EU ESCUTO VOZES, MUITAS
VOZES
Por Valter Krausche
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
Para Magda, por quem me apauilistanei
Agradecimentos: a Mathilde Barbosa (Mathilde de Luttis), a Sérgio Rubinato (ou Barbosa?), a Armandinho, do Museu do Bixiga.
Não pode parar. Uma
cidade cresce, acotovela-se, dobra sobre si mesma, e ao mesmo tempo alagar-se.
O seu cantor caminha, acompanha-lhe os movimentos, viadutos, malocas. As
últimas famílias retiram da calçada suas últimas cadeiras. Mudam-se os tempos,
e as vontades. O samba já não mora no Brás.
“O
Arnesto nos convido
Prum
samba
Ele
mora no Brás
Nóis
fumo
Não
encontremo ninguém...”
Alguma coisa acontece.
No meu, no teu coração. Sempre acontece. O último idílio matou-se. Alguém
atravessou: contramão.
“Iracema
Eu
sempre dizia
‘Cuidado
ao travessar essas ruas’
Mas
você não me escuitava, não...”
No ritmo das mudanças o
nosso cantor caminha. Por vários anos ele caminha como se fossem os seus últimos
passos, deixando no seu andar-canção, por mais alegre que pareça, a marca de um
dissabor. Arnesto mudou, não deixou nenhum recado na porta. Virou samba, uma
representação da vida que está aí e que ao mesmo tempo se foi. E o canto sai no
mínimo rouco, irônico, e mesmo alegre, engraçado mais do que alegre, um tanto
dilacerado. Onde festa e angústia não se separam. E em boa parte de seus sambas
o samba quer integrar-se ao mundo, mas há sempre uma impossibilidade. Torna-se
assim o contrapasso da euforia cega do progresso. Faz parte dele, como seu
avesso.
“Progréssio
Progréssio
Eu
sempre escuitei falá...”
É exatamente essa forma
de caminhar que torna o nosso cantor fascinante. A sua música, por mais
“tradicional” que pareça, faz parte do moderno. Não se trata de uma
manifestação do passado, da “velha guarda”, simplesmente. Além de sua
epidérmica simplicidade muitas vozes se movimentam. Vozes do passado e do
presente que se misturam. São as vozes da cidade, daqueles que com ela se
identificam durante uma certa época de sua história. São aqueles que habitam os
cortiços, malocas e bairros que lhes deram um sotaque próprio, que poderia ser
identificado um tanto imprecisamente como ítalo-paulistano-caipira.
Eis o samba de “aldeia”, trazendo seus muros, os seus trilhos e sua gente, que explode, percorre outras cidades. O samba de uma grande aldeia que concentra filhos e partes de outras. Neste sentido lembra a frase do maestro Júlio Medaglia: “Dostoieviski diz que a melhor forma de ser universal é narrar bem a sua aldeia. E ninguém melhor que Adoniran narrou a aldeia paulista”.
Impossível refazer caminhos. A aldeia mudou, muitos rastros já se apagaram. Mas mesmo assim resta-nos um outro: a partir daqueles que ficaram retidos nas composições do nosso cantor – flashes sem os quais o cotidiano continuaria amorfo – reconstituir a gênese, o desenvolvimento e a confluência das muitas vozes que povoam o seu samba. Vozes de andanças pelas profissões, pelos personagens que protagonizou nos programas de humor no rádio, pela geografia da cidade.
Esta é a história (?)
de como um cantor interiorizou e representou a cidade. De quem retirou do
movimento da multidão os seus flashes poéticos.
Adoniran Barbosa: um
homem sem profissão. Um homem com muitas profissões, artísticas e não
artísticas. Em uma delas se concentram todas as outras, toda uma experiência
adquirida por sua vida afora, posta em música. Adoniran Barbosa: músico.
Publicado originalmente por KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Um comentário:
Muito bom !
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