É possível viver apenas
de literatura no Brasil? Embora muito receoso, sabendo que até agora só Jorge
Amado conseguiu realizar essa proeza, o escritor Marcos Rey vai tentar.
Abandona mais de vinte anos de rádio e televisão, alguns de cinema, para viver
em função de um sonho romântico que já quebrou a cara de muita gente de
talento. No Brasil, a ideia pode parecer absurda, mas o fato é que os livros de
Marcos Rey alcançam vendagem acima da média, tendência que vem se acentuando. O
razoável êxito de O Pêndulo da Noite,
coincidindo com as reedições de Memórias
de um Gigolô e O Enterro da Cafetina
e a tradução dos dois primeiros para o inglês, com opção para outros
idiomas, o interesse que o cinema continua demonstrando pela adaptação de seus
contos, o lançamento de mais dois livros, Soy
Loco por ti, América e The São Paulo
Affair, realmente aproximam Marcos Rey da possibilidade de
profissionalização. E ele já se atirou a essa aventura, ao lado de sua mulher,
Palma, e da sua dálmata Virgínia Ebbony Spots, trabalhando fulltime para
apressar o sucesso (ou fracasso) de sua experiência
Lui: Você vive de sexo
ou de literatura?
Marcos: Se você fizesse
essa pergunta a um médico ginecologista, que fosse também escritor, ele
responderia: vivo de sexo. E, nesse caso, eu também, pois as pornochanchadas
que escrevi para o cinema foram encomendadas, tarefas pagas que nada tiveram a
ver com minha carreira literária. Se me marquei como autor de pornochanchadas
foi porque a adaptação de Memórias de um
Gigolô e O Enterro da Cafetina,
feitas por Alberto Pieralisi, praticamente inauguraram o gênero. Mais tarde,
encomendaram-me roteiros especialmente escritos para o cinema, e, como
precisava de dinheiro, topei a parada, e com incrível sucesso. Acabei
tornando-me o único roteirista profissional do país. Mas meus bons roteiros não
consegui vender e os que consegui não foram produzidos por não serem
comerciais. Isto significa: acabei sendo uma vítima da própria onda que ajudei
a criar.
Lui: A pornochanchada
continua na ordem do dia?
Marcos: Não,
propriamente. Agora o que dá pé são pornochanchadas de luxo como Dona Flor e Xica da Silva. Mas aí também sou um precursor com algo muito
melhor, que foi o filme Sedução,
escrito em parceria com Fauzi Mansur, seu produtor. Acho que Sedução foi uma ótima comédia erótica e
que não foi ainda superada, embora a crítica de São Paulo, sempre tão
preconceituosa, não lhe reconhecesse o valor. Mas, respondendo, a
pornochanchada está em decadência, como todos esperávamos, depois de ter dado
bases financeiras ao nosso cinema e possibilitando a preparação de técnicos e
diretores de nível profissional. Fala-se e enaltece-se a fase da Atlântida,
como marco do cinema nacional. A pornô foi mais pródiga e consequente.
Lui: Você gosta de
escrever pornochanchadas?
Marcos: Gosto de
escrever contos e romances. Escrevi, como disse, para ganhar dinheiro, embora
disso não me envergonhe. Vergonhosa, a meu ver, é a atitude de um certo crítico
de cinema ultraexigente, que sempre combateu a pornochanchada, e que agora, quando
ela agoniza, adere a ela de corpo e alma, para produzir não sucessos como eu,
mas fracassos. Mas já que estou com a mão na massa, é bom saberem que muitos
dos meus livros e contos não foram adaptados para o cinema por mim. Minha peça
teatral, inédita, Living e WC, foi no
cinema Ainda Agarro Esta Vizinha,
adaptado pelo Vianinha, que, depois, escreveu uma peça- Alegro Desbun – muito parecida com a minha. Mas, depois,
defendendo-se em carta, ele explicou a mim e ao mundo que o teatro vale pelo
seu “desenho psicológico e não pela estória”...Daí por diante, para evitar
equívocos dessa natureza, decidi adaptar eu mesmo meus argumentos.
Lui: Você é desses que
não perdem os seus filmes?
Marcos: O cinema é para
mim arte dependente. Como a telenovela, que adapta ou plagia quase tudo. Meu
sucesso no cinema foi ocasional. Eu sou um escritor e não acredito que a
literatura esteja nos estertores. Todo bom filme é baseado em contos ou livros.
As exceções são raríssimas. Ah, meus livros? Assisti a alguns.
Lui: Você costuma ser
personagem dos seus livros?
Marcos: Quase todo
livro é autobiográfico. Scott Fitzgerald fazia mais: escrevi sempre a mesma
estória, talvez à procura de um final mais feliz. O autor não se livra de suas
próprias experiências. Como Hitchcock nos seus filmes, ele sempre dá as caras.
Disfarçado ou não, mas aparece.
Lui: Você aborda muito
o baixo mundo. Pode se abrir: foi gigolô?
Marcos: Pertenço à
classe média e tive uma rígida formação presbiteriana. Minha mãe queria que eu
fosse um pastor de almas e cheguei a pensar nisso. Mas como o reverendo Jim
Case, de As Vinhas da Ira, não
saberia para onde conduzir o rebanho. Mas também que não se iludam com minha
cara de santo. Aos vinte anos saí de casa para ir à China e parei na rua da
Lapa, no Rio de Janeiro, onde vivi dois anos convivendo com todo o marginalato
e fazendo croquis dos meus primeiros contos de bas-fonds, enquanto, para viver,
traduzia Bambi, Banca de Neve e outros livros então editados pela
Melhoramentos.
Lui: Conheceu Madame
Satã?
Marcos: Conheci, mas
como não trabalho com esse artigo, muitas vezes tive que levantar os braços, na
virada da rua Moraes e Vale para chegar à minha pensão. Satã era o dono do
quarteirão e não tinha nada do boa-praça que hoje costumam pintar para dar mais
charme ao nosso folclore. Acho que é lá que nasceram os personagens de Memórias de um Gigolô e O Enterro da Cafetina, o que é uma
traição: um escritor tipicamente paulistano inspirar-se no Rio.
Palma:
Conte a estória das cartas.
Lui:
É. Conte tal estória.
Marcos:
Isso está nas Memórias de um Gigolô. Um dia fui procurado por uma prostituta
para que lhe escrevesse uma carta de amor. A carta fez sucesso e seu gigolô
voltou para casa. Daí, outras fizeram o mesmo pedido, o que me obrigou a fazer
o que tento agora: profissionalizar-me. Claro que não pensava em criar um
sindicato de redatores de cartas prostitucionais, mas isso me ajudou a manter-me
no Rio e a comprar muitos livros. O certo é que eu fui o único a exercer tal
profissão e duvido que alguém um dia possa fazê-lo como tal consciência e
êxito.
Lui:
Fale mais da Lapa.
Marcos:
Esses dois anos foram ricos em experiências, de leitura e trabalho. Não
acredito que basta viver a vida para alguém tornar-se escritor. Havia uma
livraria de aluguel na Rodrigo Silva. Eu não saía de lá. E todos os dias
frequentava a Biblioteca Nacional. Creio que ninguém a conhecia melhor que eu.
À noite, porém, enquanto o médico dormia, o monstro saia e eu aprontava.
Lui:
Espere, o dinheiro das cartas foi o único que arrancou das prostitutas?
Marcos:
A gente sempre faz o que sabe. Nessa especialidade havia gente melhor. Depois
faturava com traduções, contos e artigos que publicava nas revistas Leitura e
Oriente. Publicava também na Folha da Manhã, onde meu irmão, Mário Donato, era
secretário.
Lui:
Você falava do monstro.
Marcos:
Mr. Hide? O próprio Stevenson tinha um Mr. Hide no guarda-roupa. Não tive na
Lapa a sorte dos heróis das pornochanchadas, se é isso o que quer saber. A
guerra acabara e o dinheiro era o dólar. A charla não valia nada. Elas só
perdiam tempo com os marines. Por isso (conto essa?) uma vez vi uma mina dar o
meu dinheiro a um cafiolo na Gomes Freire. Me senti humilhado e aquela noite,
durante horas, fui seguindo o gigolô até que, quando ele passava pela rua
Taylor, eu já com umas e outras na cabeça, ataquei de surpresa, fugindo à
rotina de bom menino. Não recuperei o dinheiro, mas na contenda sobrou um
relógio, que guardei como troféu, durante algum tempo.
Lui:
Voltar a São Paulo foi muito triste?
Marcos:
Uma úlcera no estômago me trouxe de volta. Mas logo depois entrava na Rádio
Excelsior, onde comecei a ganhar bons salários como redator de rádio. Depois, a
partir de 1955, a televisão.
Lui:
Havia censura nessa época?
Marcos:
Havia, mas camarada. O censor, que se chamava Russomano, ia à emissora, tomava
café com a gente, e procurava mostrar-se um bom sujeito. Pouca censura e nenhum
Ibope, praga, a meu ver, muito pior que a censura. O mal da censura hoje, o
maior, é criar falsos ídolos. Quando ela proíbe, o autor vira gênio. Por outro
lado, quando ela proíbe, o autor é um imbecil e um vendido. A peça mais forte
apresentada no ano passado foi minha: Os Parceiros. Mas, como a censura
permitiu, a crítica ignorou. Porém, o mal maior é o Ibope na televisão. A
Globo, por exemplo, estava decidida a melhorar o nível das novelas das 7. De
repente uma telenovela considerada da pior categoria emplacou. Resultado:
concluiu-se que era bobagem melhorar o nível, e era mesmo. O que o Ibope
consagra fica, enriquece. Se uma boa telenovela não der índice, miau.
Lui:
O que você acha da participação do intelectual na televisão?
Marcos:
Bobagem. É, eu disse bobagem. O intelectual não muda a televisão. Ela que muda
o intelectual. Quando ele começa a ganhar um belo salário, afrouxa, entra no
sistema e só quer saber quanto a novela está dando de audiência. O negócio é
transar com o sistema. Se não fosse assim, haveria muitos intelectuais, digo,
escritores na televisão. Se não há, é porque não é o lugar deles. Depois o
escritor não entra fácil em corriolas, e sem pertencer a uma panela, a um velho
grupo, ele pode entrar, mas não fica.
Lui:
Você tem queixas da televisão?
Marcos:
Vivi na televisão e talvez volte um dia. Mas, por menos elitista que uma pessoa
seja, é força a reconhecer que o cafajestismo criou reduto em algumas das
emissoras. Principalmente no que se refere ao respeito às leis trabalhistas. Na
Excelsior fui demitido só porque outra emissora anunciou que eu escreveria um
programa para ela. Mas demitido sem nenhum aviso e sem o pagamento de nenhum
direito. Na Record deram a outro uma novela que eu bolara e que estava
registrada em meu nome. Noutra, me recusei a desenvolver o papel de uma atriz
na qual o diretor estava de olho. E me dei mal com isso. E atualmente processo
a Tupi por quitação sem acerto de contas.
Lui:
Mas não era você que dava tremendas festas, ainda bem recentemente?
Marcos:
Durante uns três anos eu e Palma demos uma de “Belos e Malditos”, oferecendo
Open House todos os sábados. Mas não era só para gente de televisão.
Compareciam atores de teatro, cinema e escritores. O espírito do Grande Gatsby
encostou em mim e eu troquei por algum tempo uma visa reclusa por futilidades
do mundo etílico. Toda experiência na vida de um escritor é boa. E aquela era
uma experiência visual que se coadunava com meu terraço. Anos mais tarde, eu
usaria aquele material para escrever Soy
Loco Por ti, América, livro de contos que será publicado ainda esse ano.
Mas, continuando com o Open House, depois de atingir seu esplendor, quando
Egídio Eccio começou a me chamar de Scott, foi acabando, a porta fechou, e
esgotou a experiência e a adega...
Lui:
Você deixou muitos amigos na televisão?
Marcos:
Muitos
Lui:
Quantos?
Marcos:
Dois. Mas desde que terminou minha última novela não os vi mais.
Lui:
E o cinema, que tal o ambiente? Pode pichar.
Marcos:
Não picho. O ambiente do cinema é ótimo, como tudo que está em início. Um
exemplo: nunca vi uma luta corporal na televisão e rádio em 28 anos. A puxada
de tapete se faz na sombra e na calada da noite. No cinema ainda se briga, vi
algumas. Isso significa coragem e sinceridade. Por outro lado o produtor de
cinema é um homem que arrisca seu próprio dinheiro, vende o apartamento, o
Fusca, tira o filho da escola, sacrifica-se. Luta por uma causa comum, o cinema
nacional. Faz autocrítica; dificilmente endeusa o seu trabalho. Pelo contrário,
é o primeiro a apontar as falhas, quando na televisão o clima é o da
mediocridade satisfeita. A maioria sabe cumprir seus compromissos. Fiz 32
filmes e nunca levei um único cano. Jece Valadão? Sempre me pagou. Pagam pouco,
mas pagam, e o fato é que não estacionaram: heroicamente os produtores estão
criando uma indústria, que logo mais será tão organizada como o futebol ou as
escolas de samba.
Lui:
Você também foi publicitário. Por que saiu?
Marcos:
Eis ai uma coisa que fiz muito bem, desde que entrei, em 1956. Fui quem bolou,
nos anúncios de geladeira, destacar a porta utilizável. Criei o “Espaço
Integral Brastemp”, na ocasião copiado por todos os concorrentes. Mais tarde,
criei o anúncio humorístico na televisão, os intervalos comerciais do programa
Noites Cariocas, com Amândio Silva Filho – isso antes do teipe. Fui redator de
grandes agências e cuidei de contas como Willys, General Eletric, Nestlé,
Brastemp e muitas outras. Depois me coube provar que o Gordini era melhor que o
Volks. E provei, né?
Lui:
Por que saiu da publicidade?
Marcos:
Há uma história aí. A Editora Civilização Brasileira tinha aprovado O Enterro da Cafetina, mas eu precisava
incluir mais três contos para dar um volume de bom tamanho. Mas não tinha tempo
para isso e o prazo se esgotando. Um dia, comentei com minha mulher: “Um dia
abandono a publicidade para ter mais tempo para escrever”. Ela perguntou:
“Quando pretende fazer isso?”. Respondi: “Daqui a uns dez anos”. Ela: “Por que
não abandona amanhã? A gente vende o carro e se aguenta”. Foi o que fiz.
Lui:
E aquele conto, o Bar dos Cento e Tantos
Dias, corresponde a realidade que viveu na época?
Marcos:
Sim, a fase do Paribar. Isso foi quando tentei voltar algum tempo depois. Não
foi mole.
Lui:
Isso pode acontecer outra vez?
Marcos:
Não venha me dar mau agouro.
Lui:
Qual dos três ramos é o mais corrupto ou desagradável: televisão, publicidade
ou cinema?
Marcos:
O cinema é o mais puro e ingênuo, onde persiste o idealismo em estado bruto ou
latente. E é também onde mais pessoas caem do cavalo.
Lui:
E na revolução sexual você acredita?
Marcos:
Acho que a revolução sexual é feita na capa das revistas. A maioria continua
sendo quadrada e provinciana. Acho que a geração anterior a essa, a dos pais,
dos homens que passaram dos quarenta, foi mais liberal e avançada. Foi
existencialista, com toda razão, e tinha a Chiquita Bacana como símbolo. A de
hoje é assexuada e barulhenta.
Lui:
Mas você foi visto no New York City, no Rio, dançando numa discoteca com
algumas garotas. Verdade?
Marcos:
É verdade. Fui lá fazer uma pesquisa sociológica.
Lui:
Você é favorável a emancipação da mulher?
Marcos:
Sou e sinto não ser vinte anos mais moço para ser mais ainda. Ai eu ia ser um
líder da emancipação com sede própria, farol de neblina e tudo mais. Na
verdade, o homem, além do seu aspecto repulsivo, é muito mau-caráter. Creio
inclusive que toda a administração do país deveria estar nas mãos das mulheres.
Aposto que haveria, então, democracia. Eu só não votaria num sapatão para
presidente da República.
Lui:
E com sua filha, você seria um pai liberal?
Marcos:
Seria não, sou. Virgininha teve onze filhos e se quiser pode ter mais onze. Só
não pode ser com um vira-lata porque eles não têm saldo médio.
Lui:
O que acha do casamento?
Marcos:
Com exceção do meu- e a Palma que está aqui presente não me deixa mentir -, o
casamento é uma droga. O homem, por mais honesto que seja, morre sonhando com
um harém. Ter uma mulher só é a maior tragédia da vida do homem. O coitado fica
complexado, diminuído, começa a sentir dores nos tornozelos, no baixo-ventre,
no joelho esquerdo, não entendo por que no joelho esquerdo, no antebraço e
depois a coisa ataca o coração e mata. Todos os homens, não falo dos machões, que
são suspeitos, sonham com um harém.
Lui:
Então você aceita Freud integralmente?
Marcos:
Foi Hollywood que passou essa imagem. Antes o sexo não era o sonho da classe
média. Era privilégio de raros. O cinema que o popularizou, como a publicidade
promoveu a geladeira, o liquidificador e os eletrodomésticos todos. Depois,
para Freud, o sexo era uma doença, uma tara; imaginem, os homens apaixonados
pela própria mãe! Essa é a maior falta de imaginação que já vi. Queria
generalizar uma aberração! Sou contra, contríssimo!
Lui:
Um tema atual: acha que todas as mães deveriam amamentar seus bebês?
Marcos:
Não, não, não!
Lui:
O que você diz do divórcio?
Marcos:
Nas próximas décadas o divórcio não seria apenas facultativo como obrigatório.
Haverá uma lei que divorciará os casais compulsoriamente depois de cinco anos
de casados. E as barreiras legais serão tantas e complicadas que mesmo se
amando os casais não conseguirão continuar juntos. Pode dar cadeia, pra quem
insistir.
Lui:
Você acha, como MacLuhan, que o mundo ainda será uma aldeia global?
Marcos:
Esse é o grande sonho do Boni.
Lui:
Voltando a um assunto já falado, o que falta na televisão?
Marcos:
Me deem a direção geral de uma, e eu mostro. Antes, não.
Lui:
Por que ainda não fez o chamado teatro de protesto?
Marcos:
Ainda não, mas dá uma nota, não?
Lui:
Como você vê o problema da poluição?
Marcos:
O que vocês querem, que deixe de fumar? As minhas fábricas já tem filtro antipoluição.
Já viu alguém me acusar nos jornais de poluir o ambiente? Já?
Lui:E
sobre a preservação do verde?
Marcos:
Fui muito amarrado ao verde, ao selvagem. Quando jovem, frequentava a African
Boate, a Savage, o Jungle Bar e o restaurante Cacciatore.
Lui:
Você começou a escrever cedo. Teve mestres?
Marcos:
Tive, é claro. Meu irmão, o escritor Mario Donato, sempre orientou minhas
leituras. Sou um grande leitor, o que é raro num escritor. O escritor, depois
do analfabeto, é quem menos lê no Brasil. Livro e música. Gershwin, Art Tatum e
Billie Holyday exerceram em mim influência maior que alguns escritores. Outro
mestre, que conheci no fim da vida, foi Oswald de Andrade, de quem fui o último
discípulo e para quem eu era “mais que a esperança: a crença”. Escrevia um
livro de perguntas e respostas quando Oswald morreu. Fui o último a
entrevista-lo e um dos seus confidentes. Morreu arrependido por ter feito uma
piada que o separou de Mário de Andrade. Para ele, Mário, Machado e Euclides
tinham sido os maiores. Garantia ter inventado Antônio de Alcântara Machado e
que, portanto, era um blefe. Alguns escritores brasileiros famosíssimos, ele
nem conseguiu ler. Eram uns chatos. Gostava que gostassem de sua poesia. Sua
vaidade era ser poeta e julgava-se injustiçado. Costumávamos passear pelo seu
bairro, no Fiat dirigido por Antonieta d´Alkimin, sua mulher. Não temia a
morte; simplesmente a detestava.
Lui:
Como foi sua formação literária?
Marcos:
Intensa e apaixonada. Meu pai, encadernador, antes de eu nascer, já formava uma
biblioteca. Ele foi chefe das oficinas da Editora Monteiro Lobato, e por isso
fui uma das primeiras crianças a ter livros do escritor nas mãos. O cheiro da
tinta, dos livros recém-saídos do prelo, é minha lembrança mais antiga. Nasci
entre livros, já lidos pelo meu irmão mais velho. Aos oito anos não imaginava
que pudesse ser outra coisa porque nada mais me interessava. Já na infância
conheci alguns escritores pessoalmente como Orígenes Lessa, e amigos do Mário
como Edgard Cavalheiro, Fernando Goes e quase todos daquela jovem geração que
antecedia a minha.
Lui:
E os autores que o influenciaram?
Marcos:
Certamente passei por Anatole France, Wilde e Eça. Machado foi a primeira das
paixões mais duradouras. Na juventude descobri os escritores norte-americanos e
logo em tornei doutor em literatura americana: Hemingway, Steinbeck, Caldwell,
Saroyan, O´Hara, Dorothy Parker, James Cain, Faulkner, Dos Passos e todos eles.
Com os americanos aprendi que a vivência pode nortear a inspiração, e que é na
vida que está a essência da arte. Verdade simples, mas que o escritor teima em
esquecer. Outros autores também me influenciaram ou estimularam como o pouco
lembrado Julian Green e Liam O`Flaherty. Estão todos em minha biblioteca,
lidos, relidos e consultados com a maior frequência.
Lui:
Como você explica o novo impulso que está tomando a literatura brasileira numa
época de visível recesso cultural?
Marcos:
Lembro que foi durante a ditadura que surgiu no Brasil uma leva de escritores
notáveis: Jorge Amado, Graciliano, Rachel, Amando Fontes, Lins do Rego e
outros. É sempre nos períodos de repressão, censura e cala-boca que a arte
subterraneamente se revigora, evolui e encontra novos caminhos. É o que
acontece, agora. Vivemos uma fase de auspiciosa e desinibida criação literária.
Lui:
Então diga o que acha da literatura atual?
Marcos:
Temos grandes valores, alguns ainda no início de grandes voos. Posso citar
alguns: João Antônio, Loyola, Mafra Carboniere, Waldyr Nader, Aguinaldo Silva,
Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Márcia Denser e muitos outros. O mal, a meu
ver, é que muitos se deixam atrair pelo realismo fantástico, imitando Gabriel
Garcia Marquez e Cortázar, quando o caminho me parece ser o da realidade
fantástica. Temos todo um território com seu presente e o passado para
explorar, e basta olharmos para frente para vermos nossos temas e estórias.
Lui:
E você, como se situa no contexto?
Marcos:
Sou um escritor do asfalto que tenta reabilitar o prazer de se ler uma boa
estória. Não estou defendendo a estória pela estória, como Maugham, mas acho
que um romance deve ser mais que um exercício de estilo. O leitor quer mais, e
não é nenhuma desonra satisfazê-lo.
Lui:
Você se julga um autor nacional, já que usa temas universais?
Marcos:
Nunca serei brasileiro no sentido em que foi José Lins do Rego. Sou um escritor
metropolitano, não por escolha mas por determinação do meu atestado de
nascimento. Não serei um “espanta-leitor” como o cáustico João Antonio apelidou
os escritores de laboratório.
Lui:
Você aparece na Extra-Realidade Nacional
como um dos malditos. Julga-se um deles?
Marcos:
Não aceito a denominação caso ela surja como mero atrativo promocional. No
entanto, O Pêndulo da Noite não pode
ser lido pelos que se deleitam com água-com-açúcar. Por falar nesse livro, Mustang Cor de Sangue, um dos contos,
está sendo filmado e parece que sairá coisa boa.
Lui:
E as editoras? Como procedem com o escritor?
Marcos:
Quem se mete com livros geralmente é gente honesta. Os malandros preferem lidar
com outros objetos. O que sucede é que frequentemente as editoras abrem
falência e, quando as editoras liquidam, os direitos autorais evaporam. Isso já
me aconteceu duas vezes, e deve acontecer com a maioria dos escritores. Na
verdade, há poucas editoras sólidas, que tem condições de prestar contas com
pontualidade. Ainda permanece a crença de que publicar um livro é um grande favor
que se faz ao autor. Mas a culpa, faço questão de frisar, não cabe a editores,
mas à situação de indigência do livro no Brasil.
Lui:
Como você acha que se deveria fazer para popularizar o livro?
Marcos:
Na marra. Foi o que eu disse. As emissoras de rádio e televisão deveriam ser
obrigadas a difundir o livro, já que não fazem com vontade própria. Poucos,
como o Ney Gonçalves Dias e o Fausto Canova em São Paulo, fazem promoção de
autores de livros. As emissoras deveriam ter um horário para essa divulgação,
retomando a linha dos programas do inesquecível Cid Franco. As editoras não
dispõem de recursos para pagar publicidade. Mas tudo isso seria solucionado se
existisse um Ministério da Cultura, plano que se discutiu e abandonou. Educação
é uma coisa, cultura é outra.
Lui:
A profissão de escritor é então marginal?
Marcos:
Pior que isso: não é uma profissão. Para alguns autores é um hobby; para outros
uma compulsão. Pode ser um vício cujo tratamento as ditaduras geralmente fazem
com prisão, e pancada. No Brasil o escritor exerce outras profissões para
viver. Catador de papel é uma delas. Parte vai para a publicidade, para os
empregos públicos e profissões liberais. Mas o status de milionário é, sem
dúvida, o que melhor convém a um romancista, mesmo que lute por reivindicações.
Uma mocidade sofredora e uma maturidade cínica e confortável é a grande receita
para o gênio.
Lui:
Você acredita que a literatura brasileira terá vez no cenário mundial como já
tem a de outros países sul-americanos?
Marcos:
Bem, o Jorge é um sucesso em muitos países. Mas ele é uma espécie de Carmen
Miranda da literatura, representa o exotismo do Brasil, e o que escreve
corresponde à imagem que se faz do nosso país lá fora. Quanto aos modismos
vigentes, dificilmente terão o mesmo êxito, pois estarão chegando atrasados.
Mas acredito que alguns, os mais originais, e os outros que revelam outros
aspectos do Brasil possam chegar lá. Porém tudo isso é muito lotérico e minha
bola de cristal quebrou-se na última mudança.
Lui:
Como você faz para escrever?
Marcos:
Sento e escrevo. Ás vezes escrevo de pé. Mas quase sempre e obsessivamente da
esquerda para a direita. Anotem, novatos.
Publicado
originalmente na revista Lui número 15 em junho de 1978
Um comentário:
Mto bom! Parabéns por recuperar essa entrevista! abs
Aguilar
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