quinta-feira, 20 de maio de 2021

Encontro Radical Adoniran Barbosa IV de V: Anda pela Cidade

CAPÍTULO 4
ANDA PELA CIDADE

Por Valter Krausche

Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Adoniran Barbosa em O Cangaceiro (1953) de Lima Barreto

A partir de 1955, o país abria as portas para os bens de capital estrangeiros e acelerava o processo de industrialização. Sob a intervenção e orientação estatais, configuradas no “Plano de Metas” do governo Juscelino Kubitscheck (1955-1960), modernizava-se a produção, instalando-se e ampliando-se a indústria pesada e o setor de bens de consumo duráveis. AS sociedade brasileira motorizava-se de norte a sul, eufórica, desenvolvimentista. Preconizando um crescimento de cinquenta anos em cinco, o governo agia no sentido de integrar de vez a economia brasileira dos grandes monopólios internacionais. A sociedade tornava-se mais veloz: o automóvel. A sociedade tornava-se mais visual: a televisão, que desde o início da década de 50 começava a atender o país a domicílio.

Apesar de tudo, o nosso herói andava a pé. Exatamente a pé? Não, mas pelas ondas do rádio: “Charutinho” com sucesso. O poder da nova combinação entre voz e imagem produzida na televisão ainda não havia atingido a intensidade a que chegaria nos anos 70. Assim, Adoniran podia caminhar com o máximo de sua máscara radiofônica, exigindo o esforço de imaginação participativa dos ouvintes. Demorou para que a TV ocupasse a maioria dos lares. E mesmo sua linguagem, por nossas bandas, não alcançara tão logo a sofisticação que adquiriria mais tarde, quando a voz condutora da máscara cederia lugar a uma nova combinação.

No entanto, a TV já trazia a eliminação do espaço de autonomia da voz e da imaginação do ouvinte, acarretando, segundo alguns, perda de criatividade artística e, segundo outros, novas alternativas para a produção cultural. O vídeo facilitaria ao telespectador a assimilação da máscara, e a voz sozinha se enfraqueceria.

Mas até o início dos anos 60, o tradicional humor radiofônico resistia. Por isso, as Histórias das Malocas puderam brilhar até 1966, ocupando o 1º lugar na audiência da cidade, entrando em declínio a partir de 1967.

Caminhando com e por essas ondas o nosso herói sabia das mudanças que se processavam, e das consequências que já despontavam. Por isso mesmo não se colocava de costas voltadas para o “progresso”, lamentando a perda de um passado, mas através do “progresso”. O seu canto, como já foi salientado no comentário a respeito de “Saudosa Maloca”, à medida que se voltava ao passado, acabava por enfatizar a nódoa no movimento do presente, reproduzindo o “progresso” pelo seu lado avesso:

Progréssio
Progréssio
Eu sempre escuitei fala
Que o progréssio
Vem do trabaio
Então amanhã cedo
Nóis vai trabaiá
Quanto tempo
Nóis perdeu na boemia
Sambando noite e dia
Cortando uma rama sem pará
Agora escuitando
O conselho das muié
Amanhã nóis vai trabaiá
Se Deus quis é!
(Break) Mais Deus não qué!...”
(Conselho de Mulher, de Adoniran Barbosa, Oswaldo Moles e João B. Santos, 1955).

Não sem ironia o samba enalteve aquilo que gera o “progréssio”: o “trabaio”. Promete o fim da boêmia. O novo ritmo da industrialização e da urbanização é aceito sem discussão; as “muié” parecem ter razão. O ouvinte conhecedor das peças pregadas por Adoniran – “Charutinho” fica desconfiado: algo não está certo nesse samba – a forma “ítalo-paulistano-caipira” de cantá-lo, imprimindo-lhe um caráter cômico, esconde alguma surpresa. Mas eis que se encerra a melodia...e nada. Todos irão trabalhar no dia seguinte em nome do progresso. Contudo, em última instância surge o breque:

“Mais Deus não quê!...”

Esta era a última saída. A frase anterior, “Se Deus quis é”, abria essa possibilidade: quem disse que ele vai querer? Dita normalmente com o significado de que Deus vai querer ou apoiar uma determinada atitude de alguém, a frase revela, na verdade, apenas um apoio possível. Nada assegura que possa acontecer, que Deus queira mesmo. Eis, portanto, a brecha para o breque, breque ao trabalho gerador do progresso. Sendo o breque um certo rompimento com a melodia (algo falado ou quase falado), está colocado aparentemente após o término do samba. Contudo, faz parte dele, surpreendendo-o. Como vimos, o próprio samba deu a “deixa” para que o breque funcionasse como negação dos seus “valores positivos” (enaltecimento do trabalho). Estamos, portanto, no samba que traz consigo o seu avesso, que é o avesso da apologia do progresso.

Nesse ritmo, Adoniran continuou. Pelas ruas do “Progréssio” que se abriam ainda mais, ampliando os objetos a serem manipulados através do consumo.

Segundo o livro de Paulo de Tarso Medeiros, A Aventura da Jovem Guarda (Coleção “Tudo é História”), a modernização do país, a partir de meados dos anos 50 e início dos 60, proporcionou á juventude um comportamento que correspondeu às novas demandas estimuladas por ela. O automóvel passa a correr no ritmo, na melodia e nos textos do iê-iê-iê brasileiro. Novas vozes, novos desejos.

E o nosso cantor? Prosseguia, gastando pernas pelas ruas, não querendo sacralizar o passado, mas mimetizando os tropeços, indo adiante. Ei-lo então pela Rua dos Gusmões:

“Essa mulher sabe
Que por ela
Sou capaz de tudo
De atravessar a Rua dos Gusmões
Lendo Ali Babá e os Quarenta Ladrões
Mas deixar o samba pelo iê-iê-iê
Não pode ser”.

Porém, não se pense em Adoniran como inimigo do “iê-iê-iê”, como defensor de um samba que vociferava contra a alienação dos “meninos” do rock. Em nenhum momento assumiu, em entrevistas ou composições, uma posição de guerra contra eles. Adoniran apenas defendeu o direito de prosseguir tropeçando maloqueiramente e que esses tropeços fossem ouvidos, que o rádio divulgasse as suas canções. Ouçam só o samba Já Fui uma Brasa, de 1966:

“Eu também
Um dia fui uma brasa
Já acendi muita lenha no fogão
E hoje o que é que eu sou?
Quem sabe de mim
É o meu violão
Mas lembro que o rádio
Que hoje toca iê-iê-iê o dia inteiro
Tocava Saudosa Maloca

Eu gosto dos meninos
Desse tal de iê-iê-iê
Porque com eles canta a voz do povo
E eu já fui uma brasa
Se assoprarem
Posso acender de novo

(falando) Eu ia passando
E o broto olhou pra mim
Disse: ‘é cinza, mora!’
Enganei o broto
Porque debaixo da cinza
Tem muita lenha pra queimar”.
(Adoniran Barbosa e Marcos César)

Aí está: o rádio tocando “iê-iê-iê” o dia inteiro, não sobrando espaço para outras vozes. Não que o “iê-iê-iê” não fosse legítimo: “com eles” também “canta a voz do povo”. O músico de muitas vozes que era Adoniran não desejava trocar a ditadura de uma voz por outra que pudesse ser mais “autêntica”, “brasileira”, etc. Adoniran estava em sintonia com o seu tempo, o moderno pelo outro lado de sua vitrine. Diante de “É uma brasa, mora!”, de Erasmo e Roberto Carlos, revelava o “É uma cinza, mora!”, a outra face da “brasa”, ampliando a área de significação desta “brasa” e, portanto, como parte da mesma lenha, que ainda ardia.

Num momento em que a associação entre os meios de reprodução da cultura tornava-se cada vez mais íntima, e o controle sobre a veiculação das informações mais centralizado e despótico, o que na verdade nunca pôde ocorrer totalmente, Adoniran lançava um recado extremamente crítico. Esse recado não transportava nenhuma bandeira, nenhuma defesa de um único tipo de postura cultural, de uma identidade nacional, etc. Em Adoniran fervilhou o samba da pluralidade. Até mesmo o rock brasileiro, que foi considerado pelos defensores tradicionais da MPB inimiga do samba, participava da mistura criada e desenvolvida pelo nosso cantor, de um modo invertido, é verdade.

Sempre com a outra fase: em Iracema, o automóvel, que para a “Jovem Guarda” expressava um novo comportamento, status, instrumento de conquista amorosa e até de evasão e consolo diante do amor frustrado que mata. Só que Adoniran não se rebelava diretamente contra esse símbolo e contra a nova velocidade adquirida pela sociedade:

“Iracema fartavam 20 dias
Pra o nosso casamento
Que nóis ia se casá
Você atravesso a São João
Vem um carro te pega
E te pincha no chão
Você foi pra assistência, Iracema
O chofer não teve curpa, Iracema
Paciência, Iracema, paciência!”.

Não teve jeito mesmo. Iracema não escutou os conselhos do cantor. A cidade é brava, violenta em seu crescimento. É o “progréssio”. O próprio “chofer não teve curpa” faz parte disso tudo. Paciência, as transformações urbanas são irreversíveis. Novamente não dá pé para retornar à aldeia, ai idílico, por mais que as feridas urbanas doam. Aparentemente não denunciando o sistema, utilizando-se da linguagem mais conformismo do cotidiano, Adoniran insiste tanto na dor e na paciência que passa a sugerir o outro lado dessa dor, ou seja, a violência urbana que a gerou. É o ouvinte que, sentindo o peso dessa dor, pode decifrar a violência.

A referência a esse acontecimento urbano tão comum, o atropelamento, apareceria em outro de seus sambas, Tiro ao Álvaro (em parceria com Oswaldo Moles, em 1965). Embora cantasse ali as “frexadas do teu olhar”, ao ponto de o “meu peito” se transformar em “táubua de tiro ao Álvaro”, registrava uma imagem extremamente forte:

“Teu olhar mata mais
Que atropelamento de automóver”

Nesta canção de amor repete-se o inverso daquilo que acontecia nas canções da “Jovem Guarda”, onde o automóvel acelera a conquista amorosa. Aqui, quanto mais o amor é doído, ele é comparado com o “mal” ocasionado pela urbanização desenfreada. Porém, se ficarmos parados diante desse automóvel não iremos mais a lugar nenhum. Pelo menos com Adoniran Barbosa. Faz-se necessário penetrar mais no circuito da comunicação social, onde as pessoas vão perdendo os seus rostos, seus contornos, seus rastros, incorporando-as à multidão sem nome. As pessoas começam a sumir, não voltam: atropeladas, expulsas de suas malocas e cortiços, ou engolfadas pela multidão. Transformaram-se em acontecimentos muito pequenos de jornais, um virar de página.

É preciso recuperar as marcas desses passos, retê-los pelos flashes musicais. O cantor tenta interromper o tráfego, a circulação inominável de pessoas e coisas. Por isso, seus sambas trazem os nomes perdidos no fluxo das ruas. Como já vimos no capítulo anterior, em Saudosa Maloca tenta reter o ouvinte que passa: “Se o sinhô num tá lembrado/ Dá licença de conta”...Revela que “aonde agora está/esse edifício arto” surge um drama, o de sua expulsão, de Matogrosso e de Joca, que hoje se perdem pela cidade, pegando “paia nas grama dos jardim”.

A obra de Adoniran manifesta-se, portanto, por suas buscas. Alimenta-se de personagens e ruas demolidas. Uma vez é Maria:

O que será que aconteceu
Que Maria não voltou?
Será que se perdeu
Ou arranjou um novo amor ô ô?”.
(Por onde andará Maria, Adoniran Barbosa e Rago, 1956).

Outra vez é Inês:

Inês saiu dizendo
Que ia compra um pavio pru lampião
Pode me esperá, Mané
Eu já volto já
Acendi o fogão
Botei água pra esquentá
E fui pro portão
Só pra ver Inês chega
Anoiteceu
E ela não voltou
Fui pra rua feito um louco
Só pra vê o que aconteceu
Procurei na Central
Procurei no Hospital
E no xadrez
Andei a cidade inteira
E não encontrei Inês
Voltei pra casa triste demais
Que Inês me fez
Não se faz
E no chão bem perto do fogão
Encontrei um papel escrito assim
Pode apagar o fogo, Mané
Que eu não volto mais”.
(Apaga o fogo, Mané)

Apesar de essas canções traduzirem a emoção de quem foi abandonado por seu amor, elas não sabem a respeito do paradeiro desse amor. A sensação de que ele se perdeu pela cidade é muito forte. Numa outra canção é “Pafunça”, que nem o nome do seu cantor, o seu amor, pronuncia mais:

“Pafunça cabou-se a sopa
Que tu dava pra eu morfar
Pafunção cabou-se a roupa
Que eu te dava pra lavá
Hoje vivo no abandono
Dum vira-lata sem dono
E pra me judiá, Pafunça
Nem meu nome tu pronunça

"O teu coração sem amor
Se esfriô, se desligo
Até parece, Pafunça
Aqueles elevador
Que tá escrito
Num fununça
E a gente sobe a pé
E pra me judiá, Pafunça
Nem meu nome tu pronunça”.
(Adoniran Barbosa e Oswaldo Moles, 1965)

Neste caso, aquele que perdeu o seu amor não é mais identificado por ele: “Nem meu nome tu pronunça”. Torna-se “vira-lata sem dono”, um qualquer.

Portanto, é o estar perdido nas ruas, o diluir-se, a demolição de homens e coisas que angustiavam o cantor. Deste modo, os seus sambas tentaram a brincadeira desesperada de fixar rostos, ruas, bairros e nomes, que eram tragados pela cidade em mudança. Mas para isso usou as suas pernas, caminho “perdido” no fluxo do cotidiano, e não contra ele. A sua música cantada no meio da multidão foi o seu modo para interromper os passos dessa multidão.

Em Abrigo de Vagabundos, de 1959, o personagem-cantor de Saudosa Maloca enfim consegue, a muito custo, arranjar um barraco para morar, no bairro da Mooca, mas perde a companhia de Matogrosso e de Joca:

“Por onde andará
Joca e Matogrosso
Aqueles dois amigos
Que não quis em acompanhar?
Andarão jogados na Avenida São João
Ou vendo a sol quadrado
Na detenção”.

Se em Pafunça, o desamor implicava a perda de identidade de quem continuava amando, em Abrigo de Vagabundos o desejo pelo reencontro sugere a solidariedade, desejando a relação inversa:

Minha maloca
A mais linda desse mundo
Ofereço aos vagabundos
Que não tem onde dormir”.

Novamente a “maloca” aparece como refúgio da solidariedade urbana (em Saudosa Maloca isto já acontecia), escondendo os últimos rostos de uma multidão cada vez mais solitária. E não se trata apenas dos rostos humanos, mas dos espaços urbanos que se identificam com eles. Daí as tentativas de Adoniran em reter bairros e ruas de sua grande “aldeia”:

“Cada sambinha meu tem uma rua de São Paulo, um bairro”.

Em Saudosa Maloca habita um antigo cortiço de uma rua famosa de São Paulo, a Rua Aurora. Arnesto mora no Brás. O cantor conseguiu um barraco na Mooca. E assim vamos: No Morro do Piolho (em parceria com Jacob de Brito e Carlos Silva, 1959), No Morro da Casa Verde, Um Samba no Bixiga, Viaduto Santa Ifigênia (em parceria com Alocin), O Trem das Onze, via Jaçanã, Vila Esperança (em parceria com Marcos César, 1968) até chegarmos à senhora marco-zero da vida paulistana, a Praça da Sé (1978).

Nessa peregrinação o que o compositor criticava não era o fato de a cidade mudar, mas o modo pelo qual era demolida:

“A gente não pode ficar destruindo, demolindo tudo porque os outros desejam construir outra coisa em seu lugar. Por isso fiz um samba, Viaduto Samba Ifigênia, que foi um protesto quando ameaçaram demolir o viaduto. Estão acabando as vilas, os bares, os cortiços”.

Aí está o desabafo de um homem urbano, amante dos bondes, do cinema, do rádio, dos viadutos. Depois de afastada a ameaça, o viaduto lá estava, de pé:

Venha ver
Venha ver, Eugênia
Como ficou bonito
O viaduto Santa Ifigênia”.

E cada tábua que caía ia lhe atingindo o coração, seu coração de máscara-produto-de-vozes. Cada rosto se perdia era parte do seu rosto. Assim, quanto mais sua máscara avançava em suas andanças, enriquecendo a sua obra, mais tendia a se diluir. Quanto mais atingia a expressão maior de sua máscara, mais ela corria o risco de se desintegrar. Este foi o seu drama, o seu drama maior de criação, tensão que permitiu a produção musical mais rica de sua obra.

Esse momento maior de Adoniran Barbosa correspondeu ao período de sua maior popularidade, quando o programa História das Malocas anunciava-o como:

“o popularíssimo astro do rádio e do circo, do disco e do cinema nacional...”

Como se lê, a máscara de Adoniran Barbosa estava no seu clímax: um homem de mil faces, de várias profissões.

Através do rádio, “Charutinho” tornava-se realmente popularíssimo. O cinema também concentrava-se nos passos do humorista-compositor. Já em 1946, participava do filme Caídos do Céu, com produção de Ademar Gonzaga e direção de Luiz de Barros, ao lado de Dercy Gonçalves, Walter Dávila, Violeta Ferraz e outros. Em 1945, de Pif-Paf, produção Cinédia, sob a direção de Ademar Gonzaga. Mas foi em 1953 a sua maior emoção cinematográfica: O Cangaceiro, com argumento, roteiro e direção de Lima Barreto, com Alberto Ruschel, Marisa Prado e Milton Ribeiro. Tratava-se de um filme premiado no Festival de Cannes, e Adoniran não escondeu seu entusiasmo, a sua maior alegria:

“Aquela da estreia de O Cangaceiro em São Paulo. Fiquei tão contente que se encontrasse Lampião na rua, eu me acendia com ele...”.

Além de O Cangaceiro, Adoniran participou de outros filmes: ao lado de Mazzaropi esteve em Candinho (produção Vera Cruz e direção de Abílio Pereira de Almeida), Nadando em Dinheiro e A Carrocinha. Cabe lembrar a sua atuação em Esquina da Ilusão, produção Vera Cruz e direção de Ruggero Jacobi, e em Bruma Seca, de Mário Civelli.

No entanto, o seu papel no cinema foi discreto, secundário, tanto como ator como colaboração para a fixação de sua máscara. O rádio, sim, foi a sua escola “risonha e franca” e palco de seu sucesso. Os grandes prêmios individuais de sua carreira de ator foram conquistados como intérprete cômico. Adoniran recebeu vários troféus Roquete Pinto, concedidos pela AFEU (Associação dos Funcionários das Emissoras Unidas), um dos prêmios mais prestigiados do rádio da época. Foi assim em 1951, 1953, 1958, 1959 e 1965.

A fusão entre o humorista e o músico, que chegava ao seu ponto crítico nos anos 50, corresponde também aos primeiros sucessos musicais: em 1951, com o samba Malvina, ganha o 1º lugar no concurso carnavalesco promovido pelas Lojas Assumpção, em São Paulo; em 1953, com Joga a Chave. Também em 1951 já havia Saudosa Maloca, sem muito sucesso. Em 1955, os Demônios da Garoa gravaram-na com imensa repercussão. O interessante é que Saudosa Maloca tornava-se êxito musical ao lado do dobrado Quarto Centenário, de Mário Zan e J.M. Alves, canção-exaltação a São Paulo como o outro dobrado da época, São Paulo Quatrocentão. Não custa lembrar: a Maloca era (é) o avesso da linguagem apologética e empolarada característica daqueles dobrados, assim como da respeitosa “valsinha” Lampião de Gás.

Só para se ter uma ideia do sucesso que começava a chegar podemos cirtar os títulos de duas reportagens da época, exatamente de uma revista muito famosa, a Revista do Rádio, editada no Rio de Janeiro: uma de 15 de outubro de 1955, “Só faltava fazer sambas...e Adoniran também fez”; outra, de 28 de agosto de 1959, “Humorista faz músicas tristes”. Esses títulos, inclusive, explicitavam o momento em que Adoniran estreitava os laços entre o intérprete cômico e o músico.

Contudo, o artista do avesso carregava também o seu avesso: sua popularidade crescente era inversamente proporcional à sua remuneração como artista. Uma das alternativas para aumentos seus rendimentos foi o circo. Na fase das Histórias das Malocas, Adoniran levava a sua troupe radiofônica para a periferia da cidade. Conta Mathilde, sua mulher durante quarenta anos, que era ela quem depositava o dinheiro arrecadado naqueles espetáculos circenses; uma quantidade de notas miúdas, muitas vezes sujas, que numa certa ocasião o caixa bancário negou-se a aceitar. Pelo que parece, o circo apresentou-se ao nosso cantor como uma saída para auxilia-lo a constituir uma vida mais digna. Mais uma vez é Mathilde quem fala:

“Acontece que a gente era muito pobre, porque ninguém fazia shows como hoje. Ele só cantava em circo e de vez em quando no Cine-Teatro lá no Brás, ou no Coliseu, no Largo do Arouche”.

Nesta entrevista Mathilde refere-se a um período inclusive anterior às Histórias das Malocas, que sob a direção de Adoniran percorreram as redondezas pobres da cidade.

Resta-nos perguntas como no samba de Adoniran:

“Tocar na banda
Pra ganhar o quê?
Duas maviolas
E um cigarro Iolanda”
(Tocar na Banda, 1965)

Entretanto, Adoniran continuou a tocar na banda, ganhando mais que duas maviolas (goiabinha coberta com açúcar cristalizado) e um cigarro Iolanda, mas não o bastante e o esperado:

“Minha maior decepção foi pensar que um dia estaria na ‘vida mansa’. Depois de mais de 20 anos no rádio, preciso dar duro, diariamente para ganhar o meu pão e o osso do meu cachorro...” (1959).

Desse modo, ei-lo cantando por aí zombador, “sarcástico, malicioso e emocionado”, como ele próprio dizia, e lírico, afinando pelo inverso a banda dos contentes, brincando com as suas próprias perdas pelas ruas de sua grande cidade.

Este é o momento mais lato de um multifacetado caminho: quanto mais avança mais se desfigura. Ele sabia:

“Eu que sempre fui um homem das ruas, quase não saio mais de casa”.

Foi o que disse numa de suas últimas entrevistas.

Publicado originalmente por KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

''Saudosa Maloca'' na interpretação de Elis Regina é tocante,''Tiro ao Álvaro'' também.Clara Nunes cantando ''Iracema'' também é de doer de bonito.