ANDA PELA CIDADE
Por Valter Krausche
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
Adoniran Barbosa em O Cangaceiro (1953) de Lima Barreto |
A partir de 1955, o
país abria as portas para os bens de capital estrangeiros e acelerava o
processo de industrialização. Sob a intervenção e orientação estatais,
configuradas no “Plano de Metas” do governo Juscelino Kubitscheck (1955-1960),
modernizava-se a produção, instalando-se e ampliando-se a indústria pesada e o
setor de bens de consumo duráveis. AS sociedade brasileira motorizava-se de
norte a sul, eufórica, desenvolvimentista. Preconizando um crescimento de
cinquenta anos em cinco, o governo agia no sentido de integrar de vez a
economia brasileira dos grandes monopólios internacionais. A sociedade
tornava-se mais veloz: o automóvel. A sociedade tornava-se mais visual: a
televisão, que desde o início da década de 50 começava a atender o país a
domicílio.
Apesar de tudo, o nosso
herói andava a pé. Exatamente a pé? Não, mas pelas ondas do rádio: “Charutinho”
com sucesso. O poder da nova combinação entre voz e imagem produzida na
televisão ainda não havia atingido a intensidade a que chegaria nos anos 70.
Assim, Adoniran podia caminhar com o máximo de sua máscara radiofônica,
exigindo o esforço de imaginação participativa dos ouvintes. Demorou para que a
TV ocupasse a maioria dos lares. E mesmo sua linguagem, por nossas bandas, não
alcançara tão logo a sofisticação que adquiriria mais tarde, quando a voz
condutora da máscara cederia lugar a uma nova combinação.
No entanto, a TV já
trazia a eliminação do espaço de autonomia da voz e da imaginação do ouvinte,
acarretando, segundo alguns, perda de criatividade artística e, segundo outros,
novas alternativas para a produção cultural. O vídeo facilitaria ao
telespectador a assimilação da máscara, e a voz sozinha se enfraqueceria.
Mas até o início dos
anos 60, o tradicional humor radiofônico resistia. Por isso, as Histórias das Malocas puderam brilhar
até 1966, ocupando o 1º lugar na audiência da cidade, entrando em declínio a
partir de 1967.
Caminhando com e por essas ondas o nosso herói sabia das mudanças que se processavam, e das consequências que já despontavam. Por isso mesmo não se colocava de costas voltadas para o “progresso”, lamentando a perda de um passado, mas através do “progresso”. O seu canto, como já foi salientado no comentário a respeito de “Saudosa Maloca”, à medida que se voltava ao passado, acabava por enfatizar a nódoa no movimento do presente, reproduzindo o “progresso” pelo seu lado avesso:
“Progréssio
Progréssio
Eu
sempre escuitei fala
Que
o progréssio
Vem
do trabaio
Então
amanhã cedo
Nóis
vai trabaiá
Quanto
tempo
Nóis
perdeu na boemia
Sambando
noite e dia
Cortando
uma rama sem pará
Agora
escuitando
O
conselho das muié
Amanhã
nóis vai trabaiá
Se
Deus quis é!
(Break)
Mais Deus não qué!...”
(Conselho de Mulher, de Adoniran Barbosa,
Oswaldo Moles e João B. Santos, 1955).
Não sem ironia o samba
enalteve aquilo que gera o “progréssio”: o “trabaio”. Promete o fim da boêmia.
O novo ritmo da industrialização e da urbanização é aceito sem discussão; as
“muié” parecem ter razão. O ouvinte conhecedor das peças pregadas por Adoniran
– “Charutinho” fica desconfiado: algo não está certo nesse samba – a forma
“ítalo-paulistano-caipira” de cantá-lo, imprimindo-lhe um caráter cômico,
esconde alguma surpresa. Mas eis que se encerra a melodia...e nada. Todos irão
trabalhar no dia seguinte em nome do progresso. Contudo, em última instância
surge o breque:
“Mais
Deus não quê!...”
Esta era a última
saída. A frase anterior, “Se Deus quis é”, abria essa possibilidade: quem disse
que ele vai querer? Dita normalmente com o significado de que Deus vai querer
ou apoiar uma determinada atitude de alguém, a frase revela, na verdade, apenas
um apoio possível. Nada assegura que possa acontecer, que Deus queira mesmo.
Eis, portanto, a brecha para o breque, breque ao trabalho gerador do progresso.
Sendo o breque um certo rompimento com a melodia (algo falado ou quase falado),
está colocado aparentemente após o término do samba. Contudo, faz parte dele,
surpreendendo-o. Como vimos, o próprio samba deu a “deixa” para que o breque
funcionasse como negação dos seus “valores positivos” (enaltecimento do
trabalho). Estamos, portanto, no samba que traz consigo o seu avesso, que é o
avesso da apologia do progresso.
Nesse ritmo, Adoniran
continuou. Pelas ruas do “Progréssio” que se abriam ainda mais, ampliando os
objetos a serem manipulados através do consumo.
Segundo o livro de
Paulo de Tarso Medeiros, A Aventura da
Jovem Guarda (Coleção “Tudo é História”), a modernização do país, a partir
de meados dos anos 50 e início dos 60, proporcionou á juventude um
comportamento que correspondeu às novas demandas estimuladas por ela. O
automóvel passa a correr no ritmo, na melodia e nos textos do iê-iê-iê
brasileiro. Novas vozes, novos desejos.
E o nosso cantor?
Prosseguia, gastando pernas pelas ruas, não querendo sacralizar o passado, mas
mimetizando os tropeços, indo adiante. Ei-lo então pela Rua dos Gusmões:
“Essa
mulher sabe
Que
por ela
Sou
capaz de tudo
De
atravessar a Rua dos Gusmões
Lendo
Ali Babá e os Quarenta Ladrões
Mas
deixar o samba pelo iê-iê-iê
Não
pode ser”.
Porém, não se pense em
Adoniran como inimigo do “iê-iê-iê”, como defensor de um samba que vociferava
contra a alienação dos “meninos” do rock. Em nenhum momento assumiu, em
entrevistas ou composições, uma posição de guerra contra eles. Adoniran apenas
defendeu o direito de prosseguir tropeçando maloqueiramente e que esses
tropeços fossem ouvidos, que o rádio divulgasse as suas canções. Ouçam só o
samba Já Fui uma Brasa, de 1966:
“Eu também
Um
dia fui uma brasa
Já
acendi muita lenha no fogão
E
hoje o que é que eu sou?
Quem
sabe de mim
É
o meu violão
Mas
lembro que o rádio
Que
hoje toca iê-iê-iê o dia inteiro
Tocava
Saudosa Maloca
Eu
gosto dos meninos
Desse
tal de iê-iê-iê
Porque
com eles canta a voz do povo
E
eu já fui uma brasa
Se
assoprarem
Posso
acender de novo
(falando)
Eu ia passando
E
o broto olhou pra mim
Disse:
‘é cinza, mora!’
Enganei
o broto
Porque
debaixo da cinza
Tem
muita lenha pra queimar”.
(Adoniran
Barbosa e Marcos César)
Aí está: o rádio tocando
“iê-iê-iê” o dia inteiro, não sobrando espaço para outras vozes. Não que o
“iê-iê-iê” não fosse legítimo: “com eles” também “canta a voz do povo”. O
músico de muitas vozes que era Adoniran não desejava trocar a ditadura de uma
voz por outra que pudesse ser mais “autêntica”, “brasileira”, etc. Adoniran
estava em sintonia com o seu tempo, o moderno pelo outro lado de sua vitrine.
Diante de “É uma brasa, mora!”, de Erasmo e Roberto Carlos, revelava o “É uma
cinza, mora!”, a outra face da “brasa”, ampliando a área de significação desta
“brasa” e, portanto, como parte da mesma lenha, que ainda ardia.
Num momento em que a
associação entre os meios de reprodução da cultura tornava-se cada vez mais
íntima, e o controle sobre a veiculação das informações mais centralizado e
despótico, o que na verdade nunca pôde ocorrer totalmente, Adoniran lançava um
recado extremamente crítico. Esse recado não transportava nenhuma bandeira,
nenhuma defesa de um único tipo de postura cultural, de uma identidade
nacional, etc. Em Adoniran fervilhou o samba da pluralidade. Até mesmo o rock
brasileiro, que foi considerado pelos defensores tradicionais da MPB inimiga do
samba, participava da mistura criada e desenvolvida pelo nosso cantor, de um
modo invertido, é verdade.
Sempre com a outra
fase: em Iracema, o automóvel, que
para a “Jovem Guarda” expressava um novo comportamento, status, instrumento de
conquista amorosa e até de evasão e consolo diante do amor frustrado que mata.
Só que Adoniran não se rebelava diretamente contra esse símbolo e contra a nova
velocidade adquirida pela sociedade:
“Iracema
fartavam 20 dias
Pra
o nosso casamento
Que
nóis ia se casá
Você
atravesso a São João
Vem
um carro te pega
E
te pincha no chão
Você
foi pra assistência, Iracema
O
chofer não teve curpa, Iracema
Paciência,
Iracema, paciência!”.
Não teve jeito mesmo.
Iracema não escutou os conselhos do cantor. A cidade é brava, violenta em seu
crescimento. É o “progréssio”. O próprio “chofer não teve curpa” faz parte
disso tudo. Paciência, as transformações urbanas são irreversíveis. Novamente
não dá pé para retornar à aldeia, ai idílico, por mais que as feridas urbanas
doam. Aparentemente não denunciando o sistema, utilizando-se da linguagem mais
conformismo do cotidiano, Adoniran insiste tanto na dor e na paciência que
passa a sugerir o outro lado dessa dor, ou seja, a violência urbana que a
gerou. É o ouvinte que, sentindo o peso dessa dor, pode decifrar a violência.
A referência a esse
acontecimento urbano tão comum, o atropelamento, apareceria em outro de seus
sambas, Tiro ao Álvaro (em parceria
com Oswaldo Moles, em 1965). Embora cantasse ali as “frexadas do teu olhar”, ao
ponto de o “meu peito” se transformar em “táubua de tiro ao Álvaro”, registrava
uma imagem extremamente forte:
“Teu olhar mata mais
Que
atropelamento de automóver”
Nesta canção de amor
repete-se o inverso daquilo que acontecia nas canções da “Jovem Guarda”, onde o
automóvel acelera a conquista amorosa. Aqui, quanto mais o amor é doído, ele é
comparado com o “mal” ocasionado pela urbanização desenfreada. Porém, se
ficarmos parados diante desse automóvel não iremos mais a lugar nenhum. Pelo
menos com Adoniran Barbosa. Faz-se necessário penetrar mais no circuito da
comunicação social, onde as pessoas vão perdendo os seus rostos, seus
contornos, seus rastros, incorporando-as à multidão sem nome. As pessoas
começam a sumir, não voltam: atropeladas, expulsas de suas malocas e cortiços,
ou engolfadas pela multidão. Transformaram-se em acontecimentos muito pequenos
de jornais, um virar de página.
É preciso recuperar as
marcas desses passos, retê-los pelos flashes
musicais. O cantor tenta interromper o tráfego, a circulação inominável de
pessoas e coisas. Por isso, seus sambas trazem os nomes perdidos no fluxo das
ruas. Como já vimos no capítulo anterior, em Saudosa Maloca tenta reter o ouvinte que passa: “Se o sinhô num tá
lembrado/ Dá licença de conta”...Revela que “aonde agora está/esse edifício
arto” surge um drama, o de sua expulsão, de Matogrosso e de Joca, que hoje se
perdem pela cidade, pegando “paia nas grama dos jardim”.
A obra de Adoniran
manifesta-se, portanto, por suas buscas. Alimenta-se de personagens e ruas
demolidas. Uma vez é Maria:
“O
que será que aconteceu
Que
Maria não voltou?
Será
que se perdeu
Ou
arranjou um novo amor ô ô?”.
(Por onde andará Maria, Adoniran Barbosa
e Rago, 1956).
Outra vez é Inês:
“Inês
saiu dizendo
Que
ia compra um pavio pru lampião
Pode
me esperá, Mané
Eu
já volto já
Acendi
o fogão
Botei
água pra esquentá
E
fui pro portão
Só
pra ver Inês chega
Anoiteceu
E
ela não voltou
Fui
pra rua feito um louco
Só
pra vê o que aconteceu
Procurei
na Central
Procurei
no Hospital
E
no xadrez
Andei
a cidade inteira
E
não encontrei Inês
Voltei
pra casa triste demais
Que
Inês me fez
Não
se faz
E
no chão bem perto do fogão
Encontrei
um papel escrito assim
Pode
apagar o fogo, Mané
Que
eu não volto mais”.
(Apaga o fogo, Mané)
Apesar de essas canções
traduzirem a emoção de quem foi abandonado por seu amor, elas não sabem a
respeito do paradeiro desse amor. A sensação de que ele se perdeu pela cidade é
muito forte. Numa outra canção é “Pafunça”, que nem o nome do seu cantor, o seu
amor, pronuncia mais:
“Pafunça
cabou-se a sopa
Que
tu dava pra eu morfar
Pafunção
cabou-se a roupa
Que
eu te dava pra lavá
Hoje
vivo no abandono
Dum
vira-lata sem dono
E
pra me judiá, Pafunça
Nem
meu nome tu pronunça
"O
teu coração sem amor
Se
esfriô, se desligo
Até
parece, Pafunça
Aqueles
elevador
Que
tá escrito
Num
fununça
E
a gente sobe a pé
E
pra me judiá, Pafunça
Nem
meu nome tu pronunça”.
(Adoniran Barbosa e
Oswaldo Moles, 1965)
Neste caso, aquele que
perdeu o seu amor não é mais identificado por ele: “Nem meu nome tu pronunça”.
Torna-se “vira-lata sem dono”, um qualquer.
Portanto, é o estar perdido nas ruas, o diluir-se, a demolição de homens e coisas que angustiavam o cantor. Deste modo, os seus sambas tentaram a brincadeira desesperada de fixar rostos, ruas, bairros e nomes, que eram tragados pela cidade em mudança. Mas para isso usou as suas pernas, caminho “perdido” no fluxo do cotidiano, e não contra ele. A sua música cantada no meio da multidão foi o seu modo para interromper os passos dessa multidão.
Em Abrigo de Vagabundos, de 1959, o personagem-cantor de Saudosa Maloca enfim consegue, a muito
custo, arranjar um barraco para morar, no bairro da Mooca, mas perde a
companhia de Matogrosso e de Joca:
“Por
onde andará
Joca
e Matogrosso
Aqueles
dois amigos
Que
não quis em acompanhar?
Andarão
jogados na Avenida São João
Ou
vendo a sol quadrado
Na
detenção”.
Se em Pafunça, o desamor implicava a perda de
identidade de quem continuava amando, em Abrigo de Vagabundos o desejo pelo
reencontro sugere a solidariedade, desejando a relação inversa:
“Minha
maloca
A
mais linda desse mundo
Ofereço
aos vagabundos
Que
não tem onde dormir”.
Novamente a “maloca”
aparece como refúgio da solidariedade urbana (em Saudosa Maloca isto já
acontecia), escondendo os últimos rostos de uma multidão cada vez mais
solitária. E não se trata apenas dos rostos humanos, mas dos espaços urbanos
que se identificam com eles. Daí as tentativas de Adoniran em reter bairros e
ruas de sua grande “aldeia”:
“Cada
sambinha meu tem uma rua de São Paulo, um bairro”.
Em Saudosa Maloca habita um antigo cortiço de uma rua famosa de São
Paulo, a Rua Aurora. Arnesto mora no Brás. O cantor conseguiu um barraco na
Mooca. E assim vamos: No Morro do Piolho
(em parceria com Jacob de Brito e Carlos Silva, 1959), No Morro da Casa Verde, Um
Samba no Bixiga, Viaduto Santa
Ifigênia (em parceria com Alocin), O
Trem das Onze, via Jaçanã, Vila Esperança
(em parceria com Marcos César, 1968) até chegarmos à senhora marco-zero da vida
paulistana, a Praça da Sé (1978).
Nessa peregrinação o
que o compositor criticava não era o fato de a cidade mudar, mas o modo pelo
qual era demolida:
“A
gente não pode ficar destruindo, demolindo tudo porque os outros desejam
construir outra coisa em seu lugar. Por isso fiz um samba, Viaduto Samba
Ifigênia, que foi um protesto quando ameaçaram demolir o viaduto. Estão
acabando as vilas, os bares, os cortiços”.
Aí está o desabafo de
um homem urbano, amante dos bondes, do cinema, do rádio, dos viadutos. Depois
de afastada a ameaça, o viaduto lá estava, de pé:
“Venha
ver
Venha
ver, Eugênia
Como
ficou bonito
O
viaduto Santa Ifigênia”.
E cada tábua que caía
ia lhe atingindo o coração, seu coração de máscara-produto-de-vozes. Cada rosto
se perdia era parte do seu rosto. Assim, quanto mais sua máscara avançava em
suas andanças, enriquecendo a sua obra, mais tendia a se diluir. Quanto mais
atingia a expressão maior de sua máscara, mais ela corria o risco de se
desintegrar. Este foi o seu drama, o seu drama maior de criação, tensão que
permitiu a produção musical mais rica de sua obra.
Esse momento maior de
Adoniran Barbosa correspondeu ao período de sua maior popularidade, quando o
programa História das Malocas anunciava-o como:
“o
popularíssimo astro do rádio e do circo, do disco e do cinema nacional...”
Como se lê, a máscara
de Adoniran Barbosa estava no seu clímax: um homem de mil faces, de várias
profissões.
Através do rádio,
“Charutinho” tornava-se realmente popularíssimo. O cinema também concentrava-se
nos passos do humorista-compositor. Já em 1946, participava do filme Caídos do Céu, com produção de Ademar
Gonzaga e direção de Luiz de Barros, ao lado de Dercy Gonçalves, Walter Dávila,
Violeta Ferraz e outros. Em 1945, de Pif-Paf,
produção Cinédia, sob a direção de Ademar Gonzaga. Mas foi em 1953 a sua maior
emoção cinematográfica: O Cangaceiro,
com argumento, roteiro e direção de Lima Barreto, com Alberto Ruschel, Marisa
Prado e Milton Ribeiro. Tratava-se de um filme premiado no Festival de Cannes,
e Adoniran não escondeu seu entusiasmo, a sua maior alegria:
“Aquela
da estreia de O Cangaceiro em São
Paulo. Fiquei tão contente que se encontrasse Lampião na rua, eu me acendia com
ele...”.
Além de O Cangaceiro, Adoniran participou de outros filmes: ao lado de Mazzaropi esteve em Candinho (produção Vera Cruz e direção de Abílio Pereira de Almeida), Nadando em Dinheiro e A Carrocinha. Cabe lembrar a sua atuação em Esquina da Ilusão, produção Vera Cruz e direção de Ruggero Jacobi, e em Bruma Seca, de Mário Civelli.
No entanto, o seu papel
no cinema foi discreto, secundário, tanto como ator como colaboração para a
fixação de sua máscara. O rádio, sim, foi a sua escola “risonha e franca” e
palco de seu sucesso. Os grandes prêmios individuais de sua carreira de ator
foram conquistados como intérprete cômico. Adoniran recebeu vários troféus
Roquete Pinto, concedidos pela AFEU (Associação dos Funcionários das Emissoras
Unidas), um dos prêmios mais prestigiados do rádio da época. Foi assim em 1951,
1953, 1958, 1959 e 1965.
A fusão entre o
humorista e o músico, que chegava ao seu ponto crítico nos anos 50, corresponde
também aos primeiros sucessos musicais: em 1951, com o samba Malvina, ganha o 1º lugar no concurso
carnavalesco promovido pelas Lojas Assumpção, em São Paulo; em 1953, com Joga a
Chave. Também em 1951 já havia Saudosa
Maloca, sem muito sucesso. Em 1955, os Demônios da Garoa gravaram-na com
imensa repercussão. O interessante é que Saudosa
Maloca tornava-se êxito musical ao lado do dobrado Quarto Centenário, de Mário Zan e J.M. Alves, canção-exaltação a
São Paulo como o outro dobrado da época, São Paulo Quatrocentão. Não custa lembrar: a Maloca era (é) o avesso da
linguagem apologética e empolarada característica daqueles dobrados, assim como
da respeitosa “valsinha” Lampião de Gás.
Só para se ter uma
ideia do sucesso que começava a chegar podemos cirtar os títulos de duas
reportagens da época, exatamente de uma revista muito famosa, a Revista do Rádio, editada no Rio de
Janeiro: uma de 15 de outubro de 1955, “Só faltava fazer sambas...e Adoniran
também fez”; outra, de 28 de agosto de 1959, “Humorista faz músicas tristes”.
Esses títulos, inclusive, explicitavam o momento em que Adoniran estreitava os
laços entre o intérprete cômico e o músico.
Contudo, o artista do
avesso carregava também o seu avesso: sua popularidade crescente era
inversamente proporcional à sua remuneração como artista. Uma das alternativas
para aumentos seus rendimentos foi o circo. Na fase das Histórias das Malocas,
Adoniran levava a sua troupe radiofônica para a periferia da cidade. Conta
Mathilde, sua mulher durante quarenta anos, que era ela quem depositava o
dinheiro arrecadado naqueles espetáculos circenses; uma quantidade de notas
miúdas, muitas vezes sujas, que numa certa ocasião o caixa bancário negou-se a
aceitar. Pelo que parece, o circo apresentou-se ao nosso cantor como uma saída
para auxilia-lo a constituir uma vida mais digna. Mais uma vez é Mathilde quem
fala:
“Acontece
que a gente era muito pobre, porque ninguém fazia shows como hoje. Ele só
cantava em circo e de vez em quando no Cine-Teatro lá no Brás, ou no Coliseu,
no Largo do Arouche”.
Nesta entrevista
Mathilde refere-se a um período inclusive anterior às Histórias das Malocas,
que sob a direção de Adoniran percorreram as redondezas pobres da cidade.
Resta-nos perguntas como no samba de Adoniran:
“Tocar na banda
Pra
ganhar o quê?
Duas
maviolas
E
um cigarro Iolanda”
(Tocar na Banda, 1965)
Entretanto, Adoniran continuou a tocar na banda, ganhando mais que duas maviolas (goiabinha coberta com açúcar cristalizado) e um cigarro Iolanda, mas não o bastante e o esperado:
“Minha
maior decepção foi pensar que um dia estaria na ‘vida mansa’. Depois de mais de
20 anos no rádio, preciso dar duro, diariamente para ganhar o meu pão e o osso
do meu cachorro...” (1959).
Desse modo, ei-lo
cantando por aí zombador, “sarcástico, malicioso e emocionado”, como ele
próprio dizia, e lírico, afinando pelo inverso a banda dos contentes, brincando
com as suas próprias perdas pelas ruas de sua grande cidade.
Este é o momento mais
lato de um multifacetado caminho: quanto mais avança mais se desfigura. Ele
sabia:
“Eu
que sempre fui um homem das ruas, quase não saio mais de casa”.
Foi o que disse numa de suas últimas entrevistas.
Publicado originalmente
por KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
Um comentário:
''Saudosa Maloca'' na interpretação de Elis Regina é tocante,''Tiro ao Álvaro'' também.Clara Nunes cantando ''Iracema'' também é de doer de bonito.
Postar um comentário