Capítulo 5
“O JOGRAL” CONTINUA
Por Marcus Pereira
O que aconteceu depois,
se importa ou não importa, eu não quero lembrar. Carlos morreu no dia 3 de
dezembro de 1970. Logo em seguida, retomei a gravação do seu disco e, para
termina-lo, convidei dois cantores muito ligados ao Carlos e à sua obra: Adauto
Santos e Emílio Escobar. Ouvi, no estúdio, com amplificadores de 200 watts e em
grandes alto-falantes, as três faixas que Carlos houvera gravado e os
play-backs. Foi a mais dura prova a que todos fomos submetidos. A todo momento,
a gravação tinha que parar, porque alguém entre nós não tinha condições de
prosseguir. E no dia 30 de dezembro de 1970 eu escrevi sua contracapa, que
transcrevo a seguir:
“Carlos, meu velho,
Terminamos, afinal o
seu disco. Desculpe retomar assim o nosso diálogo, mas, não fosse a sua
teimosia, e este disco poderia ter sido feito antes. Mas você, com aquela
história de deixa para lá, ao longo de todos estes anos, vai ouvi-lo não sei em
que circunstâncias. A gravação foi trabalhosa, com repetições intermináveis para
chegar àquilo que acreditamos ser o que você tinha pensado. Não foi fácil para
o Adauto e o Emílio descerem até o seu tom, no qual foram gravados os
playbacks. Mas o Válter, com aquele chicote de ternura nas mãos, nos fustigava
a todos. Tereza acompanhou tudo também, atenta à divisão, à dicção. Todos nós
ainda muito embriagados de tristeza, talvez um pouco sobressaltados ainda,
aquela descrença burra iludindo a gente.
No mais, nem sei o que
dizer. ‘O Jogral’, aquela enchente de sempre. Aluísio correu à noite outro dia,
não tinha quase ninguém em lugar nenhum lugar. Mas lá, o empurra-empurra de
sempre. O pessoal está dando tudo: o Trio, Mário, Geraldo, todo mundo. Eu
pretendo voltar, não voltei ainda, tenho medo de esquecer. Mas o Válter, logo
depois, esteve lá e me disse: Estava aquela paulera! Ah!, antes que eu me
esqueça, obrigado pelo amigo que você nos deixou, o Fiore. Não preciso te dizer
nada, apenas que estamos de olho, pra ele não cair em outra estafa. Outra
coisa: Jorjão perdeu sua gargalhada, e ninguém sabe onde. Temos estado sempre
com a Martinha, ela vai tocando, assumiu já o leme e estão firmes as suas
pequenas mãos. A foto da capa foi ela quem fez. Reinaldo e Teresa chegaram um
pouco atrasados – é o que eles pensam – mas você sabe que eles estão entre os
que chegaram primeiro. Paulinho está pra chegar do Norte, acho que não sabe de
nada, a gente precisa dar um jeito, mas não sabemos que jeito. Ilse, as
meninas, estavam conosco. Maria Antônia também.
Todo dia volto para
casa, pego meu uisquinho, ponho um disco na vitrola (a editora Abril reproduziu
uma fotografia sua entregando a ‘Ordem Jogral’ pro Lupicínio, não sei se
cheguei a te contar) e olho para o seu velho violão pendurado na parede. Parece
que ele te faz as vezes e me diz “oba”!, como foi sempre. Agora eu paro, porque
não há quem consiga escrever chorando.
Marcus”.
PS: Estivemos em sua
casa naquele dia mesmo e, logo na entrada, Carolina viu a sua coleção que ela
dirigiu. Ela ficou olhando longamente, mas não disse nada, nem eu perguntei”.
Quando Carlos Paraná
morreu, “O Jogral” estava no auge. Durante sua doença e de Marta – que só se
recuperou depois de sua morte, perdendo a criança que gerava – o Fiore assumiu
a administração. O inventário foi longo e complicado porque o Carlos, que não
teve filhos, tinha como herdeiros seus pais que deram procuração a dois filhos,
irmãos de Carlos. Eu sabia que só Marta e Fiore tinham condições de prosseguir,
já conhecia a garra e a seriedade deles. Mas o “Jogral” era aparentemente um
negócio muito lucrativo e é muito difícil fazer uma partilha de bens quando
entre eles figura um bem não convencional, de avaliação difícil, porque seu
valor, na verdade, era determinado pelas condições das pessoas que sucedessem o
Carlos na direção. Omito agora detalhes desnecessários para registrar que,
afinal, depois de um ano de disputa, “O Jogral”, na partilha de bens realizada,
ficou para Marta Paraná, que manteve Fiore como sócio, com vinte e cinco por
cento do capital. Graças a essa raríssima mulher que, renunciando-se, porque
não gostava da vida noturna assumiu a direção do “Jogral”, é que permanece vivo
o que Válter Silva, na “Folha de São Paulo” de 14 de agosto de 1976 chamou de
“minitemplo da cultura popular”.
Como fizera durante
toda a doença de Carlos – quando toda a administração do “Jogral” ficou a seu
cargo – o Fiore prosseguiu levando o barco pra frente depois que o Carlos
morreu. A morte de Carlos Paraná traumatizou os setores pensantes e sensíveis
da vida noturna. Reproduzo os títulos de algumas notícias que a imprensa de São
Paulo publicou: “Jogral e boêmios de luto, por Paraná” (Jornal da Tarde de
4/12/1970). “Luís Carlos Paraná morre aos 37 anos em São Paulo quando fazia
mais sucesso” (Jornal do Brasil, 4/12/1970).
Carlos morreu quando “O
Jogral” estava no auge do sucesso e o caráter pessoal no relacionamento dos
artistas e do Carlos com os frequentadores, no tempo da Galeria Metrópole, já
tinha dado lugar a um relacionamento impessoal e “O Jogral” já tinha passado a
ser atração turística e a ser incluído em roteiros, por limitados que fossem.
Na verdade, “O Jogral” já tinha adquirido velocidade própria e foi isso, mais a
dedicação e a seriedade do Fiore, primeiro e, depois, da Marta também, que
permitiram que o barco suportasse a perda de seu capitão, que muitos
consideravam insubstituível. Muitos artistas logo se afastaram, passaram a se
apresentar em outras casas, outros fundaram sua própria casa. Mas o “Jogral”
resistiu, inclusive resistiu àquilo que poderia ter sido a pá de cal, se
estivesse realmente morto, e que foi uma página inteira publicada no Jornal da
Tarde de 7 de outubro de 1971, o mais importante vespertino de São Paulo e
orientador do seu grande mercado consumidor de entretenimento e cultura, sob o
título “Vende-se uma grande saudade por 5 milhões de cruzeiros”. A seção “São
Paulo Pergunta”, editada pelo jornal, publicou no dia 19/10/71, uma carta minha
e outra de Marta Paraná, defendendo o que “O Jogral” representava, e
representa. Transcrevo-as a seguir:
“Sr. Redator: Resolvi,
hoje, á vista da matéria publicada pelo Jornal da Tarde com o título “Vende-se
uma grande saudade por cinco milhões de cruzeiros” quebrar o segredo de uma
quase confidência, - para ter autoridade de dizer o que se segue. A matéria a
que me refiro pretende contar a história do “Jogral”, uma boate de música
brasileira quase legendária neste nosso país de efemeridades. A confidência é a
seguinte: certa vez Carlos Paraná – fundador e dirigente do “Jogral” até dezembro
do ano passado, quando morreu, entregou-me um violão com sua capa de piano,
dizendo: ‘Isto é pra você’ E eu retruquei: ‘Mas Carlos, eu já tenho violão’ –
Então – ele esclareceu ‘Tem uma coisa dentro da barriga dele’. Não foi preciso
fazer uma cesariana, porque a barriga dos violões já vem abertas para essas
eventualidades. Lá dentro encontrei um bilhete: ‘Marcus – este meu companheiro
de tantos anos, parceiro de minhas canções de amor até aqui, eu gostaria de oferece-lo
a mulher amada. Mas ela passou e passará sempre. Fica então para você, porque
os amigos passam menos e até há os que nunca passam’. Carlos Paraná até então
(março de 1967) tinha carradas de razão para não crer nas mulheres. Mais tarde
encontrou a mulher de sua vida que, com alguns amigos, vem mantendo acesa uma
chama que o Carlos, um dia, acendeu e que, de repente, se espalhou por ai: a
música popular brasileira.
Aquele bilhete – mais do
que uma dedicatória – é um mandato. E é no exercício desse mandato que venho à presença
de V. V. Ressalvadas inúmeras impropriedades, digamos, históricas, em relação
ao “Jogral” (não ficava ao lado do Sand-chirra, apenas no mesmo pavimento,
Caetano não era frequentador assíduo do "Jogral" e muito menos compôs
qualquer música lá – e muitas outras), o que me parece grave – principalmente por
se tratar do Jornal da Tarde que pertence ao mais idôneo grupo da imprensa
brasileira – é que a matéria contém inverdades que podem trazer, agora e no
futuro, graves prejuízos para o “Jogral”. Isto seria igualmente grave se
referisse a qualquer empresa ou pessoa. Mas, em se tratando do “Jogral”, o fato
acumula uma gigantesca injustiça com a obra de um artista extraordinário que
foi Carlos Paraná. Eu o conheci como cantor diarista (ou noitista?) na boate ‘Open
Door’, na Galeria Metrópole, em 1964. Surpreendeu-me ouvir, numa boate das
chamadas facilidades, alguém cantar uma música de sua autoria com um verso como
“bom seria se pelo amor/ nunca mais se colhesse a flor – pois que culpa uma
rosa tem – se alguém gosta de alguém”.
Nossa amizade, que não
passará nunca, apesar de imobilizada pelo acaso da morte, começou aí, exatamente
nesse verso. Em 1965, Carlos Paraná decidiu abrir uma boate e como uma
sociedade comercial precisa de sócios, convidou-me. Ele ficou com noventa e
nove quotas e eu com uma. Pode parecer mau negócio, mas, confesso, foi o único
bom negócio que fiz na minha vida. Com dividendos, e filhotes e reavaliações,
eu tenho milhões de ações de saudade, nomitativas e intransferíveis. É
importante, agora dizer uma coisa: quando Carlos Paraná fundou o “Jogral”, a
música consumida na praça era o ‘iê-iê’, a macaquice nacional da ocasião. Era a
música de todas as boates, música que predominava nas programações do rádio.
Para ganhar dinheiro, o negócio era entrar na onda. Mas Carlos Paraná era
desses homens que sabem colocar o dinheiro no lugar que ele merece. E o “Jogral”
venceu. E cresceu. Com ele nasceram e cresceram muitas boates de música
brasileira. É preciso dizer mais: quando Carlos fundou “O Jogral” muitos amigos
excepcionais não tinham trabalho e amargavam a consciência trágica do talento
útil para a arte, mas inútil para a vida. Graças ao Carlos, hoje dezenas, quem
sabe centenas de artistas, recebem pela sua arte, pelo menos, a quantidade
necessária de proteínas para mantê-la viva.
Por isso tudo, o “Jogral”
que é onde repousa o espírito do Carlos, não merecia a reportagem do Jornal da
Tarde. Mesmo que sua memória não merecesse o respeito que acho que merece – por
tudo que ficou dito – merecia pelo menos a verdade elementar – direito que não
precisa ser requerido. E não é verdade que ‘dentro do Jogral quase vazio,
apenas a flauta cansada, os frevos de Hilton Acyolli’, porque “O Jogral” nunca
está vazio, e disso há milhares de testemunhas. E a flauta do Mané – sobrinho de
Pixinguinha – assoprando as coisas menos cansadas de nossa gente e de nossa
música – é a melhor flauta popular do Brasil, segundo Baden. Diz ainda o
precipitado repórter que o “Jogral” está no fim. Isso diz-se, sim. Mas diz-se
nas pequenas patotas de outras boates, concorrentes do “Jogral” e que vivem do
pão que Carlos fez com a farinha da sua fé e o fermente do seu trabalho. O
movimento do “Jogral” caiu um pouco, isto é verdade. Primeiro porque a casa
sofreu a inevitável consequência da mudança de direção e, em segundo lugar,
porque muitas boates, mais de dez, disputam com o “Jogral” o mercado que ele
criou. Isto pode ser provado pelo exame de seus livros desde agora abertos para
o exame do repórter.
Antes de terminar,
gostaria de prestar um serviço ao repórter que, referindo-se a Paulo Vanzolini
como um dos mais assíduos frequentadores do antigo “Jogral”, diz o seguinte: “O
mais conhecido, Paulo Vanzolini, sambista de Volta por Cima e dono de um grande
repertório de desafios e repentes”. Lamento Carlos não estar entre nós, porque
ele tinha um grande senso de humor. E não é preciso razão maior para um
sorriso, daqueles que a gente mastiga de tão gostoso, quando alguém,
principalmente um jornalista, fala em repertório referindo-se a gêneros de
improvisação?
Para terminar esta
carta cuja publicação solicito, quero que o Jornal da Tarde ponha à venda minha
saudade, a dos amigos, a de Marta. E que a anuncie nos seus ‘Classificados’ em ‘Negócios
e Oportunidades’. Mas nós queremos nosso pagamento em moeda incomum, a saldo de
dúvidas. É a moeda da lealdade, do respeito ás coisas que estão a salvo da
ferrugem da maledicência, da intriga e dos pequenos ressentimentos. Essa moeda
ninguém tem no bolso, mas alguns têm no coração.
Marcus Pereira, Capital”.
Reproduzo, a seguir, a
carta enviada por Marta Paraná:
“Sr. Redator: Com
relação à reportagem publicada neste jornal, no dia 7 de outubro, sob o título ‘Vende-se
uma grande saudade por cinco milhões de cruzeiros’, venho expor os seguintes
fatos e solicitar seja a minha carta publicada na íntegra.
No dia 6 de outubro fui
procurada por um repórter desse jornal. Como qualquer um faria, foi recebido sem
maiores preocupações, já que vinha em nome de um jornal sério e conceituado
como esse. O rapaz, a quem eu nunca tinha visto na vida, nem no “Jogral”
pediu-me informações sobre uma possível venda do “Jogral”. Ante minha negativa,
disse que sairia um pequeno desmentido no dia seguinte, “uma pequena nota”.
Na noite seguinte
deparo, surpresa, com o tamanho e as inverdades da reportagem.
Pretendeu o repórter
fazer uma melancólica reportagem sobre o “Jogral” que nunca tinha tido antes a
honra de aparecer em uma página inteira do Jornal da Tarde, nem nos tempos de
Luís Carlos Paraná. Mas muito mais melancólico ficou apresentar dessa maneira
um lugar, que muito mais que uma boate é uma casa de cultura através da Música
Popular Brasileira. Uma casa que revolucionou a nossa noite, numa época em que
imperava as discothèques e a música estrangeira.
Se aparecer um jornal
que pretenda ser igual ao Jornal da Tarde, que revolucionou o jornalismo
brasileiro, não vai passar de uma imitação. E o mesmo se dá com o “Jogral”.
Todas as outras casas de samba citadas pelo repórter não passam de crias do “Jogral”.
Não pode haver ‘substituto para o velho bar’ e nem “O Jogral” começa a se mudar
para outra boate.
O repórter fala em
triste tom saudosista. Mas quem pode ter mais saudade do que eu dos tempos do “O
Jogral” de Luís Paraná, meu marido. Tenho saudades também dos nossos bons
músicos que se passam para umas casas e abrem outras. Mas o “Jogral” fica
sempre feliz quando um músico ou cantor que depois disso procura seus próprios caminhos,
deixando vago um lugar para novos valores.
Comercialmente falando,
como pode um “Jogral” tão ‘triste e vazio’ obter rendimentos para pagar tantos
cachês diários e mais os seus correspondentes em férias e décimo-terceiro
salários e todos os diretos exigidos pela lei?
Todas as casas de samba
correm atrás do nosso pessoal. Gente do “Jogral” tem futuro garantido.
Quantas e quantas vezes
Paraná já me contava, nos tempos de namoro, dos apertos que passou sem ter um
lugar onde cantar, sem contar com um cachê. Também por isso ele criou o “Jogral”:
um lugar de trabalho para músicos. E que ampliou ainda mais o mercado
profissional.
O que o rapaz colocou
mal jornalisticamente, é a nossa maior glória – renovar.
“Comenta-se que o
Jogral está no fim”. Quem comenta? Ele?
Que tristeza, que
melancolia dá na gente quando vê que existe alguém sem conhecimentos
suficientes que diga que está cansada a flauta do Mané, o melhor músico
brasileiro no gênero, e que Paulo Vanzolini é “dono de um grande repertório de
desafios e repentes” (sic).
Fala o referido
repórter de ex-frequentadores famosos: Caetano – quando começou. Chico Buarque –
quando começou. Mas ele, o repórter, nem se detém com gente que está no “Jogral”
agora, nas mesas e que daqui a quatro ou cinco anos também não estará mais
aqui. Estará famosa e longe.
Também não era preciso
matar o meu marido antes do tempo. Ele morreu em 3 de dezembro e não em
novembro. Também não tinha o direito de desapontar os leitores do Jornal da
Tarde e o público do “Jogral”, porque na noite em que saiu a reportagem, várias
pessoas apareceram e telefonaram perguntando: “Oba quer dizer que agora eu vou
poder entrar no ‘Jogral’ na sexta ou no sábado?
Espero ter deixado bem
claro o respeito que tenho pelo Jornal da Tarde, que sempre viu no “Jogral” o
que ele realmente é: mais que uma boate, é uma casa de cultura através da
Música Popular Brasileira.
Como já disse
anteriormente, neguei ao repórter a possibilidade de vender “O Jogral”. Mas,
pensando nos leitores inteligentes do Minduim e do Zé do Boné, respondi em
brincadeira non sense, dizendo que só venderia por cinco milhões (cinco bilhões
velhos, minha gente). Infelizmente o repórter, que não assina a matéria, não
estava à altura dos leitores do Jornal do Tarde, e nem da minha brincadeira.
Ele levou a sério, e ainda deu manchete, como se o preço da venda do “Jogral”
incluísse o passe do Pelé...
Marta Greiss Paraná,
Capital”.
Marta Paraná não
entregou os pontos, ao contrário. Como ficou dito antes, Carlos já cogitava
mudar “O Jogral” para um lugar ainda maior, onde pudesse montar um estúdio de
gravação pois qualquer que fosse o espaço físico de sua trincheira cultural,
muito maior era o espaço espiritual que a sua proposta musical tinha aberto.
Para preenche-lo, só o disco. Carlos chegou a alugar um imóvel, à Rua Maceió,
66, começou a reforma, mas não pôde prossegui-la, porque não pôde prosseguir.
Depois que Marta recuperou-se, retomou a caminhada. Carlos morreu em dezembro
de 1970. Dois anos depois, em dezembro de 1972, “O Jogral”, graças ao empenho
quase heroico de Marta Paraná e de Fiore, foi transferido para a Rua Maceió. No
começo desta fase, eu ia pouco ao “Jogral”, mas me lembro do Regional do
Evandro, do Hilton Accyoli, do Zé Neto. Lembro-me de Betina, que agradava mais
do que chupeta em berçário, como dizia o velho Stanislaw Ponte Preta. Lembro-me
também de um quase menino que tocava surdo, o Papete. Hoje, 1976 é um dos
principais artistas do “Jogral” e do Brasil, porque alguns dos maiores artistas
do Brasil estão no “Jogral”, como Evandro e Manezinho da Flauta. Em 1975,
Papete gravou um disco para “Discos Marcus Pereira”, “Papete, Berimbau e
Percussão”. J. Ramos Tinhorão prometeu-lhe uma página inteira no Jornal do
Brasil quando ele gravar o segundo, tal o apreço que tem pela arte
inacreditável do Papete. Hermeto também foi contratado do “Jogral” na fase em
que Marta e Fiore comandaram o barco.
As minhas relações com
Marta Paraná, depois que Carlos morreu, estreitaram-se em decorrência da
participação que tive nos entendimentos entre os herdeiros e também porque
Marta tinha assumido, junto com o Fiore, a direção do “Jogral” e eu, com a
ausência de Carlos, era fundador remanescente. Eu visitava-a com frequência,
recordávamos as nossas relações com Carlos, Marta me deu acesso a seu arquivo e
muitas vezes eu ficava longamente examinando os documentos que ele continha e
que contavam a história da grandeza de Carlos Paraná: cartas de amigos, letras
de músicas, ideias de promoções e para repertório, livros, coleções de
fascículos, de revistas. Carlos era autodidata e seu esforço e seu talento
compensaram a escola que a vida lhe negou. Certa vez, Marta pediu-me licença, interrompeu
nossa conversa e dirigiu-se a um quarto de seu apartamento, que Carlos usava
como escritório. Quando voltou trazia na mão um pequeno embrulho, que me
entregou. Abri-o e, perplexo, vi um relógio de ouro, valiosíssimo, a primeira
coisa que Carlos comprara logo que sua vida melhorou. O valor daquele relógio
foi uma compensação que Carlos se deu por tantos anos de privações e sofrimentos.
E ela disse: - “É pra você”. E eu respondi que não podia, de jeito nenhum,
aceitar aquele presente de tanto valor material e afetivo. Mas ela insistiu -: “Você
é a única pessoa que merece esse relógio, por favor não me prive desta alegria”.
Eu senti que não cabia insistir em recusa-lo. Desde então trago no meu pulso a
lembrança do meu grande amigo, que marcou suas horas e cumpriu por tanto tempo
sua tarefa muda de cortar o tempo nos pedaços em que precisamos dele, e no caso
do Carlos, cortando essas fatias de tempo com precisão e sabedoria porque
Carlos sabia que o que lhe restava de vida não era suficiente para a dimensão
dos seus sonhos. Esse relógio cumpre comigo, hoje essa tarefa. Pelo que tenho
lido e ouvido em relação ao trabalho que represento, tem sido exímio o trabalho
deste colaborador precioso. Seu valor material – muito grande – é infinitamente
menor que seu valor espiritual. Cada segundo que fabrica tem uma origem a tem
um destino, porque um dia eu combinei com o seu proprietário original o que
fazer com o tempo.
Em decorrência de
viagens, acúmulo de trabalho, eu passava, às vezes, algum tempo sem ir ao “Jogral”.
Certo dia, em 1973, passei pelo “Jogral” e encontrei o Fiore preocupado porque
Marta estava ameaçada do esgotamento nervoso. Procurei-a então e me inteirei do
estado de desgaste físico e psicológico a que Marta tinha chegado naqueles anos
todos. Ele me transmitiu a sua decisão – ou a sua necessidade – de deixar “O
Jogral”.
Nessa ocasião eu estava
com problemas financeiros e empresariais seríssimos, tinha decidido fechar a
agência de propaganda que dirigia há quinze anos, “Marcus Pereira Publicidade”,
e abrir nova empresa “Discos Marcos Pereira”. Eu tinha que dar atenção, então,
a um recém-nascido e um agonizante. E assumi um enfermo, “O Jogral”, para que
ele não fechasse. Quando eu disse à Marta que, para não fechar, eu compraria “O
Jogral”, ela me respondeu com a generosidade que eu já conhecia, mas que ainda
me surpreende: “Mas não tem sentido nenhum você comprar o que é seu!” Fi-la
ver, então, que se, espiritualmente, eu concordava com ela, materialmente foi
um dos poucos bens que lhe tocou como herança do seu marido e que eu não
admitiria de forma nenhuma vir a ser acusado de estar me aproveitando da relação
que tínhamos, desdobramento de minhas relações com o Carlos. Insisti que me
desse um preço e ela deu-me um preço insignificante, era como me dar de
presente. À vista disso, procurei o Fiori, que tinha 25% na sociedade e que se
dispunha também a vende-los, e pedi que me desse seu preço. Sua avaliação, como
vendedor, seria para mim insuspeita. Ele avaliou em Cr$ 300.000,00 e “Discos
Marcus Pereira” comprou, por esse preço, 75% das quotas. Os restantes 25%
Martinho da Vila comprou, convidado por mim. Nós assumimos a direção do “Jogral”
no início de 1974.
É preciso esclarecer
que, a partir da morte do Carlos, “O Jogral” começou a cair. Em primeiro lugar
porque, ainda que ele tenha se afastado como artista, sua presença era
fundamental para manutenção do barco no rumo certo, muitos frequentadores
tinham ligações estreitas com ele, seu conhecimento do meio musical e artístico
era fundamental para manter o repertório da casa a um só tempo tradicional e
atualizado. Ele mesmo houvera previsto que o sucesso do “Jogral” criaria
seguidores, como criou, muitos saídos do próprio “Jogral” depois da sua morte.
Certa vez, quando proliferaram as casas de boliche, levando todos à falência,
ele previu que com as “casas de samba”, como passaram a ser chamadas as casas
inspiradas no “Jogral”, iria contecer a mesma coisa. Na verdade, logo se
contavam ás dezenas as “casas de samba” da cidade, muitas apresentando muito
mais barulho do que samba. Isto se refletiu imediatamente no movimento do “Jogral”.
Por outro lado, fiéis ao espírito que Carlos deu à casa, seus sucessores –
Marta, eu e o Costa, agora – nos recusamos a resolver os problemas do “Jogral”
com a dispensa dos músicos. Primeiro, para não atingir a qualidade musical,
depois porque sabemos que é muito difícil para o músico arranjar trabalho. As
dispensas que foram feitas, nas fases posteriores a do Carlos, ou foram por
razões disciplinares ou artísticas ou quando fomos obrigados a sacrificar um ou
dois para salvar os demais.
O fato é que, com a
morte do Carlos, “O Jogral” deixou de ser um bom negócio e depois passou a ser
um mau negócio. Mas eu me recusava a fechá-lo, seu valor afetivo e espiritual
para mim era muitas vezes maior do que qualquer prejuízo material que ele
pudesse dar. Depois, a luta que vim a enfrentar para levar adiante o projeto de
“Discos Marcus Pereira” – na verdade o projeto meu e do Carlos, como ficou
documentado no que eu já disse – era de tal porte, as dívidas que fui obrigado
a contrair eram de tal monta, que os movimentos que fiz para compra-lo mais os
prejuízos que veio a dar depois não chegavam a agravar de forma expressiva esse
quadro. Muitas vezes, confesso, o peso de tudo era excessivo – e eu vacilava,
pensava em vender, admitia até fechar. Porque “O Jogral” era também uma fábrica
de problemas: artísticos, humanos, financeiros, comerciais, legais e fiscais.
Na fase em que “Discos Marcus
Pereira” assumiu o controle da sociedade proprietária do “Jogral” foram
fundamentais a colaboração do meu ex-sócio Aluísio Falcão – que assumiu a
direção artística – e de Martinho da Vila, que contribuiu com precisas
sugestões na área artística. Apresentamos, então uma longa temporada com Carmen
Costa. Sob nossa direção, o “Jogral” foi inaugurado com uma temporada de
Heloísa Buarque de Holanda, que eu conheci em 1959, cantando para seus amigos
na “Cantina do Marinheiro”, no Brás. Depois, ela casou-se com João Gilberto,
morou nos EUA muitos anos e, voltando, escolheu “O Jogral” para reiniciar sua
carreira. Nessa fase apresentou-se também, numa temporada, Manuel da Conceição,
o famoso violonista “Mão de Vaca”.
Mas os problemas de “Discos
Marcus Pereira” se agravaram, meus dois ex-sócios se afastaram e eu fiquei
sozinho. Em maio de 1975, uma complicação renal me levou a uma operação, fui obrigado
a extrair um rim, o pós-operatório complicou-se e eu acabei ficando dois meses
de cama. Nessa ocasião estava na gerência do “Jogral” José Eduardo Costa, que
eu conhecera anos antes, através de minha ex-sócia. Com alguma experiência em
administração de casas noturnas, Costa interessou-se pela função com o objetivo
de conhecer mais a fundo o funcionamento e os problemas do “Jogral” para
eventualmente compra-lo e dar, assim, aproveitamento à energia da sua juventude
de cinquenta e oito anos e à sua vontade teimosa de fazer coisas. Nesta altura,
um grave acidente cardíaco afasto-o, mas Deus e o Dr. Sílvio o recolocaram no
seu posto. Ele está lá, agora. Eu, como sempre quis, tinha a propriedade
espiritual, 10% do material, e tenho uma segunda casa sem pagar aluguel. Eu e
os meus amigos, que o Costa considera também seus.
Mas o que é mais
surpreendente é que Costa, sem maior familiaridade anterior com cultura
popular, absorveu de tal forma o espírito do “Jogral”, que hoje é mais ortodoxo
do que eu. Talvez seja mais ortodoxo do que seria o próprio Carlos, no sentido
do respeito à linha musical da casa, do respeito e do carinho pelo artista, da
responsabilidade, que assumiu com relação ao papel pioneiro e de abrigo ao
talento de artistas muitas vezes esquecidos ou injustiçados do nosso mundo
artístico. Nada poderia expressar mais essa atitude do que a longa temporada
que a excelente Marília Medalha fez no “Jogral” e que a recolocou na cena
musical. E Zé Keti, e Os Três Morais, e Inezita Barroso, que considera o último
show de sua temporada em junho de 75 o ponto mais alto de sua longa e
importante carreira artística. Estão lá – e faz sete anos – Evandro e seu
regional com Zequinha (pandeiro), Pinheiro (violão), Lúcio (cavaquinho) e Artur
(flauta). Está lá Ana Maria Brandão, que já soma cinco anos de trabalho no “Jogral”,
e que eu e muitos observadores consideramos uma das maiores cantoras do Brasil.
Vou gravar brevemente um disco com ela e não tenho dúvida quanto ao seu
sucesso. Quem viver, verá. Está lá Papete, há seis anos, sem um dia de
interrupção. Está lá, de novo, Manezinho da flauta que, como os mágicos,
esconde pássaros nos lábios. Está lá, sobretudo, o espírito de Carlos Paraná.
“O Jogral” mantêm-se, num país de efemeridades, há onze anos. Nesses anos todos, muito mais tirou do que deu aqueles que estiveram ou estão em seu comando, no sentido material da expressão. Á exceção de três anos, de 67 a 70, os demais foram de plantio só. Em favor da cultura brasileira, do músico, do compositor. E isso que sua existência proporcionou remunera largamente todos os esforços. Quem passa algumas horas no “Jogral” e assiste à apresentação de artistas excepcionais, numa sucessão que parece não acabar mais, não pode fazer ideia do esforço que há por trás. Grandes artistas e músicos que o visitaram não esconderam seu espanto diante de interpretações magistrais. Recentemente, um musicólogo brasileiro que passara seis anos nos Estados Unidos, comentou com entusiasmo uma das apresentações do Evandro e seu bandolim que, tocando um instrumento com braço muito estreito, não “sujou” uma nota sequer durante uma hora de apresentação. E chamou nossa atenção para o fato de que Evandro não fica nada a dever aos grandes instrumentistas de corda do mundo. Depois, extasiou-se com a flauta do Manezinho e com a espontaneidade de seus improvisos. É verdade, nós temos no Brasil músicos que podem empolgar as mais exigentes plateias do mundo, como Valdir Azevedo, Abel Ferreira, Raul de Barros, Carlos Poyares, Papete, Pernambuco do pandeiro – e esta relação é apenas exemplificada. Tenho levado ao “Jogral”, depois de encerradas as sessões de gravações, os artistas contratados de “Discos Marcus Pereira”. Recentemente, Antônio José Madureira, que lidera o Quinteto Armorial, disse-me que o “Jogral” era muito mais um teatro musical do que uma boate e que nunca imaginara que tantos músicos e artistas de qualidade pudessem se reunir num só lugar.
O trabalho que iniciei
com Carlos Paraná, que prossegui com Aluísio Falcão e que hoje divido com minha
mulher Carolina Andrade, teve sua origem no “Jogral”. Ele terá a partir do
momento em que esse trabalho se fortalecer e se desenvolver – no Brasil e no
Exterior – através de minha associação com a “Copacabana” – no “Jogral” a sua
tribuna, a sua face viva. Os artistas de “Discos Marcus Pereira”, muitos já
artistas do “Jogral”, farão dele a sua casa, como é, há muito, a minha casa. E
de seu palco e de seu público, o seu palco e o seu público, como antes fizeram
Martinho da Vila, Jorge Ben, Gil. E isto será possível porque houve, primeiro,
o Carlos. Depois, Marta e Fiore. E, omitindo o meu nome, agora há José Eduardo
Costa. O “Jogral” viverá, junto com a cultura do povo do Brasil, grandes
momentos que se eternizarão quando essa cultura se eternizar, como muitos preveem.
E para viver conosco esses momentos, eu convido Você. O Costa está no “Jogral”
a partir das nove da noite todos os dias e ele representa tudo o que o “Jogral”
representa e que, creio, ficou documentado no relato que encerro.
Para terminar, transcrevo
o que escreveu na Folha de São Paulo de 14 de agosto de 1976 o conhecido
crítico e descobridor de astros e estrelas Válter Silva: “Luís Carlos Paraná
que, juntamente com Marcus, fundou esse minitemplo da nossa cultura popular, lá
em cima deve estar tirando um repente de contentamento por saber que seus
sonhos são a realidade de hoje”.
E, por esta via, quero
responder às últimas palavras que nos disse Carlos Paraná, na hora de morrer,
lamentando deixar tantas coisas por fazer: nós estamos fazendo.
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