 40 anos, Padilha transformou-se no diretor responsável pelo maior fenômeno cultural da retomada do cinema brasileiro: Tropa de Elite foi visto por 11,5 milhões de brasileiros antes mesmo de chegar às telonas, após uma cópia não-finalizada do filme ter sido furtada da empresa da legendagem e distribuída em todo o território nacional – e no exterior. Antes mesmo da estreia oficial, o filme já era acusado de glamourizar a tortura praticada por policiais do BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro), defender a tese de que traficante bom é traficante morto e, sobretudo, culpar os usuários de droga pela violência nas favelas. Por isso, Padilha acostumou-se a ouvir acusações de extrema direita e defensor do fascismo. 

 

O carioca pacato, casado com uma arquiteta e pai de um garotinho de quatro anos, viu-se então no meio de um turbilhão. Além das acusações de boa parte da crítica especializada, Padilha enfrentou processos de policiais do Bope que se sentiram ofendidos pela forma como foram retratados no filme. Tudo isso acontecia ao mesmo tempo em que Tropa de Elite estourava nas salas de projeção – a despeito das previsões catastróficas de que, por causa da pirataria, ninguém pagaria ingresso para vê-lo – e se transformava na sétima maior bilheteria do cinema no país. Transformou-se num fenômeno de massa – as expressões “Aspira” e “Pede pra sair” viraram bordões nacionais. Contrariando a pressão popular que queria ver José Padilha no tapete vermelho do Kodak Theatre, o Ministério da Cultura escolheu O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, parecia representar o país no Oscar. Parecia uma sina: sucesso acachapante de público, Tropa enfrentava a antipatia de parte da “inteligência” brasileira.

 

Curioso que, em seu primeiro filme, o documentário O Ônibus 174 (2002) – sobre a história do sequestro comandado por Sandro do Nascimento que resultou na morte da refém Geísa Gonçalves, no Rio de Janeiro -, Padilha tenha sido acusado de ser um ideólogo de esquerda por apresentar ao público o ponto de vista do bandido. Formado em administração de empresas, depois de cursar física e engenharia, José Padilha diz ter uma forma científica de fazer cinema. “É uma opção minha. Lido assim com o cinema, porque me é natural”. Esse estilo implica em que não colocar uma bula dentro do filme. “Eu não mostro uma cena de tortura e digo que tortura é ruim. O cara interpreta como quer”, disse José Padilha à repórter Adriana Negreiros, que o entrevistou em duas ocasiões. Na primeira vez, em São Paulo, oito meses atrás, Padilha andava pelas ruas da Vila Madalena, bairro boêmio da cidade, sem ser importunado pelos fãs em busca de autógrafos. Na segunda, no piso superior de sua produtora, no bairro carioca do Jardim Botânico, ele era o cineasta brasileiro assediado por dezenas de produtoras internacionais e que fazia planos de filmar em Hollywood. “É a Disneylândia do cineasta. Eu quero experimentar para ver como é”.

 

Você ainda está de ressaca pela comemoração pelo Urso de Ouro, a premiação máxima do Festival de Cinema de Berlim?

Não, cara, eu tô num fuso horário maluco. Fiquei 11 dias em Berlim e estou quatro horas para trás. Estou meio cansado.

 

Assim que saiu da premiação, você foi para um bar dar entrevista. Sua vontade não era de ficar por ali, beber todas as cervejas alemãs e sair carregado?

Não, eu não bebo. Bem, eu bebi todas as cervejas em Berlim, sim, mas não queria sair carregado daquele bar. E também existe um rito depois da premiação, você não tem liberdade para fazer o que quer. Vou te contar como foi, você vai gostar.

 

Vamos lá.

Os caras do festival ligaram pra gente um dia e meio antes da premiação e falaram: “Vocês ganharam um prêmio. Se puderem ficar para a cerimônia, vai ser bom para vocês”. Eles fazem isso com todos os cineastas premiados, mas não falam qual prêmio você ganhou. E aí você senta lá e eles começam a dar o prêmio por ordem de importância. O Urso de Ouro é o último. Então você fica torcendo para não ganhar os prêmios que vão sendo anunciados. Quando chega os dois últimos, você sabe que ganhou ou o prêmio especial do júri, que é o Urso de Prata, ou o Urso de Ouro.

 

Então vocês começaram a comemorar logo que foi anunciado o vencedor do Urso de Prata, não?

Aí é que é o mais legal. O cara tá ali, recebendo o prêmio, e fica deselegante você comemorar o seu. Então você fica parado. E eu estava com a maior galera - minha mulher, minha prima (a atriz Maria Ribeiro), o Marcos Prado (produtor do filme). E pra torturar mais um pouquinho, entra numa banda de jazz e toca por três minutos. E você ali, sentado, pensando: “Meu Deus do céu, me dá esse prêmio logo!”.

 

Nesses três minutos, você chegou a pensar se seria aquilo mesmo?

Eu sabia que tinha ganhado. Ou então os caras tinham me sacaneado muito me fazendo ficar ali pra nada (risos). Bom, então depois que recebi o prêmio, me levaram para falar com três emissoras de TV alemãs. Depois fui para uma conferência de imprensa numa rádio alemã que fica dentro de um bar. Por fim, teve o jantar oficial do festival. Aí acaba a noite. E você tem que ficar segurando o Urso. Não pode soltar. E é pesado, cara. Tô achando que é de outro mesmo. 

 

Por que você usou aquele gorro durante a cerimônia?

Porque estava frio (risos)! Eu ficava entrando e saindo, então fiquei de gorro. E já tinha virado uma coisa minha. Eu botei no primeiro dia e começaram a zoar. Disseram que eu parecia um intelectual paquistanês com o gorro e os óculos. Então falei: “Pois vou ser um intelectual paquistanês até o final”. No começo eu estava usando um gorro laranja. Aí o organizador do festival falou pra mim: “Bota o gorro da Berlinale, a echarpe, e fica com eles”. É, ele já sabia que eu tinha ganhado... É a primeira vez que estou pensando sobre isso (risos)...

 

Ao comentar a premiação de Tropa de Elite, o presidente Lula disse que o filme ressaltava as eficiências do país. A que eficiências você acha que ele se referia?

O Tropa de Elite prova que o Brasil tem um cinema muito bom e uma polícia muito ruim. Eu acho que é isso (risos). A eficiência só pode ser a do cinema. É muito comum mostrar os problemas dos países no cinema. Os cineastas fazem isso no mundo inteiro. Existe uma enorme quantidade de filmes que criticam os Estados Unidos pela guerra do Vietnã, pela guerra do Iraque, pelos erros cometidos na condução da guerra do Afeganistão. O cinema é uma arte que se presta à crítica social e não há nada de anormal nisso.

 

Existe uma observação recorrente de que os filmes brasileiros abusam da temática da violência. Essa explicação que você acabou de dar justifica tal fato?

Não, eu não justifico isso. Primeiro porque a violência se presta ao drama. E cinema é drama. Então ela é comum no mundo inteiro. O Brasil não é um país que faz filmes sobre violência por excelência. Basta olhar para os Estados Unidos. Não fazemos filmes prioritariamente sobre violência. O que acontece é que os distribuidores dos festivais preferem esses filmes. Então eles os selecionam e depois perguntam: “Por que será que o Brasil só faz filmes sobre violência?”.

 

Você conseguiu alguma explicação razoável para o fato de seu filme ter sido exibido com legendas em alemão na sessão para a imprensa?

Eles tinham três cópias do filme: duas com legenda em alemão, para as exibições para o público, e uma em inglês, para a exibição para a imprensa internacional. O que aconteceu foi que eles trocaram as cópias. Na sessão para a imprensa internacional passou a cópia com a legenda em alemão e ninguém entendeu nada.

 

Foi uma troca acidental?

Sim. Mas eu acho que assim que perceberam o erro eles deveriam ter interrompido a exibição e marcado outra. Foi aí que eles encontraram uma solução que a meu ver prejudicou o filme. Botaram uma moça que não tinham visto o filme traduzindo a legenda em alemão para o inglês, com uma voz única para todos os personagens. Qualquer cineasta vai te dizer que isso mata o filme.

 

Não precisa ser cineasta para concluir isso.

Porque não tem entonação de ator e, além disso, o filme tem muita narração em off. A moça embolava a frase do cara com a narração em off. Quando fui falar com a imprensa internacional, alguns jornalistas brasileiros me falaram: “Olha, a tradução estava horrível, os fones não funcionavam, ninguém entendeu nada, a moça traduziu tudo errado. Se ferrou, Padilha”. Deu para perceber que alguns dos estrangeiros não tinham entendido nada pelas perguntas que me faziam.

 

O que você fez?

Eu falei com o distribuidor do filme e eles organizaram outra exibição à noite. E a gente começou a perceber quem era sério e quem não era. Porque profissionais sérios não escreviam a crítica de um filme visto naquelas circunstâncias. Até compreendo que os jornalistas que falam espanhol, português e alemão tenham feito suas críticas, porque eles conseguiram compreender o filme. Agora, os caras que só falam inglês não poderiam ter escrito. Foi um equívoco.

 

Por isso as críticas negativas ao seu filme no dia seguinte?

As próprias críticas mostram bem o que eu acho que aconteceu. O cara viu o filme, não entendeu, entrou na internet, saiu pesquisando o que foi dito sobre o Tropa de Elite em outros lugares e reproduziu no texto dele. Fez um samba do crioulo doiro.

 

Isso inclui a revista Variety, que falou mal do seu filme?

Não foi só ela, a Hollywood Reporter também falou mal. Eles falaram muita besteira. A Variety disse que o Brasil tinha 10 milhões de habitantes e 11,5 milhões de brasileiros tinham visto o filme. O cara não sabia fazer nem conta (risos). Nem me incomodei, porque a crítica era tão burra que ela se desqualificava sozinha. O cara falava que por algum motivo os policiais brasileiros tinham que trabalhar em oficinas. Ele não entendeu que a oficina era dentro do batalhão, que fazia parte do trabalho do policial. E a Variety já tinha visto o filme no ano passado, com a legenda certa, em inglês.

 

Foi nessa ocasião que você foi citado como um dos dez diretores em quem se deve prestar atenção no cinema mundial?

Sim, eu fui citado como um dos dez diretores promissores. É uma coisa esquisita.

 

Já o jornal inglês The Guardian sugeriu que os brasileiros deveriam se envergonhar do prêmio.

Teve uma crítica que falou bem e outra que falou mal. O prêmio tá aqui guardado e eu não tenho vergonha nenhuma dele. Eu não sei bem o que o Guardian falou.

 

Ele publicou que “o filme tem enredo lamentável, diálogos fracos, é repleto de clichês e glamouriza a tortura e a morte dos bandidos”.

O que eu posso dizer? O cara tem direito de fazer a crítica que ele quiser. Não é assim que o Costa-Gravas (presidente do júri do Festival de Berlim) vê o filme. Entre o crítico do Guardian e o Costa-Gravas, eu fico com o Costa-Gravas.

 

A revista inglesa Screen, por outro lado, falou muito bem de Tropa de Elite.

 

O filme tem essa propriedade de gerar reações extremadas. Isso aconteceu porque a gente optou por narrar do ponto de vista do policial violento do Bope. É uma decisão ousada e que parte da premissa de que o público vai entender que, evidentemente, a gente não está subscrevendo esse ponto de vista. Quinze milhões de brasileiros entenderam o filme assim. Os intelectuais brasileiros entenderam o filme assim, em sua enorme maioria – gente como o Arnaldo Jabor (colunista de O Globo), o Contardo Calligaris (colunista da Folha de S. Paulo), o Zuenir Ventura (jornalista e escritor). O júri do Festival de Berlim entendeu o filme. O que mais eu posso querer? Nada.

 

Quais são as outras razões para as opiniões tão extremadas?

Existe certo tipo de crítica que nasce do fato de o cara estar incluído no filme. O filme diz assim: você, usuário, quando consome drogas no Brasil, opta por comprá-las de um grupo armado que domina uma comunidade carente no morro. Você está, portanto, optando por sustentar esse grupo armado. É um fato. Um fato que nada tem a ver com a ideia de que se as pessoas pararem de consumir drogas a violência vai acabar. Em momento algum eu emiti essa opinião. A gente só disse que o cara que opta por comprar drogas de um grupo armado está optando por sustentar esse grupo armado, assim como o cara que compra madeira ilegal na Amazônia está ajudando a destruir a floresta. É um fato econômico.

 

O usuário de drogas enfrenta um problema moral, portanto?

Sim. Ele está envolvido eticamente com a morte de pessoas, com tiroteios nas favelas, porque ele sustenta o grupo armado dos traficantes. Não dá pra fugir disso, assim como o cara que compra produto feito com trabalho infantil está envolvido com o trabalho infantil. Por que o raciocínio funciona para tudo, menos para drogas? Ninguém discorda desse raciocínio quando ele diz respeito às árvores da Amazônia. Tanto assim que empresas colocam selos de que o móvel foi feito com uma árvore plantada, de que o produto não contribuiu para o trabalho infantil... As grandes organizações, como a Unicef e a Abrinq, carimbam os selos. Eu nunca vi nenhum argumento razoável para que esse raciocínio não se aplique ao tráfico de drogas. Só vi gente esperneando.

 

E o que isso tem a ver com as críticas?

Porque dessa maneira você obriga um cara que é um usuário recreativo de drogas, e que escreve no jornal sobre cinema, a falar assim: “Pô, eu tenho alguma coisa a ver com isso”. Tem gente que lida inteligentemente com isso, tem gente que não. O cara pensa: “É melhor eu me livrar desse filme logo”. Em vez de ficar discutindo Tropa de Elite, vou chamá-lo de radical de direita e pronto. Eu percebi que aconteci isso com uma parcela das pessoas que criticaram o filme. E vários atores, atrizes – não vou citar nomes – me mandaram e-mails dizendo: “Neguinho não vai te perdoar”. E de fato isso aconteceu.

 

Você previa que seu filme iria provocar tamanho incômodo?

Se você fizer um filme que não incomoda ninguém, qual é a graça? Incômodo eu sabia que ia ter, o que eu não previa era que uma parte das pessoas que ficaram incomodadas fosse atribuir a mim, ao Luiz Eduardo Soares (antropólogo, um dos autores do livro Elite da Tropa) e a outras pessoas o raciocínio simplório – que não está no nosso filme – de que basta acabar o consumo de drogas para acabar a violência. A gente não fala isso em lugar nenhum, mas as pessoas argumentam como se a gente tivesse dito.

 

Foi, inclusive, o que o crítico Arnaldo Bloch escreveu no jornal O Globo: “A preocupação obsessiva de Padilha é com o baseado que a galera queima, reforçando a tese surrada de que os maiores culpados pela violência do tráfico são os usuários”.

Pois é, mas o filme não tem essa tese em lugar nenhum. Qual é a perspectiva do filme? A gente cria uma metáfora dos processos sociais que acontecem no Rio de Janeiro com a teoria dos jogos. Isso está enunciado com clareza para quem conhece essa teoria. Para você entender o comportamento das pessoas no Rio, você tem que entender as regras a partir das quais essas pessoas agem.

 

Como assim?

Para entender um jogo de pôquer, você tem que saber quais são as regras do pôquer e assim compreender o comportamento dos jogadores. É um modelo de análise de processos sociais clássico, famoso e conhecido. O que explica a enorme violência que existe no Rio de Janeiro? São regras que a sociedade adota. Você é um policial que recebe 700 reais por mês e é mal treinado. E a sociedade pede para você o seguinte: “Vai lá naquela favela cheia de gente armada e luta com eles”. Qual é a jogada racional que um cara desses vai fazer?

 

Qual é?

Ele não tá a fim de morrer. Então é induzido a se corromper. A gente disse: “Olha, para você ter um grupo de policiais que não se corrompe monetariamente dentro de uma instituição tão corrompida quanto a polícia, você tem que incutir neles uma ideologia tão estúpida quanto a ideologia do Bope”. O Arnaldo Bloch ignorou todas as regras e pegou só a que o incomoda. É quase uma autocrítica. Por que o incomoda eu não sei. Selecionou o problema da droga sem entrar em todas as outras coisas do filme. Quando o cara fala alguma coisa, ele denuncia sua posição, quer queira, quer não. Tanto o cineasta que faz o filme como o sujeito que comenta.

 

Um dos aspectos mais criticados do seu filme é a caracterização dos universitários, que muitos consideram estereotipada.

Qualquer filme estereotipa qualquer pessoa. Ou será que os mafiosos são iguais ao Michael Corleone de O Poderoso Chefão? Qualquer filme, inclusive documentários, estereotipa seus personagens, porque quando você liga a câmera o cara já não se comporta como antes. A ideia de cobrar da dramaturgia uma verossimilhança com a realidade é ingênua.

 

Você acha que houve exagero no caso dos estudantes, então?

Olha, os estudantes foram interpretados por universitários. O professor universitário do filme era, de fato, um professor universitário – ele dava aulas na PUC. Eu representei as cenas, mostrei para todos e ouvi que era exatamente daquele jeito. Eu estudei na PUC e os estudantes, na média, eram daquele jeito. O André Batista, que foi do Bope e inspirou o personagem do Matias, também estudou na PUC e disse que era muito parecido com o que está no filme. Agora, todos os estudantes são iguais? Não. Aquele grupo de alunos que a gente mostrou não representa a média dos estudantes do Brasil, não era esse o nosso objetivo. Isso é uma besteira. Aquilo representa uma visão que os policiais têm dos estudantes. Os policiais têm uma visão estigmatizada dos estudantes? Têm. E é isso que está no filme. Por sua vez, os estudantes têm uma visão estigmatizada dos policiais? Têm também, e isso está no filme. Os policiais têm uma visão estigmatizada das ONGs? Têm. As ONGs têm uma visão distorcida dos traficantes? Têm. O filme é sobre essas visões distorcidas e, portanto, elas têm que estar assim.

 

O incômodo não deriva do fato de muitos justamente se identificarem com os estudantes?

Não sei... Acho que o maior incômodo é não tratar o problema da violência urbana como uma guerra particular. Essa não é uma guerra entre policiais e traficantes. Não é verdade que os policiais e os traficantes estão em guerra e a gente está aqui no meio do caminho e de vez em quando alguém toma um tiro de bala perdida.

 

Esse é o pensamento corrente.

Mas não está certo. A gente não pode isolar a classe média e dizer que isso acontece à sua revelia. Nosso filme tem o mérito de botar a classe média no meio desse quadro. E tem uma provocação: retratar a classe média pelo modo como a polícia olha para ela.

 

Você é a favor da legalização das drogas?

Sou favorável sobretudo à liberação da maconha, que é responsável por uma parcela significativa da receita do tráfico. Acho que a cocaína deveria ser tratada de outra forma. Legalizada, mas não do mesmo jeito que a maconha. Se o consumo de drogas diminuísse por algum motivo, isso reduziria a violência?

 

Reduziria?

Essa é uma questão complexa. Eu acho que sim. Primeiro porque existem estudos antropológicos que mostram que a violência é maior onde há traficantes. Existe o argumento de que a violência não vai cair porque os traficantes vão mudar de profissão. Eles iam começar a assaltar na rua. Pera aí, mas é muito mais difícil e arriscado assaltar na rua que vender drogas numa favela. A ideia de que a violência associada ao tráfico de drogas vai automaticamente se transferir para outro tipo de violência é equivocada. Tem outra coisa implícita aí: a violência do tráfico de drogas mata pessoas pobres e miseráveis na favela. Se a violência mudar para sequestro e roubo, vai morrer gente rica e isso incomoda realmente. Tem essa hipocrisia no meio no argumento dessas pessoas. Violência na rua incomoda mais que violência na favela.

 

Você já usou drogas?

Já. A única droga que usei na minha vida foi maconha, quando era jovem, várias vezes... Todo mundo usa maconha (enfático)! Olha só: eu pesquisei muito para representar o policial do meu filme, pesquisei todo mundo, menos os estudantes. Não precisei, porque já fui um. Agora tem muito tempo que eu não uso porque me dei conta, sim, de que é um equívoco usar drogas. É um equívoco comprar drogas de traficantes armados do morro, sobretudo para as pessoas que não fazem campanha pela legalização das drogas. Eu não vejo o usuário de droga andando na rua pedindo para legalizar a droga porque ele quer ter o direito de escolher. O que eu vejo é uma posição cômoda do cara. Compra e pronto, que se ferre.

 

Você era um estudante como o retratado no seu filme?

Não, não era. Eu era diferente em algumas coisas e parecido em outras. Mas eu já fumei maconha várias vezes, no Brasil e fora. Por exemplo, eu não tenho problema nenhum com maconha. Se você plantar maconha em casa e fumar, cara, qual o problema? Você plantar maconha em casa e fumar é qualitativamente diferente de você comprar maconha de um traficante armado que domina uma favela. Não é a mesma coisa. São transações econômicas que têm uma natureza diferente. Teu dinheiro tá indo para outro lugar. Você poderia entender o filme assim. Qual é a mensagem do filme no que diz respeito às drogas? Plante sua maconha (risos). Claro que eu não tô dizendo isso, não tô estimulando o tráfico e nem nada. Quero deixar isso claro para não ser mal interpretado e depois processado. O problema não é a droga em si. O problema é a regra do jogo.

 

Se você fosse para um país em que a droga é legalizada, você consumiria?

Se eu estiver a fim, sim. Eu não tenho clareza, não conheço e não sei, por exemplo, de onde vem o haxixe vendido em Amsterdã. Não sei o que eu estou financiando, não tenho essa consciência. Mas eu sei que não vem de um grupo armado de uma favela da Holanda, certo?

 

Quando você se deu conta de usar drogas era financiar um grupo armado da favela?

Cara, não demorou muito. Parei de fumar maconha cedo. Fumei dos 16 aos 20 anos. Fiz documentário. Filmei favela e você começa a pensar sobre isso.

 

Você fez faculdade de física. Como foi parar no cinema?

Primeiro eu estudei engenharia. Na verdade, queria estudar física, mas não sabia que não iria ganhar 1 real como físico. Então fiz engenharia. Naquela época, como ainda hoje, havia uma atração das pessoas pelo mercado financeiro, que é onde você consegue ganhar mais dinheiro. O mercado financeiro contrata engenheiros, economistas e muitos poucos físicos. Depois decidi: “Que se ferre, vou mesmo pra física”. Mas isso durou pouco tempo, porque fui contratado pelo mercado financeiro (risos). Comecei a trabalhar durante o dia, não tinha física à noite e fui estudar administração. Mas não gostei do mercado financeiro, achei chato.

 

Deu pra ganhar dinheiro?

Nada. Fiquei um ano. Daí já comecei a querer fazer cinema.

 

Mas como tudo começou?

Antes de virar diretor de cinema, o Marcos Prado, que hoje é meu sócio, era um fotógrafo reconhecido. Ele tinha feito um ensaio fotográfico muito bacana sobre os carvoeiros e tinha tido a ideia de expor na Eco 92, numa mostra paralela.

 

Vocês eram amigos?

Sim. Amigos de encontrar na praia e pegar onda. Organizamos a mostra e no meio da história tivemos a ideia de produzir um vídeo. Chamamos o Johnny Jardim, que é um ótimo cineasta, para fazer a direção. E a gente fez o vídeo, tinha uma música do Caetano Veloso no final. Tenho orgulho desse trabalho até hoje, embora não tenha feito grandes coisas nele – fui apenas o produtor. Mas gostei. E percebi que havia uma maneira interessante de falar sobre processos sociais por meio do audiovisual. Falei: “Marcos, vamos experimentar fazer um filme sobre os carvoeiros? Tem um incentivo fiscal aí, a gente consegue levantar dinheiro, já tô de saco cheio de trabalhar pros outros... Então é uma maneira de trabalhar pra mim mesmo”.

 

E deu certo?

A gente decidiu fazer, mas não sabia filmar. Resolvemos trazer um cara de fora para aprender a filmar com ele. Fomos procurar quem seria a pessoa. Descobrimos que o Nigel Noble, que ganhou Oscar (em 1981, com o documentário Close Harmony). Aí o contratamos. Trouxemos o cara pra cá e ele dirigiu Os Carvoeiros (1999). Para nosso espanto, mandamos o filme para o festival de Sundance e gostou daquele negócio – uisquinho, cinema. Era legal. Então decidimos: vamos fazer cinema.


Você ficou muito frustrado por seu filme não ter sido indicado ao Oscar desse ano?

Não. Primeiro porque eu acho que O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, sem demagogia nenhuma, é um ótimo filme. A temática dele ajudava a indicação ao Oscar, além da qualidade do cinema. E esse foi o critério. A única coisa que me chateou, para falar a verdade, foi a seguinte: a gente não fez pressão nenhuma sobre a comissão do Oscar. Não liguei pra ninguém, não falei com ninguém. Houve uma pressão do público, porque os sites começaram a fazer enquetes e 70% da população queria o Tropa de Elite. Algumas pessoas que estavam no julgamento, quando saíram, foram perguntadas pelos repórteres por que não haviam indicado o Tropa de Elite, conforme o público queria. E essas pessoas deram repostas mal-educadas.

 

Como a do Hector Babenco, que disse que seu filme não para em pé?

Eu não vou citar ninguém. Achei deselegante, só isso, uma pena. Mas tudo bem.

 

Mas você ainda tem chances de concorrer a uma indicação ao Oscar.

O Cidade de Deus não foi indicado como filme estrangeiro. Foi indicado pela academia para quatro categorias como filme norte-americano. Saber qual é a probabilidade de isso acontecer de novo? Zero. É muito difícil.

 

Você tem uma estratégia para isso?

A estratégia não é minha, é da distribuidora, a Weinstein Company. Eles vão inscrever o filme, mas daí a ele ser indicado vai uma distância muito grande. O Oscar virou um totenzinho para o cinema brasileiro. Tem uma competiçãozinha, tem os caras que estão querendo ganhar o Oscar, blábláblá...

 

Você está pouco se lixando para o Oscar?

Se você ganha o Oscar, gera uma série de efeitos. Um deles é que fica facílimo você financiar o seu próximo filme. Sua produtora cresce. Então ganhar o Oscar é inegavelmente ótimo. É claro que eu não estou pouco me lixando. Mas a probabilidade de isso acontecer é zero ou perto disso.

 

Você esteve na casa do ministro Gilberto Gil para assistir uma exibição de uma cópia pirata do Tropa de Elite?

Eu tinha acabado de chegar de uma viagem aos Estados Unidos. Estava sem dormir direito por causa da pirataria e porque estavam trabalhando muito no filme. No minuto em que cheguei em casa, um amigo me liga e fala assim: “Porra, que sacanagem, a maior galera viu o filme no Circo Voador (casa de espetáculos do Rio de Janeiro). Compraram uma cópia pirata de um policial e vão fazer uma sessão na casa do ministro”. Eu estava cansado e aquilo me deu uma irritação profunda. Falei: “Cara, isso não pode ser verdade. Não é possível que vá passar um filme pirata na casa do ministro da Cultura!”. Mas, diga-se de passagem, ele não tinha nada a ver com a história, só envolvia a Flora Gil.

 

Que é mulher do ministro.

É. Então eu tentei arrumar o telefone da casa do Gil, mas não consegui. Aí pensei: “Cara, vou ver se eu passo lá, eu tô muito curioso”. E fui. Toquei a campanha e falei: “Pô, tem uma cópia pirata aí?”. E pra minha surpresa tinha. Me devolveram, peguei a cópia e fui pra casa.

 

Você recebeu das mãos de quem?

Da empregada. No outro dia, a Flora me ligou e disse que não ia passar, que não sabia que era pirata quando deram pra ela. Tudo bem. Não liguei pra imprensa. Na verdade, quem falou sobre isso na imprensa foi a Flora, no jornal O Globo. Considerei mais um assunto do folclore brasileiro (risos). E guardo esse DVD pirata até hoje.

 

Então você deve ter um montinho de DVDs piratas na sua casa...

Não só tinha esse que recebi da empregada do ministro porque eu realmente achei que tinha um simbolismo, falava alguma coisa sobre o país (risos).

 

O Fernando Meirelles (diretor de Cidade de Deus) comemorou a sua vitória em Berlim. Isso o redime da declaração que ele deu dizendo que adoraria que o próximo filme dele, Ensaio sobre a Cegueira, fosse pirateado? Você não ficou chateado com ele?

Eu não fiquei chateado. Eu simplesmente falei: “Pô, posso te dar o nome do cara que pirateou o meu filme”. Mas eu entendo a frase do Fernando. Você fica mesmo com uma reação dúbia em relação à pirataria. A dimensão que o filme tomou no mercado pirata me deu a certeza de que ele tinha sido acolhido pelo público.

 

No fim das contas, a pirataria ajudou Tropa de Elite?

Não acho que tenha ajudado, mas me deu uma informação: o teu filme funciona em alto estilo. Como diretor de cinema e produtor cultural, pensei: “Pô, fiz um troço que sobrevive na competição entre as obras culturais”. Mas, por outro lado, que merda, o filme tá pirateado, não é a versão final...

 

O que Tropa de Elite mudou na sua vida? Hoje você é um sujeito que dá autógrafos na rua?

Antes eu nunca dava autógrafos, agora dou raramente (risos). O Tropa é muito diferente de qualquer outro. A partir de um DVD roubado numa empresa que faz legendagem, em três meses, segundo mediram o Ibope e o Datafolha, 11,5 milhões de brasileiros acima de 16 anos o viram. Nunca aconteceu e nunca vai acontecer de novo, eu acho. É um fenômeno cultural. E ocorreram coisas muito malucas. A polícia nos processou com base numa cópia pirata – anexou uma cópia pirata nos autos do processo! E começou um debate que me incomodou, que me fez sair da toca. Falaram que eu e o Marcos Paulo tínhamos gerado pirataria como uma estratégia de marketing.

 

O que havia de falso nessa afirmação?

Era uma mentira, uma leviandade. E uma burrice, porque o filme não era meu e do Marcos Prado, era também da Universal Pictures, da Paramount, da Weinstein Company. Era como se nós e grandes multinacionais tivéssemos nos reunido e falado assim: “Vamos vazar”. Uma besteira! E é crime! Então escrevi um artigo para O Globo falando o que eu achava da pirataria, porque eu acho péssimo. Estava infeliz com aquilo e não tinha motivos para me orgulhar. Durante dois meses, fiquei debatendo pirataria na mídia. E o debate acabou porque a polícia prendeu o sujeito que confessou ser o pirata. Bom, então agora não dá mais pra falar que foram o Padilha e o Marcos que comandaram a pirataria.

 

Houve retratação?

Eu não vi retratação, não. Aí lançamos o filme no Festival do Rio. Isto que eu vou contar é muito interessante. No lançamento, os atores que interpretaram os oficiais do Bope começaram a rir e aplaudir as performances deles. Eles gritavam “Caveira”. No dia seguinte saiu uma crítica à plateia, porque ela aplaudiu a ação do Bope.

 

E os aplausos tinham vindo dos atores...

Sim. Eu li no Washington Post que a população brasileira era radical de direita porque havia aplaudido o filme. E começou essa crítica de que o problema não está na tela, está na plateia. Inaugurou-se uma nova forma de crítica, em que o cara senta de costas pra tela e olha pra plateia. Eu fui a vários debates em faculdades e sempre perguntava: “Quem considera o capitão Nascimento um herói?”. Nesses debates, que devem ter reunido, ao todo, uns 6 mil estudantes, só uma garota levantou a mão. Eu me pergunto: “Cadê a enorme população que concorda com o Nascimento?”. O Arnaldo Bloch escreveu: “Será que Tropa de Elite é fascista?”. E 90% do texto é contra a plateia, que eram os atores. Não era um público convencional e criou-se essa ideia, como se a população brasileira inteira fosse estúpida e não soubesse diferenciar a ficção da realidade. E isso gerou uma outra polêmica que me obrigou a passar um bom tempo respondendo a essa questão estúpida: o filme é fascista?

 

E qual a sua resposta?

Essa é uma pergunta muito burra, e é facílima de responder. Fascismo é um movimento político-partidário que visa tomar o poder, controlar o Estado, criar um Estado totalitarista que domina os meios de comunicação, domina o Congresso, a produção artística e as escolas. O meu filme é sobre cem policiais violentos no Rio de Janeiro e uma polícia corrupta. Não tem rigorosamente nada a ver com nada. É uma besteira. É preciso ser muito ignorante quanto ao significado do termo fascista para dizer isso.

 

Mas a palavra caiu no uso popular que foge ao significado original.

Então por que não chamaram o filme de stalinista? Aí você pode usar o que quiser, se for usar uma palavra sem se preocupar com o significado que ela tem... E é bom falar que o filme é fascista. É uma maneira de se livrar do problema. Isso tem a ver com o fato de o filme dizer que usuário tem uma responsabilidade ética quando compra drogas. Para não lidar com isso, o cara escreve que o filme é fascista. E aí não precisa mais pensar nisso, acende um baseado e pronto. Não é?

 

Vai dormir, Padilha.

Não posso. Tenho que responder meus e-mails.

 

Publicado originalmente na revista “Playboy” em março de 2008

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Playboy entrevista Renato Aragão (janeiro de 2015)

Playboy entrevista Renato Aragão

 


Uma conversa franca com o homem por trás de Didi Mocó sobre preconceito contra nordestinos, Bolsa Família, recordes de bilheteria, críticos de seu humor, Os Trapalhões, Zacarias, Mussum, Dedé e, é claro, Didi Mocó

 

Quando Renato Aragão foi pela primeira vez entrevistado por PLAYBOY, em agosto de 1984, ele era um dos homens mais influentes do país: acabara de lançar dois filmes que, juntos, levaram quase 7 milhões de brasileiros aos cinemas e, apesar da então recente briga com seus colegas Dedé, Mussum e Zacarias, estava prestar a lançar mais um Os Trapalhões e o Mágico de Oróz. Além dos sucessos nas salas, Renato encabeçava o programa Os Trapalhões, líder de audiência que imortalizou bordões como “ô psit!” e “cacildes!”.

 

Nascido em Sobral, no interior do Ceará, no dia 13 de janeiro de 1935, pai de Paulo, de 54 anos, Ricardo, 52, Renato Júnior, 46; Juliana, 37, todos do seu primeiro casamento com Marta Rangel; e Livian, de 15 anos, sua filha com Lilian, sua segunda esposa, Renato se tornou, ao longo de mais e 50 anos de carreira, um dos maiores humoristas do Brasil – apenas comparável na história do gênero na televisão ao também cearense Chico Anysio.

 

Trinta anos depois daquela entrevista, no entanto, muita coisa mudou. Mauro Faccio Gonçalves, o Zacarias, morreu em 1990, aos 56 anos, por uma infecção nos pulmões. Sua morte tirou o fôlego da trupe, que depois do lançamento de Os Trapalhões e a Árvore da Juventude, em 1991, entrou em um hiato nas telonas. A esperança de que os três remanescentes, que continuavam firmes na Globo, se reunissem para lançar um novo filme acabou definitivamente em 1994, quando morreu Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, aos 53 anos, que não resistiu a um transplante de coração.

 

A partir de então, Renato virou “o” trapalhão e, apesar de a dupla com Dedé Santana nunca ter sido oficialmente desfeita, os dois seguiram caminhos próprios. Renato se manteve na Globo, onde teve dois programas nos últimos vinte anos: Turma do Didi, no ar entre 1998 e 2010, e As Aventuras de Didi, que durou quatro temporadas entre 2010 e 2013. Também lançou nove filmes. Mas nem na televisão nem no cinema consegui alcançar os sucessos estrondosos que o acompanharam ao longo dos anos 1980. Para toda uma geração, Renato Aragão se tornou, na melhor das hipóteses, o senhor que apresenta o Criança Esperança – e, na pior, o sujeito taciturno e mal-humorado que, dizem, briga com o personagem que o consagrou.

 

Até que surgiu a oportunidade de relançar no teatro Os Saltimbancos Trapalhões, um dos maiores sucessos de bilheteria do grupo no cinema. A peça, sucesso de público e, algo raro na carreira de Renato, também de crítica, renovou Didi e seu intérprete, que está de novo sob a atenção dos holofotes. Foi esse Renato Aragão prestes a chegar aos 80 anos que o repórter João Pedro Jorge encontrou por duas sessões de duas horas cada durante o mês de novembro. A primeira ocorreu em sua espaçosa casa, em um condomínio fechado na Barra da Tijuca, recanto de artistas e famosos (“Ali, naquela esquina, mora a Xuxa”, ele apontou). Vestindo uma camisa polo verde, calça bege e sapatos, Renato foi atencioso e simpático. Além de mostrar a casa da vizinha, apresentou os dois cachorros da raça rough collie (a mesma da Lessie) chamados Kelly e Kimba, convidou para tomar um café “tipicamente nordestino”, com tapioca e queijo coalho, e, com o gravador desligado, falou longamente sobre uma de suas paixões: o Vasco da Gama.

 

Na segunda sessão, no camarim da Cidade das Artes, no Rio, onde Os Saltimbancos Trapalhões está em cartaz, Renato apareceu vestido a caráter e, prestes a entrar em cena, bem mais irritadiço: reclamou do entra e sai de contrarregras que tentavam consertar um ar-condicionado e da insistência do repórter com alguns temas (“Mas eu já falei tanto disso!”, protestou). Mesmo assim não demonstrou em nenhum momento o seu famoso lado carrancudo (aquele que boa parte da imprensa adora pintar para ele). O resultado dessa conversa você “aí da poltrona” confere agora.

 

Você vai ficar bravo se eu o chamar de Didi?

Eu não sei quem inventou essa calúnia. A única mágoa que eu guardo é com quem inventou isso aí. Eu tive que processar o jornal e a colunista (em 24 de agosto de 2012, Fabíola Reipert publicou em seu blog que Renato teria demitido um motorista que o chamou de “Seu Didi”). Como é que pode uma pessoa inventar uma coisa dessas? Nem me conhece! Seria o mesmo que eu chegar aqui e falar: “Você é um repórter mau caráter”. Quem vai dizer o contrário?

 

Então não se incomoda quando chamam você pelo personagem?

Não. Meu trabalho é esse. Quando eu vou a algum lugar, estou disposto a tudo. Ao carinho, a parar para tirar selfie. Para mim, aquilo é uma vitória. O povo me conhece, sabe como eu sou. Sabe que eu sempre tenho um sorriso, que eu sempre paro. Minha maior preocupação é não decepcionar essa gente que me colocou aqui.

 

Por que surgiu essa história, então?

Quando você está lá em cima, quando começa a fazer sucesso no cinema, na televisão e no teatro, sempre vem a inveja. A inveja é uma merda. E tem gente que é pior que a inveja.

 

Você se incomoda com o que escrevem a seu respeito?

Eu nem dou bola mais para isso. As pessoas sabem da minha vida, sabem como eu sou. Sabem que eu sempre procuro agir com moral, honestidade e lisura. Durante toda a minha vida, eu pensei: “Por que vou falar com a imprensa, se eles sabem mais da minha vida do que eu?” (Apontando para a cópia da entrevista de 1984). Você mesmo trouxe uma reportagem aí que eu nem me lembrava. Mas não importa. Eu continuo falando e sendo coerente com aquilo que eu digo.

 

Mas costuma ler o que é publicado sobre você?

Olha, eu sei que toda semana estou no hospital. É muita falta do que fazer! Eu não acho nem idiotice mais. É falta do que fazer. E fico triste com isso, porque é de um baixo nível tão grande. Antigamente as reportagens eram mais sadias, agora você não sabe o que é a verdade. Então falando de você toda hora, e as pessoas captam essas mentiras. Parece que as mentiras são boas, mas o desmentido ninguém dá.

 

Você esteve de fato mal em junho deste ano. O que aconteceu?

Eu sempre achei que meu coração seria o único órgão do meu corpo que não teria problema. Eu tenho uma alimentação saudável, não como gordura, fritura nem doce. Também faço ginástica e exercícios. Mas acho que foi emoção dos 15 anos da minha filha. Nisso a minha pressão subiu muito e, de repente, comecei a passar mal. Me deram um Isordil (vasodilatador que ajuda a controlar a pressão), não resolveu. Botaram o segundo e apaguei. Quando acordei a festa tinha acabado. (Risos.) No dia seguinte, eu vim para casa, tomei café, e então me deu uma dor no peito muito forte, uma coisa terrível. Eram um sábado e, graças a Deus, o (Hospital) Barra d´Or é aqui perto. Chegando lá me colocaram um Stent (prótese que é colocada na artéria para evitar o seu entupimento), e não ficou nem cicatriz. Mas à noite veio uma febre tão grande que eu comecei a tremer. Peguei uma bactéria, uma infecção hospitalar. Até descobrirem, foram mais sete dias no hospital.

 

Você é notoriamente religioso. Durante esse momento, chegou a ver algo sobrenatural?

Não cheguei a ver nada, não. As pessoas que veem é porque entraram em coma, coisas assim. Eu não. Eu fiquei deste lado de cá.

 

E agora, como está a saúde?

O coração está zero. Eles colocaram o stent mais moderno possível. Disseram: “Pelo coração, você tem mais 75 anos de vida”. É muito, né? Dá metade para quem precisa. Te garanto que de coração não tem mais problema. Agora, os outros órgãos eu já não sei. (Risos.)

 

Depois de 50 anos de carreira você estreou ano passado no teatro. Foi bom para você?

Esse foi um acidente muito bom na minha vida. Quando (os diretores) Charles Möeller e Cláudio Botelho me fizeram o convite, eu fiquei: “O que é, menino? Teatro? Eu nem sei o que é isso!” Eu nunca tinha feito teatro. Fiz uns 4 mil shows com Os Trapalhões, mas era uma coisa distante, ficava aquele público enorme lá longe, a gente num palanque. Teatro é uma coisa intimista. E ainda eles me disseram que fariam Os Saltimbancos Trapalhões, tive certeza que não daria certo. Um filme que eu levei um ano para fazer, foi gravado até nos Estados Unidos, como é que você vai montar aquilo num palco? Esses caras são loucos. Depois descobri que eles não eram loucos, eram gênios.

 

Foi difícil sua adaptação ao teatro?

É diferente do cinema, né? No cinema tem corte, tem close. No teatro você está ali, olho no olho do público, e o povo fica ali sentado vendo todas as suas expressões. Tudo o que a gente faz, as reações, ele sente.

 

Os Saltimbancos Trapalhões talvez seja o filme mais político da trupe, com a crítica à opressão usando o circo como analogia. Essa faceta permanece?

Permanece a mesma coisa. As músicas continuam as mesmas do Chico Buarque, que é genial, não errou nenhuma. O texto dele é um poema, um poema musicado. E ele é um cara que entende muito de política. No espetáculo estou coberto de tudo quanto é lado. Por essa dupla de diretores e pelo Chico, que é um gênio.

 

Por vários motivos, o lançamento de Os Saltimbancos, em 1981, marcou uma virada na história do grupo, de um maior esmero nas produções e de uma aproximação com a classe média. Foi por isso que ele se tornou peça?

Não. Eles escolheram porque era um filme musical. Eu fiz Ali Babá, Aladin, Robin Hood, mas nenhum deles é musical. Esse filme já tinha todas as músicas para o teatro, com cantares e tudo.

 

Mas Os Saltimbancos foi mais bem produzido que os filmes anteriores, não?

Olha, sempre que faço um roteiro quero fazer melhor do que o anterior. Se esse filme é bom, depois quero fazer outro melhor e, depois, outro ainda melhor. Eu quero me superar.

 

Seus filmes tinham limitações técnicas que eram comuns para a época. Eles eram realmente bons?

Tive 5 milhões de espectadores. E, naquela época, não tinha controle de bilheteria. Esses 5 milhões hoje seriam 10, 20 milhões de pessoas. É até ruim eu falar isso, mas se fosse hoje, ninguém ia superar a minha bilheteria. Mesmo sem controle, nós fizemos no total dos filmes, mais de 130 milhões de espectadores, por aí.

 

Mas existe essa correlação entre público e qualidade?

Se o filme é bom, o povo vai ver. Os críticos são preconceituosos. Por que é que o meu filme é popular? Por que as pessoas são burras? Por que são nordestinos? Por que é um humor circense? Não, porque elas gostam! Eu faço os meus filmes para o meu público. Não faço para vocês, intelectuais, pseudointelectuais. Não faço os meus filmes para críticos. Nunca fiz filme para críticos. Eu faço filme para o povo. E aí o povo vai ver.


Essas críticas o incomodavam?

Eu nunca liguei para isso, nem vou ligar. Tinha gente que criticava meus filmes sem assistir! Foi comprovado isso. Mas, quanto mais eles me malhavam, mais crescia o bolo, mais dava bilheteria. Os pseudocineastas ficavam umas araras porque os filmes dele não encostavam. Chegava um nordestino com um rolo compressor e passava por cima.

 

Por que você acha que era tão maltratado pelos críticos?

No mundo todo é assim. A crítica quer falar mal, ela te que falar mal. Se ela falar bem, ela é pobre. O crítico que fala bem é um crítico que não merece ser crítico. Então eles têm que arranjar algum defeito. Às vezes ele sabe que está falando aquilo de má-fé, ele sabe que aquela atriz não está mal e que o vestido dela não é ruim. Aliás, até isso já falaram: “O figurino está horrível”. Mas eles têm que achar alguma coisa para falar mal, senão eles perdem o emprego.

 

Eu reparei que você tem um quadro do Romero Britto na sala. Ele também é nordestino, também faz sucesso e também é alvejado pelos críticos. Acha que há um paralelo entre vocês dois?

Eu e o Romero ficamos amigos na festa que a Globo para os 50 anos do Didi lá no Copacabana Palace. Ele fez esta homenagem muito boa para mim (aponta o quadro com ele, sua mulher Lilian e a filha Livian aparecem em toda as cores de Britto), e eu fiquei muito feliz em conhecer um artista brasileiro internacional que os invejosos não perdoam. Eles não perdoam o sucesso. O sucesso se tornou o oitavo pecado capital. Se fosse um carioca ou um gaúcho que fizesse sucesso, também seria alvo. Ninguém perdoa o sucesso.

 

Apesar disso, os críticos aclamaram Os Saltimbancos Trapalhões...

(Interrompe.) Aliás, eu gostaria aqui de agradecer. Eu nunca recebi uma unanimidade como recebi Os Saltimbancos. Pela primeira vez eu recortei tudo, recortei os jornais. Estava lá, na primeira página: “Bravo! Bravo!” Para mim, é mais uma realização. Tenho de agradecer aos críticos de teatro por terem me dado quatro estrelinhas.

 

Você acha que nessa crítica talvez esteja imbuído um fator nostalgia?

Tem uma memória afetiva de quem via às 7 da noite, de quem ouvia aquela musiquinha (canta as primeiras notas do tema de Os Trapalhões) e de quem viveu aqueles lançamentos de seis em seis meses dos meus filmes. Você via muita gente naquela época que morava em prédios de seis andares e que dava para ouvir a música em todos os apartamentos.

 

Como surgiram os bordões de Os Trapalhões?

Aquilo vem, eu recebo. Hoje eu nem me lembro mais quantos bordões já lancei. O mais famoso foi “ô psit!”, que veio do “psiu”, e “ô da poltrona!” O Didi não ia ficar falando “s” e “r” corretos. Ele tinha um modo de falar o povo para mim.

 

Nessa época você sofria muito assédio?

Tinha assédio, mas não chegava até a gente. Nos shows a gente ficava em meio a uma multidão muito grande, e tinha uns seguranças, e a gente saía, ia embora, e não tinha tempo de falar com os fãs.

 

E assédio de mulher?

Não, não, não. A gente era comediante, ninguém era ator, ninguém era galã. Era tudo comediante. O pessoal olhava e ficava rindo: “Me dá um autógrafo?” Naquela época era autógrafo, não era selfie.

 

Você anda com seguranças ainda hoje?

Ando. Eu ando com segurança por dois motivos: eu tenho uma família e a Globo não pode arriscar um talento. Então, quando eu vou para a Globo, eles me dão segurança, e eu tenho um particular que é motorista também. Mas a gente não é mito visado. Eu pelo menos nunca passei aperto, graças a Deus. O pessoal tem medo da repercussão que seria fazer algo contra alguém tão conhecido.

 

O fato de morar na Barra da Tijuca tem a ver com segurança também?

Não. Eu sou pioneiro da Barra, cheguei aqui no fim dos anos 1980, não tinha nem estrada. Não saio mais.

 

Mas tem a ver com a privacidade?

É muito mais tranquilo. Mas eu quase não saio da casa, não gosto de praia. Eu vou a um restaurante de vez em quando, gosto de ir ao shopping, mas é difícil, não dá para andar.

 

Por causa das pessoas...

(Interrompe com veemência.) Carinhosamente eu digo isso. Mas eu falo com todo mundo, não deixo de tirar foto. Agora, com celular, você não tem sossego! Mas eu atendo todo mundo.

 

Você já pensou em morar fora do país para ter uma vida mais tranquila?

Não, o que é isso? Eu viajo muito. Vou sempre para os Estados Unidos, passo lá o fim de ano e tudo, mas quando dá uns 15, 20 dias, eu já estou arrumando as malas para voltar. Sinto falta do meu país. Eu poderia passar lá um período grande. Gosto de Orlando. Mas morar? De jeito nenhum.

 

Em 1984, você estava engatilhado alguns projetos internacionais. Existe alguma frustração sua por não ter feito tanto sucesso fora do Brasil?

Para mim não. Graças a Deus, fiz sucesso no meu país com filmes para o povo brasileiro. Para fazer sucesso lá fora, eu teria de sair do país, aprender inglês. É muito difícil. Só agora alguns atores estão começando a romper essa barreira: o Rodrigo Santoro, a Alice Braga, o Wagner Moura. O Santoro é um cara que conseguiu sair do estereótipo.

 

Dos 11 filmes brasileiros que ultrapassaram a barreira dos 5 milhões de espectadores, cinco são seus e apenas três lançados na última década. Por que hoje é tão difícil atingir bilheterias expressivas?

Hoje eu poderia atingir muito mais, pois há um controle muito bom. Olha, nós temos uma concorrência americana muito forte. Os filmes americanos não precisam nem de ator, você viu as coisas que eles estão fazendo? Cada filme! Como é que eu vou pegar uma trucagem daquelas? Uns efeitos daqueles? É um melhor que o outro. Mas a gente “tupiniquimente” pode fazer bons filmes. Estou esperando um hiatozinho para poder fazer um filme.

 

É uma questão de concorrência com os americanos, então?

Não. Eu estou falando em relação à comparação com os efeitos especiais que eles têm lá e nós não temos aqui.

 

Então qual o problema?

Está todo mundo fazendo cinema e fazendo muito bem-feito, mas há uma saturação muito grande, principalmente em comédias. Tem que segurar um pouquinho. E sabe uma questão que mudou muito? O estacionamento. Naquela época, com cinemas de mil lugares, o cara estacionava lá longe, não tinha estacionamento. E muita gente me falava: “Será que quando eu voltar lá meu carro vai estar?” Hoje não. Você tem shopping centers em que o seu carro está guardadinho, você vai tranquilo, mas as salas são menores. Não são salas de mil lugares.

 

Você mudaria algo em seus filmes se pudesse?

Eu mudaria, sim. Antigamente, nas fotos de cartaz botávamos os heróis, os quatro trapalhões, de revólver na mão. Hoje eu nunca colocaria uma arma na mão dos heróis. Isso não pode jamais.

 

Você fez muito sucesso em uma época em que o país vivia a Ditadura Militar. Chegou a sofrer censura?

Ela não me incomodou muito. A única coisa que me incomodava é que você tinha que fazer um filme e mandar para Brasília, e lá eles davam o certificado de censura. Era como se fosse um selo: “Este filme está liberado”, essa coisa toda. Então eu mandava um emissário para Brasília, os caras assistiam ao filme... Era um incômodo. Mas nos meus filmes, nunca disseram “corta isso, corta aquilo”. Dos meus filmes, nunca cortaram nada.

 

As pessoas hoje se autocensuram mais por causa do politicamente correto?

Não sei. Mas acho que nada deveria ser censurado. Tinha que ser tudo livre, e a cada um que se responsabilizasse pelo que fala. Se você faz uma coisa que atinge a sociedade, essa coisa vai voltar contra você. Você vai chegar num programa de televisão, numa novela, e dar mau exemplo? Não merece censura, mas merece a resposta das pessoas. A sociedade é que deveria “censurar”, mudar de canal. A melhor censura é o controle remoto.


Várias piadas de Os Trapalhões hoje são consideradas politicamente incorretas...

Mas, na época, a gente fazia como uma brincadeira. Era uma brincadeira de circo entre mim e o Mussum. Como se fôssemos duas crianças em casa brincando. A intenção não era ofender ninguém. Hoje todas as classes sociais ganharam a sua área, a sua praia, e a gente tem que respeitar muito isso. Eu sou até a favor. Mas, naquela época, essas classes dos feios, dos negros, dos homossexuais, elas não se ofendiam. Elas sabiam que não era para atingir, para sacanear. O Mussum, o Zacarias e o Dedé até forçavam a piada. “Olha, agora é a hora de falar aquela merda, mas vai devagar!” (Risos.) Eu chamava o Dedé de “rapaz alegre”, entende? Mas era uma coisa de ator para ator, de personagem para personagem. Eles me chamavam de paraíba, mas era uma coisa dos personagens.

 

Você chegou a sofrer preconceito por ser nordestino?

Em tudo. Eu vou te dar um exemplo, e essa era a coisa mais clássica que eu ouvia, até fiquei saturado de responder: “Renato, ontem eu vi teu programa passando no quartinho da empregada”. Poxa, por que você não vem para a sala? (Risos.) É mais confortável! O pessoal pensava: “Esses caras estão aí, vieram do Nordeste e estão fazendo sucesso?” E Os Trapalhões fez um sucesso que chegou a dar 80% de audiência. Hoje eu não sei se daria tudo isso com TV a cabo, a internet.

 

Você acompanha essa nova onda de humoristas brasileiros que está fazendo sucesso na internet?

Faz isso não, rapaz. (Risos.) Eu acompanho muito pouco, vejo internet muito pouco. Não sou desta geração da tecnologia. Tenho computador, entro nos meus e-mails, mas não acompanho muito. Gosto do Gregório Duvivier, aquele menino é muito bom. Eles só estão errando porque pegam pesado demais. Não precisa. Eles falam muita merda. (Risos.) Se eles pegassem mais leve, conquistariam um público muito maior.

 

O Nordeste novamente foi pivotal nas eleições presidenciais. Com estados tão diferentes entre si, é possível falar em uma cultura nordestina?

Essa pergunta eu devolvo para você. Acho muito preconceituoso isso.

 

Mas há semelhanças, não? O articulista Diogo Mainardi chegou a dizer depois das eleições no programa Manhattan Connection que “o Nordeste sempre foi retrógado, sempre foi governista, sempre foi bovino..”

(Interrompe.) Peraí, por que ele não vai lá educar as pessoas se ele acha que a gente não tem educação, não tem conhecimento? Por que ele não vai exigir que o governo é educação? Isso aí é preconceito. Os nordestinos são esclarecidos demais, mas eles precisam comer. Eles são pobres. Eu sou a favor do Bolsa Família. Sou a favor com uma condição: dá um Bolsa Família, mas dá emprego. Se der só o Bolsa Família, a pessoa cruza os braços.

 

Você acha que o Brasil está dividido?

Acho que o país quer mudança. Eu até parei de votar, por que eu não sei mais em quem. Me apresente alguém? São todos corruptos... Desculpe, tem muita gente que quer fazer um país melhor, mas eles não conseguem porque os corruptos são muito mais fortes. Hoje em dia não tem mais cadeia para botar, e agora, quando entrar essa delação premiada, cara! Você vê esse escândalo da Petrobras? Essas coisas vergonhosas. Eu me sinto tão indefeso...O povo fica indefeso.

 

Na entrevista de 1984, em meio ao processo de reabertura política, você disse: “Eu sou palhaço, mas quero escolher meu presidente”. A democracia foi um processo frustrante para você?

Ao contrário! Minha frustração foi acabarem aqueles protestos. Temos que ir para a rua, temos que exigir mais democracia. Você sabe que a primeira vez em que vi os protestos, aquelas milhares e milhares de pessoas na rua, eu queria sair para lá, nem que fosse para ser mais um, para fazer uma figuração. Acho que era a hora de a gente mudar o Brasil. O povo tem que começar a puxar o país para ele, não pode deixar na mão de gente corrupta. Mas, de repente, veio a esculhambação, vieram os aproveitadores. Eles acabaram tirando aquela turma que foi exigir um Brasil melhor. Quando entraram os baderneiros, poxa, eu fiquei muito triste.

 

Você ficou satisfeito com o resultado das eleições do ano passado?

O Brasil precisa mudar, não só mudar os políticos, mas mudar o modo de fazer política. Se é o PT que está aí, ele tem que mudar. Não é só fazer uma mudança de um partido para o outro, do PT para o PSDB. Tem que mudar o modo de gerenciar o país. Temos que ter reformas políticas, reformas econômicas, reformas de tudo. Estamos estagnados. O Brasil não vai crescer se continuar assim.

 

Um dos gritos dos protestes de julho foi: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Isso o incomoda?

Mas o que a Globo tem a ver? O que a Globo fez de errado? Isso aí foram meia dúzia de baderneiros, meia dúzia de desocupados que não tinham mais o que fazer. Ninguém, nem a Globo, levou isso em consideração. Não é por aí. Tinham que fazer protestos contra a má gestão dos governantes, e fizeram. Mas tudo deu errado porque entraram esses baderneiros, esses black blocs da vida.

 

Como era a sua relação com o Roberto Marinho? Vocês eram próximos?

Não. Eu me encontrei com ele poucas vezes. Uma vez num aniversário, logo que eu cheguei na Globo, e outra vez quando a Unicef me nomeou embaixador. Nós nos falamos umas duas ou três vezes.

 

E como foram esses encontros?

Eu fiquei meio nervoso, claro. (Risos.) Da primeira vez, eu estava chegando, fiquei nervoso para chegar e apertar a mão daquele cara. Ele é um símbolo. O doutor Roberto, para mim, é um símbolo. Um cara que começou a fazer televisão com 60 anos. Nenhum empresário teve esse talento e essa visão que ele tinha. As pessoas de 60 anos naquela época já estavam pensando em se acomodar, e ele, que já tinha tudo, chegou aos 60 anos e falou “vou fazer televisão”. E fez maior televisão do Brasil.

 

Na entrevista de 1984, começava a ser criado o programa Criança Esperança, uma das marcas mais associadas à sua figura, e que também sofre críticas...

(Interrompe.) Isso é inveja! Tudo o que faz sucesso é perigoso, sucesso incomoda muito. E todo ano inventam coisas sobre mim e a Globo. Mas no que é que a gente ia se aproveitar? No que é a Rede Globo, com a grandiosidade dela, ia se aproveitar? Correr o risco da lisura dela? Da minha também? Isso aí já está fixando ridículo. Isso é ridículo. Eu e a Globo encontramos todo ano isso, mas o povo já sabe que a doação vai direto para onde ele quer que vá.

 

Essas críticas ao Criança Esperança o incomodam muito?

Me incomoda tudo que é injusto contra quem quer que seja. A pessoa vai falar mal do Criança Esperança? Tudo que faz sucesso... É aquele negócio que eu já te falei. O programa explode e é: “Ah, por que a Globo, me vez de fazer aquele programa, não doa o dinheiro para o povo?” É cruel isso. Me incomoda muito quando falam da Rede Globo. Eu não admito que falem mal da Globo.

 

Como todo casamento, o seu com a Globo já passou por crises. Você já se sentiu magoado?

De repente, tudo muda. Já fiquei seis anos sem fazer nada na Globo quando faleceram os dois companheiros, só fazendo um especial ou outro. Nem filme eu fazia. Fiquei muito triste.

 

Mas pensou em sair?

Não, eu nunca pensei em sair. A gente tem sempre que esperar o momento das coisas. De repente as coisas mudam, a gente vai se acomodando ali dentro, se acoplando. Antigamente faziam seriados e os programas eram de uma hora. Depois passou a ser sitcom de meia hora, e a gente se adapta. Então eu não tenho mais intenção de sair da Globo. Não sei se isso é recíproco, mas por mim, não saio.

 

Tem vontade de voltar a fazer um programa semanal?

Tenho. Hoje a minha vontade é fazer seriados, porque fazer um programa semanal é muito desgastante. Fazer um seriado com 16 episódios. Tenho várias ideias, mas eu não posso falar para você, não vou entregar o outro.

 

Como funciona o seu processo criativo?

Quando escrevo alguma coisa, sinto o que estou escrevendo. Eu sofro com meus personagens, rio com eles, me canso com eles. Às vezes estou escrevendo uma história, pego um personagem e penso: “Será que eu estou sendo muito perverso com ele? Não, esse vilão não merece ser sacaneado, ou ser preso, ou ser morto”, que, aliás, é algo que nunca aconteceu nos meus filmes. Não. Eu vou dar um carinho nele, ele vai se recuperar. Eu faço sempre assim. E eu vivo o Didi. Quando eu estou escrevendo, sinto o Didi. Parece até que ele me leva no computador.

 

Foi você quem escreveu todos os roteiros desde o começo?

Dos filmes, quase todos. Desses 50, 40 e tantos (ao todo, Renato Aragão fez 47 filmes) escrevi quase todos. Depois é que eu comecei a pegar autores, mas quando eu comecei na televisão eu que escrevia. Foi difícil, aliás. Comecei lendo todas aquelas comédias da SBAT, Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Eram uns livrinhos assim, tipo literatura de cordel, com comedinhas, e eu lia aquilo dia e noite para saber como é que entrava e saia de um palco, como é que escrevia. Teve uma época em que eu escrevia uma comédia por semana. Eu tinha que escrever 25 páginas. Hoje eu faço um “sinopão” e digo: “Turma, é com vocês”. E aí meus autores colocam dialogo. Mas o começo, meio e fim são meus.


Você ainda assiste a muita televisão?

Só jornalismo e futebol. O futebol é a minha paixão. Eu joguei muito futebol quando era adolescente, quase fui profissional lá no Ceará por um clube que não existe mais, chamado Gentilândia. Jogava de center-half, que hoje seria um meio-campo, um volante.

 

E era bom?

Médio. Não decepcionava. Não era um craque, mas não decepcionava.

 

Dava para jogar no Vasco?

Rapaz! Eu sofro tanto com o Vasco. Ele está subindo agora para a primeira, subiu aos trancos e barrancos. Mas o Botafogo, vou te falar, dos clubes cariocas, é o que está na situação pior. Em proporções diferentes, claro, porque ele ainda estava na primeira. O Vasco, o Botafogo, o Flamengo... Esses times têm uma tradição enorme. Não podem ir para a segunda divisão. É um grande problema  a administração do futebol em todo o país.

 

O que você acha de movimentos como o Bom Senso?

Para você ver, é uma manifestação! Nós temos que mudar o futebol. Somos um país de tradição futebolística exemplar, várias vezes campeão do mundo, e não podemos passar por essa humilhação que a gente passou contra a Alemanha. Isso aí vai ficar como marco que não vai se apagar mais. Não vai apagar mais esse vexame que a seleção deu nessa Copa do Mundo. Eu quase desmaiei assistindo ao jogo. Eu ia tomar café, era um gol. Eu ia fazer xixi, era um gol. Olhava o comentário, era um gol! Meu Deus, isso aí não é o Brasil. Terminou o jogo eu fiquei sentado sem acreditar no que via. Fiquei anestesiado.

 

Na entrevista de 1984, você falou sobre os problemas que sua filha Juliana Aragão passava pela ausência do pai. Você se arrepende de ter sido um pai distante?

Naquela época, o sucesso me empurrou, e eu não podia parar. Mas, claro, eu voltava para casa. Não era uma pessoa ausente. Eu voltava, conversava com eles. Mas não podia estar lá sexta, sábado e domingo, que eram os dias em que eles estavam de folga da escola, porque eu estava fazendo shows com Os Trapalhões. Mas te digo que, hoje em dia, ela me acha o pai ideal. Todos os meus filhos, na verdade. Eles nem se lembram daquele período. Hoje eles compreenderam aquela minha situação.

 

Essa experiência mudou a forma de você se relacionar com a Livian, sua filha mais nova?

Desde que eu me casei com a Lilia, a Livinha participou de tudo. A Juliana não, ela ficava em casa. Não só a Juliana, mas os outros filhos também. Eu passei dois dias em casa, o resto era ou gravando, ou filmando, ou fazendo show. Agora com a Livian, onde eu ia fazer show, gravar, ela ia. A mãe dela ia grávida e tudo. A Livinha chegou a participar de um filme com 8 meses (Os Trapalhões e a Luz Azul.) Quando eu fiz uma caminhada de 150 quilômetros para agradecer à Nossa Senhora Aparecida pelo Criança Esperança, elas foram comigo. A Livinha estava num trailer, claro, mas a mãe foi caminhando comigo. Até nisso eu levava junto.

 

Você é um pai ciumento?

Não fala isso! (Risos.) Eu sou ciumento assumido. Muito, muito ciumento. Esse moleque (o ator Nicolas Prattes, namorado da Livian), para poder entrar em casa, levou muito tempo. Eu não admitia. Pô, eu sou ciumento mesmo, e daí? Tem gente que não é, mas eu sou. Mas o moleque ganhou o espaço dele. É um menino muito bom, tem bom caráter. Graças a Deus, ela soube escolher. Aí eu joguei a toalha.

 

E com outras coisas, você é ciumento?

Sim, eu sou. Sou ciumento com tudo. Mas não sou possessivo.

 

Isso influenciou de alguma forma a separação de Os Trapalhões? O que aconteceu exatamente naquela época?

(Irritado.) Eu não gosto mais de falar disso. Foi uma situação muito delicada para todas as partes, fui muito magoado pelas críticas que só vieram para o meu lado. Eu fiquei de vilão nessa história, e por isso eu não gosto de falar. Quem passou por aquele período que tome suas decisões e tire suas conclusões a meu respeito. Mas eu não gosto de falar nisso. Inclusive porque dois companheiros já se foram, e fica muito indelicado falar.


Foi por causa de grana?

Não foi nada disso! Cada um quis fazer o seu filme. Eu fiz o meu filme, e eles fizeram o deles. Foi só esse o motivo. Não foi outro.

 

Mas por que cada um quis fazer um filme?

Eu vou te responder sempre do mesmo jeito que você perguntar. Não tem outra resposta para te dar que não seja essa.

 

Você citou a morte do Zacarias e do Mussum. Sente muita falta deles?

Eu sinto muita falta deles. Não vejo os filmes, não assisto mais. Tenho muita saudade. Para mim é até difícil. Quando tocam nesse assunto, já me sensibilizo.

 

Depois de idas e vindas, você e o Dedé Santana voltaram a ter uma parceria sólida. Acha que o Zacarias e o Mussum, se estivessem vivos, estariam com vocês dois em Os Saltimbancos Trapalhões?

O quarteto estaria sempre junto. Se eles não fossem levados lá para cima, para outros planos, nós estaríamos fazendo o musical. E tinha ainda o Tião Macalé, esse também estaria aqui conosco com certeza. (Imita o bordão de Macalé.) “Tchan!”

 

E como é a sua relação com o Dedé hoje?

O Dedé mora em Santa Catarina, em Camboriú, mas ele vem sempre para cá, para o Rio de Janeiro. Ele está aqui agora muito por causa do teatro, e vem também quando é para fazer os meus telefilmes. E quando o Dedé vem para cá a gente sempre se encontra, jantamos quando dá tempo de jantar, saímos quando dá tempo de sair. Aí a gente só fala besteira, fica falando brincadeiras, eu, ele e o Sargento Pincel (personagem de Roberto Guilherme, eterno algoz da trupe em Os Trapalhões).

 

Vocês ficaram distantes por muito tempo. Se sente bem com essa reaproximação?
Claro! Isso aí faz tanto tempo que ninguém lembra. Vou te dar um exemplo: eu brigo com a minha mulher às vezes por besteira. Era esse tipo de atrito que existia em Os Trapalhões. Mas as pessoas gostam de tocar nessa ferida que, para mim, já está cicatrizada.

Você chegou a provar a cerveja do Mussum, a Biritis?

Cheguei a ver, mas não provei. Um amigo me deu, eu guardei... Eu não bebo cerveja. Só bebo vinho. Gosto de beber uma taça de vinho quando saio com os amigos no fim de semana. E isso não me faz mal. Faz até bem. Mas outra bebida? Eu tenho em casa por educação, para servir às pessoas. Para receber as pessoas.

 

Nunca foi de beber?

Nunca bebi. Eu não bebia nada. Bebo às vezes numa convivência social, num jantar.

 

Tem alguma história de porre?

Não, não, não. (Risos). Eu até gostaria de ter tomado um porre, mas não tomei.

 

E fumar? Você fumava?

Eu já cheguei a fumar na época da moda. Não sei se você lembra que o Kojak (personagem vivido por Telly Savallas na série homônima dos anos 1970) fumava um cigarro comprido assim. Eu até cheguei a botar isso na boca para ver como era, mas nunca foi vício. E também nunca botei outro cigarro, a não ser esse da moda.

 

Mas não era raro ver personagens fumando em Os Trapalhões, principalmente nos filmes...

Você veja, o próprio Pica-Pau mudou também. O Pica-Pau era um mau exemplo danado, um mau caráter! (Risos.) Agora a nova versão mudou. Essas coisas mudam com a sociedade. Tomara que isso sempre aconteça. Tomara que a gente não seja um condutor do mau exemplo para as crianças. Fumar! Antigamente se fumava em cena. Não sei se nos meus programas, eu não me lembro, mas nos próprios filmes em preto e branco americanos o ator fumava. Era todo mundo fumando. Mas isso foi acabando.

 

Renato, para terminar, uma pergunta clássica de PLAYBOY que você não respondeu em 1984: como foi sua primeira vez?

Olha, eu estou com 79 anos... Vou te falar que eu não lembro. Não me lembro mesmo, com toda a sinceridade. Não sei que idade tinha, talvez uns 16. Naquela época, era muito distante a primeira vez. Mas eu vou me lembrar para a próxima entrevistar que eu dar para PLAYBOY, daqui a 30 anos.

Publicado originalmente na revista “Playboy” em janeiro de 2015