Por J.L. Ferrete
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
Vou falar bem
direitinho
Que todo mundo entenda.
Nesta vida de apertura,
Cada qual que se
defenda
Eu também passei
apertos
Que nem cana na
moenda...
Hoje sou chave de
fenda.
(trecho de Dedicado aos
compositores, letra inédita do Capitão Furtado)
Em 1971, quando fomos
apresentados um ao outro por Mauro, seu irmão, estávamos em via de publicar um
trabalho sobre música popular para uma série sobre MPB. Nós já conhecíamos
Ariovaldo Pires de vista, havia muitos anos, e achávamos que ninguém melhor que
o ‘caipira que fala com o coração’ (qualificação que ele próprio havia aceito
desde os tempos de Tupi do Rio) para coordenar e redigir um trabalho no sentido
já mencionado.; A publicação acabou não saindo na série que a editora lançava,
mas a realização conjunta do trabalho iria servir para estreitar-nos em
fraternal amizade. Mais adiante, Ariovaldo nos auxiliaria em muitas pesquisas,
servindo de contato, ademais, com excelentes fontes de informação.
Um de seus maiores
orgulhos era ter feito o ‘hino oficioso’ de Brasília – Brasília, capital da
esperança. “Henrique Simonetti e eu fizemos essa marcha-hino em apenas quarenta
minutos”, disse-nos ele. “Um mês antes de se estabelecer Brasília como nova
capital do país, quer dizer, em março de 1960, gravamos essa composição na RGE
com os Titulares do Ritmo, um trio vocal feminino e grande orquestra. Cheguei a
lacrimejar de emoção, quando pela TV ouvi a marcha sendo executada nas
solenidades de inauguração da nova capital”. O 78 rpm foi lançado em tempo
recorde pela gravadora e conquistou enorme vendagem em todo o Brasil,
encantando a todos por seu conteúdo sem exageros vazios e principalmente pela
letra fácil e acessível.
Pardinho e Tião Carreiro formaram uma dupla que gravou inúmeras canções de Capitão Furtado
No que dizia respeito a
suas composições rurais (ele preferia esse nome a caipira e, como nós,
condenava a expressão sertaneja, achando-a fora de propósito para a espécie),
calculava por alto que houvesse feito mais de mil. Certa ocasião abriu um
caderninho que trazia consigo e fez-nos um inventário de artistas (além dele
próprio) que as haviam gravado: Alvarenga e Ranchinho, Laureano e Mariano,
Palmeira e Piraci, Mariano e Cobrinha, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e
Pardinho, Lourenço e Lourival, Duo Glacial, Duo Ciriema, Irmãs Castro, Irmãs
Galvão, Xerém e Tapuia, Xerém e Bentinho, Ramoncito Gomes, Belmonte e Amaraí,
Tibagi e Amaraí, Tibagi e Miltinho, Abel e Caim, Os Três Xirus, Cerejinha,
Norinho e Ediles Nunes, Os Maragatos, Os Araganos, Conjunto Farroupilha,
Craveiro e Cravinho, Cambuci e Cambuzinho, Moreno e Moreninho, Biá e Dino
Franco, Xandica e Xandoca, Nhô Nardo e Cunha Jr., Borges e Borginho, Trio
Norte-a-Sul, Dairé e Coleirinha, além de seu grande amigo e companheiro
Paraguassu e outros mais, espalhados em rodapés rabiscados.
Quanto à sua intervenção em obras estrangeiras, falou-nos certo dia que estava
intrigado com relação ao famoso Moonlight serenade, de Glenn Miller.
“Essa música nasceu, vivei e prosperou sem letra”, observou. “Fui o primeiro a
criar letra para ela e eu próprio traduzi o título para Serenata ao luar,
gravando-a com os Titulares do Ritmo em português, na RCA Victor, em 1953.
Depois apareceu um tal de Mitchell Parish com letra em inglês e eu, que fui o
primeiro a pôr letra no fox, passei a versionista! Versionista de quê? Verter é traduzir de um idioma para
outro! Considero-me, pois, parceiro de Glenn Miller nessa composição, mas na
hora de receber sou tido como versionista. Você pode entender uma coisa dessas?”.
Ele criticava com indignação, a propósito, o sistema de
arrecadação de direitos autorais no Brasil. “Hoje não sou mais Furtado, sou
Furtadíssimo!”. Afirmava receber importâncias ínfimas até mesmo do exterior,
onde tinha muitas coisas gravadas.
Ao lado das mágoas, houve muitas alegrias também. Por
exemplo, o sucesso do seu rasqueado Paraguayita, pepita de oro (feito em
1944, com Palmeira, e por este gravado em dupla com Piraci, na Continental),
mescla do castelhano com guarani, o qual lançado no Paraguai nessa época,
chegou a ser música predileta do presidente Higino Morínigo, que, desejando
conhecer o autor da letra, convidou Ariovaldo Pires para visitar o país junto
de uma comitiva brasileira.”Morínigo fez até mesmo uma carta de agradecimento
para mim”, contava Ariovaldo orgulhoso. “Negrão de Lima, que era embaixador
brasileiro no Paraguai, na ocasião, chegou a dizer-me que eu havia feito mais
pelo Brasil na época que toda a diplomacia brasileira em muitos anos”.
Outra satisfação: a Roda de Violeiros que divulgou por todo o
país, revelando novos valores da música rural (na época de programações para a
São Paulo Alpargatas), inclusive uma dupla de japoneses, Os Irmãos Kurimori. “O
japonês foi muito importante no desenvolvimento do interior paulista”,
explicava-nos Ariovaldo Pires. “Integrou-se na cultura interiorana e se adaptou
a ela com dócil facilidade. Fiz dos Irmãos Kurimori um protótipo desse oriental
integrado, e para Hiroshi, um deles, escrevi letra onde se narrava a vinda de
um japonês para o Brasil. Hiroshi fez a música e o valseado foi gravado com
nome de Saudades do Japão na Continental, em fins de 1958. Foi um dos discos
regionais mais vendidos do começo de 59!”.
A Roda de Violeiros constituiu, na verdade, profícuo
incentivo paras que revelações da música rural tivessem acesso a gravadoras de
discos, dando oportunidade a um sem-número de bons artistas que ainda estão em
atividade por aí no gênero. Ariovaldo Pires costumava dizer em tom de blague
que havia sido responsável por uma abertura na música rural no decorrer da
década de 1950, não só tirando da desinibição aqueles elementos de valor que se
intimidavam ante a defrontação com a música urbana, como também comprovando que
o gênero interiorano tinha tanto público (ou mais) quanto o chamado citadino.
“A boa música caipira – esclarecia-nos ele – sempre teve milhares de
admiradores. É que, antigamente, essa admiração só tinha meio para
manifestar-se através de arremedos feitos por compositores da cidade! Dizem que
a música caipira é monótona, vale só pela letra, pelo argumento que se
desenvolve. Mas quanta coisa musicalmente monótona também é feita na cidade
grande! E só porque o autor ou o intérprete são prafrentex, a garotada aplaude
delirantemente, esquecendo a bobagem que está acontecendo. O problema é mesmo
de preconceito. Note como a música rural começou a crescer depois dos anos 60.
Modéstia à parte, foi com minha Roda de Violeiros circulando por todo lado que
começou esse crescimento. Andei por dezenas de cidades, circulei por quase todo
este país. Mas, valeu a pena. O resultado está aí, embora de alguns anos para
cá deturpado, desfigurado por aventureiros e enganadores. Estes, porém, são
como chuva de verão. Fazem aquele estrago danado, mas logo vão embora e só
deixam más recordações”.
Em ocasiões diferentes e por cauda do tema que abordávamos,
Ariovaldo Pires deixou escapar revelações interessantíssimas para a história da
música popular brasileira. Ficamos sabendo, por exemplo, que o cantor Blecaute
foi revelação dele no Arraial da Curva Torta, por volta de 1941, e até que esse
nome para o artista foi sua ideia: “Era época de Guerra Mundial e o
black-out, a escuridão, estava em voga. Daí o nome”.
Outra coisa: Adoniran Barbosa começou no Programa de Calouros
da Cruzeiro do Sul, no início da década de 1930, cuja coordenação era de
Ariovaldo e apresentação de Celso Guimarães. Já esclarecemos, inclusive, que
esse nome – Programa de Calouros – foi criado por ele. “Adoniran, cujo nome
verdadeiro era João, não saía do programa – contou-nos Ariovaldo Pires -, já
viciado com a mania de ganhar ou pelo menos disputar prêmios”. Ficamos sabendo,
além disso, que quem conseguiu convencer a direção artística da Copacabana a
gravar Coração de luto, de Teixeirinha foi ele. “Aconteceu por volta de
1961, senão estou enganado. Teixeirinha vinha de um disco fracassado na
Chantecler e ninguém queria dar uma oportunidade pra ele. Tanto insisti que,
enfim, deram-lhe essa oportunidade E que sucesso foi!”.
A partir de 1967, embora aposentado, Ariovaldo Pires
continuava trabalhando intensamente. Já estava funcionando havia algum tempo
como coordenador de música em geral (mas música caipira em particular) e
versionista na Editora Fermata do Brasil, onde recebia um pro labore fixo:
salário mínimo e o aluguel que deixava de pagar pela sala que ocupava. Nesse
local, na avenida Ipiranga em São Paulo, seu contato com o mundo artístico
prosseguia. E todos que iam procura-lo (novos autores, candidatos a cantor, músicos
interessados em suas letras, velhos companheiros, etc) já chegavam com a
pergunta: “O papa está aí?”. Ele era conhecido como o “papa da música
sertaneja”.
Fazia muitos planos, alguns dos quais jamais iria realizar.
Um deles era pôr letra numa série organizada por João Portaro, a qual, com o
título genérico de História do Brasil, iria abordar desde o Descobrimento até a
fundação de Brasília. Portaro só chegou a escrever nove peças dessa coleção de
trinta, pois faleceu. Orestes Farinello iria completar o ciclo., mas as letras
jamais saíram. Ariovaldo Pires imaginava um LP com esse ciclo histórico, que,
musicalmente, englobaria todos os ritmos surgidos no Brasil. Nenhuma gravadora
mostrou interesse na ideia.
A verdade, enfim, é que novos tempos estavam em andamento e
veteranos como ele – embora pioneiro e ‘papa’ da coisa – cediam lugar para os
novos. Ariovaldo Pires foi sendo gradativamente esquecido na prática, e na
teoria só lhe restava a aura de personagem histórica do gênero caipira – um
mestre e orientador, em suma, para os que pretendiam começar e precisavam de
conselhos objetivos.
No início de 1975, realizou-se em Curitiba, Paraná, o I
Encontro de Pesquisadores de Música Popular Brasileira, como parte dos festejos
de inauguração do novo teatro Guaíra. Indagado pelo coordenador do Encontro
sobre quem poderia comparecer de São Paulo como um dos representantes desse
Estado (pois os festejos e debates iriam reunir gente de todo o país),
indicamo-lo entusiasticamente como presença indispensável. Havia-se pensado em
famosos nomes da música popular urbana, esquecendo que não havia ninguém ligado
à música rural! A indicação foi prazerosamente aceita e, no decorrer das
reuniões do Encontro, Ariovaldo Pires transformou-se em foco das atenções de
todos, estando presentes, vale dizer notáveis nomes da MPB.
A partir de então, Ariovaldo Pires retornou a notoriedade,
agora envolvido com a pesquisa e como fonte viva de informações da música
popular brasileira. Por causa disso ele chamava este autor de “seu padrinho” e
até falecer nunca deixou de honrá-lo com dedicatórias e escritos nos quais
agradecia por “havê-lo empurrado”. Sua atividade nesse aspecto, por outro lado,
fez com que sua vida se dinamizasse intensamente, na forma de pesquisas,
debates, atuações em programas de todo tipo e viagens constantes.
A saúde, contudo, já não era a mesma, embora seu espírito
ainda fosse de um jovem. Em 1979, poucos meses antes de falecer, recebeu
merecido troféu (reunindo aos outros quinze que colecionava em sua carreira)
por seus cinquenta anos de vida artística. Em outubro deste ano, morre seu
irmão mais velho, o radialista Mauro Pires, fato que o abalou profundamente.
Disso fomos testemunha por ocasião do sepultamento. Seu aspecto físico já era
preocupante.
Viajou para o Paraguai, porém, contratado que fora para uma
pesquisa sobre a música desse país que seria transformada num brinde de fim de
ano do Banco do Brasil. A viagem lhe foi fatal, embora exames médicos prévios a
tivessem autorizado. Vimo-nos pela última vez no dia 6 de novembro de 1979, por
ocasião dos funerais da mãe deste autor. Ele compareceu extraordinariamente
abatido, trôpego, auxiliado por sua filha Marilda, a quem delicadamente
censuramos por tê-lo deixado sair de casa naquele estado. “Ele fez questão de
vir”, explicou-nos Marilda. “Queria a todo custo manifestar-lhe pessoalmente
condolências”. Lembramos, inclusive, que a presença dele naquele local só
serviria para piorar seu estado psíquico: é que, alguns dias antes, o corpo de
seu irmão Mauro fora velado exatamente na mesma sala onde estava sendo velado o
da mãe deste autor.
Quatro dias depois – 10 de setembro de 1979 -, desparecia
aquela criatura simpática, prestativa, criativa e modesta que, conforme sua
mulher, “gostava de andar de ônibus para anotar as conversas que ouvi durante
viagem e transformá-las em quadrinhas!”. Morreu às cinco horas da tarde,
sábado, dia de chuva, após cinco paradas cardíacas, na UTI do Hospital
Presidente, na avenida Nova Cantareira, São Paulo.
Soubemos do seu falecimento, no dia seguinte bem cedo. Fomos,
juntamente com João Pacífico, dos primeiros a chegar ao velório. Ao vê-lo
inerte no caixão, sentimos que estávamos sendo furtados também. Furtados de uma
das maiores figuras da música brasileira em todos os tempos. Aquilo que com nos
deparávamos representava o fim do ciclo mais nobre da poesia e da música
caipira em nosso país.
Publicado originalmente em FERRETE, JL. Capitão Furtado: viola
caipira ou sertaneja?. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de
Música, Divisão de Música Popular, 1985.
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