Capítulo 6: Nasce o Cinema Novo
Por Paulo
César Saraceni
O “movimento” não seria mais nacional, tínhamos que
aproveitar nossa ida á Europa. A “geração Rosati”, os críticos franceses do Cahiers
du Cinéma, que queriam fazer filmes, Jean Rouch e o canadense Michel Brout,
craque de câmera na mão e som direto, os independentes do mundo inteiro. Tinha
que ser um movimento internacional. Aproveitando Paulo Carneiro na Unesco e o
Almeida Sales como adido cultural em Paris. E, sobretudo, o guru de todo o
movimento devia ser Gianni Amico. Ninguém seria melhor que ele para introduzir
esse cinema novo recém-nascido.
Eu continuava na dúvida, mas no fundo queria voltar para o
Brasil. Mas não podia deixar a Europa naquele momento em que estava acontecendo
tudo. Mas, se eu voltasse, o Joaquim e o Gustavo ficariam e tocariam o bonde de
lá, fazendo a ligação. Mas, e se eu não convencesse a Edla e os Taylor a fazer
um novo roteiro e escolher a equipe e o elenco? Seria uma grande frustração.
Talvez o melhor fosse ficar e aproveitar o sucesso de Arraial e fazer um
filme na Europa? Sei lá. Difícil decisão. Almeida Sales e Rudá chegaram para
uma estadia em Roma, ficaram com a gente na Via Marco Valerio Corvo, Cinecittá.
Liliane Pogessi se esmerou no tratamento ao presidente e ao Rudá – foram dias
divertidos e Roma, ensolarada, oferecia muita beleza nas suas cores de terra de
Siena a dois grandes brasileiros. Eu, Gustavo e Geraldo levamos o presidente da
Cinemateca Brasileira e o Rudá a um restaurante no Trastevere. Comemos a
verdadeira comida romana. Eu exagerei na comida e na bebida. Me senti mal. O
presidente, glória de gentileza e sensibilidade, quis conhecer a Cucina do
Luigi – fomos. Tomamos mais vinhio. Depois fomos leva-los à Stazione Termini.
Partiram para Paris. Grande presidente, o Almeida Sales enchia nossos corações
de entusiasmo, fé e amor.
De noite, passei mal – uma dor de cabeça como jamais sentiria. Lisbeth, a
namorada holandesa de Gustavo, tratou-me. Mas a dor não passava. Chamou um
médico amigo, quer achou que eu estava com meningite, chamou a ambulância e
telefonaram para os Franchina, que logo me arranjaram um hospital. Fui cuidado
com muita atenção e preocupação – fizeram mil exames. Acordei de manhã com dez
médicos me examinando, achando estranho o meu modo de falar. Disse-lhes que eu
não era italiano. Mas eles nem davam bola, me faziam andar e ficavam, os
médicos, me olhando sem chegar a conclusão alguma.
Recebia muitas visitas: as atrizes do Centro, o pessoal do
Rosati, entre outros. Os enfermeiros napolitanos, que viviam cantando belas e
doces canções de sua terra, ficavam de olho nas belas ragazze e diziam que os
médicos estavam por fora: “O que você tem é excesso sexual”. A notícia da minha
doença chegou a Paris. Todos estavam preocupados. Ninguém sabia o quw era.
O diretor do hospital veio me ver, ele era primo da Gina,
mãe do Sandro Franchina. Examinou-me detalhadamente e mandou tirar líquido da
minha espinha. Foi pior que tortura – uma dor fina e gelada. Depois deu ordens
expressas para eu permanecer no leito e em posição fetal durante 24
horas. Fiquei horas assim por puro medo, mas puto da vida. Horas depois, chegam
os jovens médicos querem novos exames. Digo-lhes que o diretor recomendara que
eu não saísse da cama, tirara líquido da espinha. Eles riram do conservadorismo
do diretor e, modernos, me levaram para fazer um eletrencefalograma. Claro que
não ia dar porra nenhuma. Eu suave em bicas, acabei desmaiando. Levaram-me para
a cama. Voltei à minha posição fetal, detestando todos os médicos e a medicina.
Duas horas depois, sem conseguir dormir, ouço nosso caro
napolitano gritando: “Saracelli! Saracelli!” Na quinta vez, me lembro de Mário
Carneiro em Bilbao – Medalha de Ouro para Pablo Saracelli. Respondo sonno
Saraceni! O enfermeiro diz:
- Claro, claro, é você mesmo, venha!
- Mas o diretor mandou ficar neste suplício fetal por 24
horas, porra!
O enfermeiro diz:
- Saraceni, o terror das mulheres romanas, foi o próprio
diretor quem me mandou te chamar. Vamos, eu te ajudo.
Saí lentamente. Havia uma escada enorme. Pensei em Kafka:
- Você tem certeza que o diretor mandou me chamar?
- Você acha que estou louco? - respondeu.
Voltei a suar, quis recursar, voltar, já estava no meio da
escada. Comecei a rezar...Naquele tempo eu não sabia rezar...Pedi a Deus.
Apareceu o diretor, felizmente, e gritou:
- Essa não, esse é Saraceni, não pode levantar da cama!
Acho que desmaiei de novo. Quando dei por mim, estava na
cama e em posição fetal.
Foram mais de quinze dias. “Chega! Amanhã chamo o Gouthier e
volto pro Brasil para enfrentar A casa assassinada. Não dá mais para adiar. Mas
quero uma passagem de avião. Vou me tratar no Brasil. Quem sabe vou a Bahia ver
a Menininha do Gantois...” Eu tinha finalmente decidido: que me importa a Edla
van Steen! Faço o roteiro, equipe e elenco. Imagine se vou fazer sem Mário
Carneiro e Ferdy Carneiro? Faço em cinemascope – cinemascope íntimo, na mão, se
for preciso.
Deixei o hospital com um documento isentando de responsabilidade a equipe, pois
saí sem terminar os exames e sem nenhum diagnóstico. E com as recomendações de
que, se eu sentisse alguma coisa, deveria voltar correndo. Fiquei três dias em
casa, deitado na cama, morrendo de medo. Levantei-me, fui ao quarto do Geraldo
e do Gustavo. Voltei com duas garrafas de bom vinho tinto. Em meia hora estava
pronto para sair. Fui ao Rosati e encontrei Alberto Ruschel, continuei bebendo
e soube que ele ia visitar Lea Massari. Disse lhe: - Vou contigo. Tenho uma
carta de Lelena Cardoso. Talvez seja para ela fazer a Nina, protagonista de A
casa assassinada. Fomos.
Lea Massari morava no Parioli. No caminho, eu disse a
Ruschel que estava decidido a voltar para o Brasil, tinha conseguido uma
passagem de avião e ia tentar um longa-metragem.
- Acho que estou pronto.
- Mas você não estava doente?- perguntou-me.
- Nada que um porre não possa curar.
Naquela mesma semana eu partiria de volta. Lea nos recebeu
sem demonstrar qualquer surpresa por eu estar com Ruschel. No Rio é assim, não
é?, perguntou. Entreguei-lhe a carta de Lelena. Adorou. Ficou emocionada. E
começou a botar discos de música brasileira. Falava português quase sem
sotaque, com gírias de Ipanema, ficamos espantados. Comentava as impressões
maravilhosas que tinha do tempo em que estivera no Brasil, de Lelema e suas
amigas, de Lúcio e seus amigos. Prometeu voltar. Resolvemos dançar um chorinho
de Garoto, depois um samba-canção, passamos para a Bossa Nova do Tom e
finalmente um samba-enredo. Lea Massari dançava como uma porta-bandeira, ou
passista de categoria. É brasileira de alma, incrível. Eu estava ficando
apaixonado. Ela também. Alberto Ruschel percebeu e se mandou. Tocava um samba
encantado, envolvente, amoroso – nos beijamos muito, fizemos juras de amor. “Só
Lea pode ser Nina. Tá na cara. A Edla que vá lamber sabão”.
Todo mundo estava me procurando. Depois de três dias,
resolvi aparecer. Fui à embaixada. Gouthier estava preocupado, já com a
passagem na mão, com data marcada para dali a dois dias. Ninguém sabia dizer
onde eu estava. Geraldo sabia, mas moitou. Gustavo, dividido entre a holandesa
Lisbeth e a francesa Martine, estava sumido também. Comecei as despedidas.
Murilo Mendes e Saudade., Nino e Gina Franchina, o pessoal do Rosati, da Cucina
de Luigi, e todos os amigos. Luís Sérgio Person, que ia me substituía no
Centro, chegara. Se tudo der certo, direi que frequentei o Centro. Lea foi um
amor o tempo todo. Antes de partir, ainda recebo carta de Joaquim Pedro e uma
entrevista que dei em Paris para Zuenir Ventura.
Eis a carta de Joaquim Pedro.
Paris, 12/7/61
Paulo querido
Foi um alívio falar com você. Eu tinha combinado com o
Otávio de irmos juntos pra Roma, hoje á noite, ver o que tinha acontecido e
conversar direto com você, porque as notícias que vieram pela Regina Castelo
Branco e o Gouthier deixaram a gente em pânico. Otávio acho que vai de qualquer
maneira. Eu desisti, depois que falei com você, entre outros motivos por causa
de dinheiro. Minha bolsa acabou. Recebi o dinheiro da passagem de segunda
classe e com isso vou me aguentando enquanto decido o que fazer. Se o Roberto
Assunção confirmar o convite que me fez, devo ir para Milão no princípio de
setembro. O Couro de Gato está quase pronto. Já completei a sonorização e
talvez dia 14 agora fique pronta a primeira cópia. (Quando cheguei a Sta.
Margherita peguei o Gordini com o trabalho parado, esperando uns rushes do
Brasil. Trabalhei uma semana com a montadora dele, esperei uns quinze dias por
vaga no estúdio para gravar o som que faltava e combinei, meio vagamente ainda,
que daria a ele os direitos do Couro para o mercado francês em troca do
pagamento das despesas de laboratório. O filme dele, Le tout pour le tout, está
muito curto e vai levar dois complementos, um francês e o meu.) Tive de pagar
também uma porção de coisas e gastei quase todo o dinheiro que o Itamarati me
deu adiantado por uma cópia 16mm. Vou mandar essa cópia para o Rio, pela mala
diplomática e candidatar o filme ao festival de Bérgamo. O filme do Mário sobre
gravura, que devia representar o Brasil no festival, acho que ainda não começou.
Depois de Sta. Margherita, virei o cu pra lua. Um dos diretores associados da
fundação Rockfeller me ofereceu uma bolsa que dá margem para qualquer programa
de estudos. Ainda não decidi nada por falta de melhores informações, mas o que
eu quero fazer parece difícil: estudar uma porção de filmes em moviola, fazer
um curso rápido de fotografia com câmera leve, estudar um pouco de técnica de
direção de atores. A primeira resposta que recebi, da Inglaterra, foi
inteiramente negativa. Vou tentar a Itália, antes de pensar no Canadá (onde
parece mais viável o curso de fotografia, pelo que nos disse o Jean Rouch) e
nos Estados Unidos. Prefiro não sair da Europa e voltar para o Brasil o mais
depressa possível, no máximo no fim do ano que vem.
Minha passagem para Milão, na volta de Sta. Margherita,
também foi bastante útil. Combinei mais ou menos, com o Squinzi e o Roberto
Assunção, dar um jeito de trazer um crítico moço do Brasil para fazer um curso
de um ano em Milão, no Centro di Studi Cinematografici e na Universidade
Católica (nególcio de Columbianum é com padre mesmo). Escrevi para o Paulo
Emílio e ele propôs o Jean- Claude Bernardet. Já mandei a sugestão para Milão e
estou esperando a resposta. O Squinzi falou também na possibilidade de levar
gente do Centro Sperimentale para fazer lá uns cursos de férias. Pergunta ao
Gustavo se isso poderia interessar. Comeceri também umas conversas de
co-produção, naquela base que nos interessa: mistura de nacionalidade só no
dinheiro, material e talvez equipe técnica. Criação toda brasileira. Se eu
voltar para lá vou intensificar a cantada com a colaboração do pessoal do
Brasil. Escrevi pra eles, pedindo projetos. Ninguém respondeu até agora.
Me mudei para um apartamentinho bem simpático, dúplex,
imagina, que fica em 36, rua des Boulangers, 5ème. Não tem banho, nem telefone
nem água quente, mas só custa 120 NF por mês e é independente. Continuo na
mesma merda de comer quem não interessa, às vezes só pra não ser muito
grosseiro. Mas o Sena agora fica pertinho e eu vou pra lá, recuperar a alma. Se
vocês escreverem, mandem as cartas para esse endereço novo. Diga à Nili pra
passar uns dias no apartamento. Seria bom se a gente pudesse conversar antes de
você enfrentar o Brasil. Diz ao Gustavo pra vir com você ou sozinho, quando ele
quiser. Pede a ele ou manda você mesmo, pelo Otávio ou pelo correio,
informações sobre o curso de fotografia do Centro. Tem moviola e cinemateca no
centro?
O Guido não mandou mais notícias sobre a carreira do Arraial
no festival de Praga. Vou escrever de novo para ele. Um abraço grande pra você,
Gustavo e Geraldo.
Escreva logo que você chegar ao Brasil.
Joaquim
Eu estava ridículo quando saí da Via Marco Corvo. Cheio de
malas, cartazes e prêmios. Sandro, Guido, Liliane e suas filhas me gozavam
muito. Ambiente alegre e festivo. Sandro Franchina troca comigo um blazer que
Frank Sinatra deixara em sua casa, por uma camisa da Esplanada que ele gostava.
Fizemos muitas fotos. Liliane, que tinha chorado, agora ria muito. Luís Sérgio
Person e Geraldo chegaram para a despedida. Gustavo estava fora de Roma.
O carro de Lea buzinava lá embaixo. Ela riu muito quando me
viu daquela forma ridícula, mas abafei seus risos com mil beijos. Partimos para
o aeroporto de Fiumiccino. Eu estava feliz e cantei Caymmi: “Estava desprevenida
e por acaso eu também”. Aconteceu um novo amor, que não podia acontecer: “Quem
inventou o amor não fui eu, não fui eu, não fui eu, não fui eu, nem ninguém”.
Nos beijamos muito, quase perco o avião. Parti. Lá de cima
ainda olhe para ela – vi Lea chorando ou foi minha imaginação? Foi um cometa,
passagem rápida, rapidíssima – O Viajante.
Tomei dois uísques e uma bola. Dormi. Quando acordei, já era
Brasil: amarelão e vermelhão na janela da Panair.
Afinal, qual foi a doença que eu tive? Estou ótimo. Deve ter sido Deus me
empurrando de volta ao Brasil. Ok, mas Lea estava no programa? São caminhos de
Deus, como diria Otávio de Faria, Robert Bresson e Marcos Konder Reis.
Tenho que meter a cara no Brasil para fazer A casa
assassinada esquecer a Itália. Mas como esquecer Lea?
No Zacatecas, foi uma festa. Papai e mamãe, queridos,
estavam melhores do que nunca. Muita emoção com papai. Sérgio providenciando tudo
à moda dele e Norma chorando. Muita alegria e o telefone tocando sem parar. Marquei
mil encontros, não sabia por onde começar. Nenhum sinal de doença. Edla van
Steen já tinha ligado duas vezes, mas eu continuava querendo Lea para o papel
de Nina. Mas aí o Belo Ghigia me telefona convidando para ir à sua casa,
correndo, que ele tinha uma surpresa. Fui, pensando que fosse Ana Letícia.
Passei pelo Largo do Machado, pelo Lamas. O Zé Henrique Belo, o Ghigia, morava
com Climene, num edifício no Morro da Viúva, com bela vista para o mar do
Flamengo, as montanhas de Niterói ao fundo. Muitos abraços, cervejinha gelada,
João Gilberto e Tom na vitrola, mas nada de surpresa chegar. Eu achava que era
Ana Letícia, só podia ser. Não tinha telefonado e ela era amiga do Ghigia. Só
podia ser ela, como estaria?
Toca a campainha, entra a surpresa – Nara Leão, a musa da
Bossa Nova.
Nosso romance começou tranquilo como os acordes de Chove
na roseira, do Tom. Íamos ao cinema, ouvíamos Bossa Nova e conversávamos
muito no seu famoso apartamento na avenida Atlântica.
Certa noite, em fins de agosto, fazia frio no Rio e
estávamos agarradinhos no sofá quando tocam a campainha e entram Tom, Vinícius
e João Gilberto. Tinham acabado de mixar o terceiro disco – João Gilberto.
Estavam felizes, tinha sido duro, haviam, brigado muito, mas chegaram a um
acordo e estavam comemorando. Bebemos muito uísque. João cantou, Nara tocou
violão, Vinícius e Tom contaram histórias engraçadíssimas, e o melhor ficou por
conta de João Gilberto, que começou a dançar e sapatear – é o rei do ritmo.
Sapateia mais que Fred Astaire, Gene Kelly e Zé Medeiros juntos. Só se compara
ao meu irmão Sérgio.
Revi os amigos, me senti em casa, li o roteiro de Lúcio e
gostei muito (o do Millôr Fernandes eu odiei). Disse aos Taylor que faria novo
roteiro, e só depois de pronto escolheria o elenco e a equipe. O roteiro viria
primeiro. Lúcio Cardoso riu muito e aprovou. Gláuber, esse grande irmão, já
estava transando com Edla. Ela estava montando Barravento. Vi o copião e
adorei, estava ali o Cinema Novo! Mas Edla não podia montar o filme, eles
trepavam na mesa da moviola, era excitante e Barravento ficava cada vez mais
confuso. Namorei um pouco Edla também, quando deu uma confusão com Helena Inês
na Bahia. Gláuber partiu morto de ciúmes e o mesmo fez Lolo Pérsio, marido de
Edla, que a levou. Foram para São Paulo e esqueceram o Rio de Janeiro, A
casa assassinada e Barravento.
Fiquei namorando Nara e saí algumas vezes com Danuza e
Antônio Maria. Uma semana depois de minha chegada ao Brasil, Jânio Quadros renúncia.
Brizola resiste no Rio Grande do Sul à tentativa de golpe da UDN e dos
militares.
Guerra civil nas ruas. Jango está na China e não pode
voltar. Todo apoio a Brizola e aos democratas do país.
No meio das bombas de gás lacrimogênio encontro dr. Lúcio
Costa na porta do Vermelhinho. Nos abraçamos muito e, indiferente às correrias
da população e das bombas, contei-lhe minha viagem a Roma. Ele me falou de
Brasília e achava graça nas janelas do prédio da ABI, onde, ao ruído de cada
bomba lançada, apareciam várias cabecinhas espantadas. “E Helena e Lili?”,
perguntei. Marcamos um encontro em sua casa. Dr. Lúcio continuou caminhando,
indiferente às bombas e aos acontecimentos. Fiquei olhando-o desaparecer, imune
à guerra civil.
Gláuber Rocha voltou da Bahia e me telefonou, queria me
entrevistar para o SDJB, queria que eu desse um depoimento sobre minhas
impressões europeias e os prêmios de Arraial. Marcamos no Amarelinho. Bombas
caíam cada vez mais perto. Porradas nas ruas entre os estudantes e a polícia de
Lacerda. Fui falando da Europa e vendo as manifestações. Ás vezes aplaudíamos
os estudantes, xingávamos a polícia, mas Gláuber, como bom jornalista, ouvia e
anotava tudo.
“O negócio é juntar Jean Rouch com Rossellini. Uma ideia na
cabeça e uma câmera na mão”. Gláuber gostou, saiu usando, a frase que virou
dele também, de tanto que ele espalhou. No seu livro A revolução do Cinema
Novo, ele diz que a frase era minha, eu já tinha até esquecido. Gláuber sempre
foi leal. Contou que quase matou Helena Inês e queria ficar com Paloma.
Dois policiais estavam batendo muito numa jovem, saímos do bar e botamos os
policiais para correr. Vieram outros e, com cassetetes, nos encheram de
porrada. Corremos. Bombas, os olhos ardiam, fiquei preocupado com minha cabeça.
No dia seguinte fui ao médico. Dr. Clementino Fraga me examinou e achou que era
estresse. “Uma semana de cama e repouso, e estarás novo em folha. Com 27 anos,
dá para o gasto”. Saí dali pensando em Gláuber. Que loucos fomos. Podíamos ter
morrido, mas acho que o Manifesto do Cinema Novo vai sair.
Fechei-me em casa, só atendendo aos telefonemas de Nara. Ela vinha me visitar,
mas ficava pouco tempo. Eu escrevia sem parar. Em uma semana, num estado
febril, escrevi o roteiro de A casa assassinada, adaptação do genial
romance de Lúcio Cardoso. Esse estado febril me permitiu fazer uma síntese
louca de 35 páginas de um livro de quase quinhentas, inteiramente fiel ao autor
e sua obra, mantendo (e isso foi o melhor) o personagem Timóteo de corpo
inteiro, enquanto no roteiro de Lúcio só aparecia com seus anéis e suas joias
(e nem isso no roteiro de Millôr). Fiquei besta comigo mesmo, e mais ainda
quando Lúcio o aprovou. Foi com essas 35 páginas que realizei o filme, dez anos
depois, em 1971.
Com o desaparecimento de Edla e a renúncia de Jânio Quadros, desapareceram
também os co-produtores paulistas. Os Taylor ficaram sozinhos e com medo.
Tínhamos que procurar novos produtores, e o projeto foi adiado. Fiquei pensando
em Lea, morri de saudades dela. Ela daria uma Nina genial.
Telefonei para Nara, fomos encontrar Marcos Konder e Lígia
Moraes ao Alcazar. Bebemos muito. De madrugada, Lígia nos convidou para ir até
a casa dela na rua das Acácias, onde Vinícius passou sua infância e adolescência.
Chegamos lá e tivemos uma bela surpresa. Tom e Vinícius
estavam bêbados e compondo A distância não existe. Ficamos ouvindo.
Vina olhou para mim. Juro que ele fez aquela letra para mim e Lea.
Mandei a letra para Lea, ela me respondeu que, pela demora
de uma carta minha, a distância devia existir.
Saídos do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil,
esses artigos de Gláuber ficaram sendo o manifesto que tínhamos prometido ao
Reinaldo Jardim, quase dois anos antes. Agora o Cinema Novo tinha até curtas
premiados, Arraial já ia para o seu quinto festival internacional dos
sete que ganharia. Couro de gato começava sua carreira vitoriosa de três
prêmios. Nélson Pereira dos Santos montava Barravento, o primeiro
longa-metragem do Cinema Novo. Já era hora de sair o manifesto. Aberto, sem
nenhum dogma, nenhum preconceito, pedia-se apenas que fosse autoral, sincero,
criativo, revolucionário e que olhasse a realidade social e econômica do Brasil
com vontade de analisa-la, transformá-la num mundo melhor para todos. Mas que,
principalmente, amasse o cinema.
Arraial cinema novo e câmera na mão
Gláuber Rocha
Cinema novo em marcha: volta da Europa Paulo César Saraceni,
após um ano e meio de trabalho com os jovens realizadores italianos, contato
técnico e vivência com o moderno cinema europeu, sucesso de três prêmios
importantes para Arraial do Cabo, criação conjunta com Mário Carneiro.
O cinema brasileiro ganha esse nome: Lima Barreto com seus
documentários e O cangaceiro, Nélson Pereira dos Santos com Rio, 40
graus e Walter Hugo Khouri com Na garganta do Diabo são três nomes
atives que romperam as barreiras tímidas do colonialismo cultural, arrancaram
prêmios e despertaram atenções da crítica. Antes, um documentário de Gérson
Tavares, O Grande Rio, também desviou olhares para o selvagem Brasil. Agora, a
dupla Saraceni & Mário Carneiro. Em três testes diferentes – Bilbao,
Firenze, Santa Margherita – Arraial do Cabo, antes até menosprezado no Brasil,
venceu com facilidade. Na Cinemateca Francesa – diante do grand monde –
cinco minutos de aplausos. No famoso Centro (Academia de Cinema da Itália) é
distinguido pela professora Rosada, como exemplo, e vai a aulas práticas. E
Saraceni não estuda, dá aulas.
II
A descompostura intelectual do cinema brasileiro – sua falta
de prestígio, seu abandono político e econômico, sua tragédia, destinação à
demagogia, aventureirismo, teoria de algibeira – subitamente levanta a cabeça.
O furo de Arraial do Cabo é mais importante para o cinema nacional do
que tudo que se faz agora: as briguinhas, a euforia industrialista, o culto do
ouro corrompido que virá com a co-produção. Incrível, como apenas dois ou três
nomes de nossa crítica – quando possuímos uma grande equipe – se detiveram na
análise desse pequeno filme. Alguns dos nossos maiores homens não viram,
inclusive, Arraial do Cabo. Há muito silêncio duvidoso no ar. Já disse,
em artigo passado, que este documentário – reconhecido na Europa pela crítica
(não é mentira, que até se falou em nomes como os de John Ford e de Luís
Buñuel...) – poderia atemorizar certos tabus humanos e profissionais do mal
iluminado palco cinematográfico de nossa terra, desde quando provava – na
insistência de três prêmios – que não se necessita de milhões para um bom filme;
que cinema moderno é um problema de inteligência, coragem, vivência, sobretudo
sentido de profissionalismo; que cinema moderno é o cinema de autor, por isto é
o cinema independente e para ser isto precisa ser digno (em todas as direções)
e somente os jovens (que é uma questão de verdade e não de idade) podem e estão
aptos para esta revolução que se anuncia no País e já começa a despertar as
ironias iniciais da geração que teve uma oportunidade e não soube aproveitá-la;
já tem uma concorrência de sangue vibrante, de sangue que não se quer diluir,
mas ser derramado na obsessão de libertar o cinema nacional do colonialismo
econômico e intelectual.
III
Não tem a menor importância a reação. É débil e basicamente
não propõe um debate em termos de inteligência. As provocações de certa dupla
crítica não suportam argumentações lógicas. E uma briga em termos de desaforos
não é o modelo mais corajoso, pois seria mesmo uma falta de piedade, caso voz
conjunta de todos os cinenovos investisse contra os dominadores fictícios
deste ainda mais fictício cinema nacional. Se adotados o nome cinemanovo,
não foi por imitação. É porque – certos ou errados – envergonha dizer que fazemos
ou vamos fazer cinema brasileiro ombro a ombro com aqueles que, até agora,
apenas gastaram dinheiro com imponências fracassadas.
É bom que agora se diga a verdade: os chamados filmes sérios
fracassaram nas bilheteria porque eram provincianos, malfeitos,
culturalmente desligados de nossa realidade, covardes nos argumentos e na
realização quadradinha da imitação de cinemateca ou de Hollywood. E é bom,
também que os estrangeiros dinamitadores da Vera Cruz, o bloco profissional dos
coquetéis, das delegações e dos prêmios fabricados e produtores que estouram
orçamentos em pés-de-meia, e diretores improvisados e funcionários de comissões
saibam do seguinte: só existe ilusão neste cinema brasileiro e, salvo o nome
daqueles diretores de trinta já citados, Carlos Manga é o único artesão
respeitável, porque, mesmo na chanchada, realizou uma comunicação com o grande
público, dentro de uma linguagem insegura, às vezes vulgar, mas reveladora de
momentos respeitáveis (e pessoais) nunca antes acontecidos nas famosas produções
de equipe da Vera Cruz, Multifilmes, Maristela – oportunidades industriais
assassinadas pela auto-suficiência e diletantismo dos alunos formados no IDHEC.
O cinenovo brasileiro não quer co-produção, não quer
empréstimos caudalosos, não quer distribuição compulsória. Se a boa-fé de
Flávio Tambellini deseja ajudar os novos cineastas brasileiros, pense no
seguinte:
a) documentários para os jovens, com inteira liberdade de
criação;
b) prestígio para os jovens na carreira do ouro, ou
seja, na disputa de financiamento bancário; o jovem vai entrar sem títulos, sem
o brilhante passado dos veteranos e com roteiros de ideias (o que pode ser
perigoso, caso se deseja, apenas, fomentar a fabricação de filmes...);
c) abrir o INCE aos jovens produtores – fornecendo o
material disponível; fazer com que os laboratórios paralisados, como o do
Ministério da Agricultura, entrem em funcionamento, para servir aos jovens;
desencavar as várias câmaras de filmagem que estão enferrujando em prateleiras
de várias repartições federais (já estamos fazendo um levantamento) e
coloca-las à disposição dos jovens.
Queremos um crédito de confiança, ainda que não seja movido pela
crença no talento, pelo menos seja pela simpatia original que cada homem
civilizado possa ser por esta verdade desmoralizada pelo romantismo: a
juventude acesa para o trabalho.
Não desejamos nada mais. E, caso não apareçam imediatamente
estas ajudas – de elementos que existem e não precisam ser importados -, vamos
fazer nossos filmes de qualquer jeito: de câmara na mão, de câmara 16mm (se não
houver 35 mm), improvisando nas ruas, montando material já existente. Desde Caminhos,
de Paulo Saraceni, e O maquinista, de Marcos Faria, estamos produzindo,
e, agora, já temos dois longas-metragens, inclusive. Os documentários
individuais continuarão. Couro de gato, de Joaquim Pedro, já foi vendido
em Paris; Mário Carneiro vai realizar outro curto, sobre gravadores; Diegues e
David Neves terminam O domingo; Leon Hirszman e Marcos Faria preparam já
um longo, em episódios, para este ano, Favela, com Miguel Borges
e Saulo Pereira de Melo, enquanto Saraceni prepara um longo.
Não, senhores temerosos de perder a coroa, não é para rir. É
para chorar!
Depoimento de Saraceni
Em Santa Margherita, GUSTAVO DAHL, falando aos jornalistas
do mundo inteiro, disse: “Hoje em dia vão ao cinema não mais para se divertir,
não mais para esquecer suas mágoas, e sim para ouvir a voz de um homem”. Esta é
a minha grande impressão da Europa, que, longe ser um continente em decadência,
continua aberta, viva, às grandes conquistas do homem. O movimento dos jovens de
toda a Europa é uma prova disso. A Nouvelle Vague (excelente do ponto de
vista artístico e do de produção), uma renovação completa, errando muitas vezes
mas sempre viva, sempre criando: ALAIN RESNAIS, depois dos fabulosos Nuit et
bruillard e Hiroshima mon amour, sai para um filme com roteiro do
principal nome do novo romance francês, ROBBERT GRILLET, o autor de Labirinto,
que também pretende dedicar-se ao cinema. Este ano mesmo deve começar o seu
primeiro filme. JEAN-LUC GODARD (o mais revolucionário dos jovens franceses),
depois de A bout de souffle (Acossado), mesmo tendo uma fita
interditada pela Censura, realizou seu terceiro filme. O cinema de RESNAIS,
GODARD e ANTONIONI, além de ser grande sucesso de bilheteria, renova
inteiramente o modo de expressão cinematográfica e coloca o cinema não só no
sentido de evolução formal e ideológica, mas também no da conquista, num
plano muito mais elevado do que as outras artes.
Além dos nomes citados da Nouvelle Vague existem outros dois
grandes: FRANÇOIS TRUFFAUT, do excelente Tirer sus le pianiste, e
JACQUES DEMI, de Lola. Poderia citar mais cinquenta novos realizadores
franceses que continuam filmando. É preciso não se esquecer de JEAN ROUCH,
genial diretor de Piramide humaine e Moi um noir, autor de um
cinema-verdade, sem qualquer artifício, cinema sem tripé, sem maquiagem, sem
ambientes que não sejam os reais – Câmara na mão, baixo preço de produção,
para mostrar o verdadeiro rosto e gesto do homem.
O artista existe, o artista cria. Acusa os erros do seu
tempo – o artista integrado no seu espaço, na sua época. O que adianta ficarmos
enterrados nas teorias formalistas de um cinema superado? O cinema é uma arte
jovem feita pelos jovens para os jovens, e o Brasil é um país jovem – VIVA O
BRASIL.
Outro grande cinema é o americano de Nova York, que nada tem
que ver com o cinema de Hollywood. Filmes de baixo preço, sem vendetas. Filmes
empenhados com problema sociais e humanos. CASSAVETES E JOHN MEKAS, dois
grandes. SHADOWS e The guns of the tree, na linha do romancista JACK KEROUAC. A
ligação dos cineastas com os romancistas, longe de tornar o cinema literário,
acaba com todo o complexo de inferioridade que o cinema tinha com as outras
artes. Torna o cinema muito mais puro que os filmes-montagens de PUDOVKIN,
EISENSTEIN, BELA BALAZ, ARHEIN, o cinema perfeitinho dos americanos de 35. O
cinema hoje é livre como a pintura, a música, a escultura, a arquitetura, a
dança e a poesia. O movimento dos jovens (ser jovem não é um problema de idade
e sim de criação) nasce também agora na Inglaterra, no ótimo cinema da Polônia
e no novo movimento anticonformista soviético. E a prova da vitória desse
movimento será a mudança total de linha da nova direção do Festival de Veneza
que, abandonando as vedetas e os grandes diretores de fama internacional,
organizou uma comissão que corresse o mundo inteiro procurando fitas de novos
realizadores. Será um festival dos independentes.
A Itália continua mantendo uma grande média de produção,
duzentas fitas por ano, a maioria co-produção. Mas atravessa uma profunda crise
artística. A produção italiana parece ser a que
economicamente deveria servir de exemplo, é o que pensam os cineastas
brasileiros que foram a Santa Margherita e à Semana do Cinema Brasileiro em
Roma. Não é verdade. Esse sucesso de Cinecittà é de pouca duração e é devido a
três fatores: 1º - os americanos, fugindo do alto custo das produções de
Hollywood, da concorrência na Televisão) é preciso dizer que todos os
americanos já foram ou sonham ir à Itália), do imposto de renda, resolveram
co-produzir na Itália. 2º - a produção italiana assim aproveita a fama dos
grandes atores americanos e também co-produz secretamente com a nova produção
independente francesa, aproveitando o sucesso dos atores franceses – assim, muito
inteligentemente, a co-produção colhe os frutos de uma cinematografia que nasce
e outra que morre. 3º - devido ao sucesso dos famosos criadores de
neo-realismo, hoje em completa decadência. Foi por isto que a principal revista
de cinema da Itália, Cinema 60, acusa a geração dos grandes leões: DE SANTIS,
LATTUADA, GERMI, PIETRANGELI, LIZZANI, ZAMPA, COMENCINI, todos com seus últimos
filmes de péssima qualidade artística: acusou a decadência criadora de DE
SICCA, FELLINI, ZAVATTINI, em La dolce vita e La ciciara.
ROSSELLINI, apesar do bom Viva Italia, está longe de
ROSSELLINI de Paisá, Amore, Viaggio in Italia. Somente VISCONTI, depois
do formal Notta bianca, volta com uma fita digna de Terra trema e Senso,
ROCCO.
O maior nome do cinema italiano e europeu é MICHELANGELO
ANTONIONI. Com três filmes, ele estuda a crise de sentimento da nossa época: Il
grido – o problema existencial de um operário que não pode esquecer um amor
infeliz; L`aventura – um casal que não pode esquecer uma amiga
desaparecida; e La notte, crise de um casal que teme não reconhecer que o amor
acabou entre eles. Tema inteiramente moderno numa sociedade que está perdendo
todos os valores humanos. Os novos diretores italianos somente inteligentes. Os
melhores, MAZELLI VANCINI e BOLOGNINI, estão longe da geração neo-realista e
principalmente muito longe dos novos franceses, americanos e poloneses. Somente
PIER PAOLO PASOLINI, autor dos cenários dos melhores filmes de BOLOGNINI, parece
ter a força de grande cineasta. PASOLINI é o melhor romancista italiano e acaba
de realizar seu primeiro filme que irá para o Festival de Veneza. Dos diretores
já conhecidos, gostei de PICKPOCKET, de Bresson, vi uma retrospectiva genial de
ORSON WELLES – AMBERSSONS, Dama de Xangai, Otelho, Machbeth, de
BUÑUEL – Los olviados e Nazarin. Joseph Losey, dois grandes filmes – Chance meeting e The
criminels. Do cinema japonês, MIZOGUCHI, do ótimo Conto de lua
pálida de agosto, Estrada da vergonha e Ohahuru Dona Galante.
Akira Kurosawa: A vida. Como revelação de cinemateca, Pabst.
Concluindo, quero salientar a grande importância artística e
sociológica do Festival de Santa Margherita, porta aberta para a cinematografia
latino-americana e pela qual os novos argentinos penetraram com sucesso na
Europa. Através de Sta. Margherita nossos filmes, se forem bons, serão curador
do complexo de inferioridade cultural, Gostaria de advertir que Sta. Margherita
é um festival de cultura e não de vedetas...
Idem, ibidem.
Novas Teixeira continuava a mandar correspondência e
críticas das carreiras de Manuel Bandeira e Couro de gato, de Joaquim
Pedro, e de Arraial do Cabo.
Novaes previu e antecipou o movimento do Cinema Novo,
dizendo:
Nunca o cinema brasileiro se apresentou na Europa tão
ambicioso de se exprimir com um natural tão simples, com tanta limpeza e tão
digno desinteresse. Ambição de uma juventude consciente e séria através da qual
se vislumbra um largo horizonte de esperança para um novo cinema nacional.
Juventude sem fórmulas, sem intelectualismos, despretensiosa, mas já com um
estilo. Isto é o que nos parece mais reconfortante e revelador nas fitas quer
acabamos de ver. Dois curtas-metragens e um documentário com as características
comuns de uma elegante discrição, onde se identifica o que já se sabe fazer com
o que se pretende fazer. Chegaram esses três rapazes à realização
cinematográfica depois de um aprendizado de amor. A imaturidade neles nunca é
improvisação inepta, mas conhecimentos ainda não perfeitamente consumado. E os
acertos, que são muitos, nunca são obras do acaso. Frutos são, que já começam a
ser saborosos.
Como indício de um novo cinema brasileiro, parece-nos
extremamente importante o que acabamos de ver na tela da Unesco. Três
cineastas, Joaquim Pedro, Paulo César Saraceni e Mário Carneiro, que evitaram
pacientemente a fase do amadorismo e iniciam com armas limpas e seguras a sua
vida profissional.
A característica mais importante desses três rapazes é a sua
brasilidade, que não é, como se sabe, sinônimo de cangaço, mas o ato de
integração na arte universal da sensibilidade brasileira e tudo que a
diferencia e particulariza como expressão. O que significou para as letras e
artes nacionais a Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922 poderia repetir-se
no cinema, aventamos nós então. Data de aí, de 1922, a independência do Brasil.
A boutade não é nossa, mas aceitamo-la como se nossa fosse. O Mário de Andrade
do celuloide talvez se encontre entre esses jovens cineastas. Certo é que ainda
não têm no cinema, em fins de 1961, a mesma importância que seus precursores em
1922, nas letras e nas artes, mas igual estrela os guia no caminho da
expressão. Pertencem à mesma família. Outros rapazes existem no novo cinema do
Brasil. Não os citamos pelo seu nome porque ainda não lhes vimos as obras. Que
eles nos desculpem.
É impressionante a intuição do crítico português que lutou
na guerra civil espanhola, amigo queridíssimo de Luís Buñuel e Almeida Sales.
Que acreditou nos filmes que viu, apenas três curtas, e acreditou nas palavras
proféticas de Gustavo Dahl em Santa Margherita.
O mesmo fez mais tarde Paulo Emílio com a protagonista de
Porto das Caixas, chamando-a de Capitu.
O namoro com Narinha estava firme, eu já ia me esquecendo da
frustração e do adiamento da realização da Casa assassinada e de Lea e de Roma.
Procurava viver aquele momento único na cultura brasileira. Tancredo Neves
tinha dado mais uma de gênio político, arranjando um parlamentarismo tampão,
para Jango voltar, assumir a Presidência – sem poder ainda – e logo depois
fazer um plebiscito e recuperar o poder.
Voltamos a sair com Danuza, que estava linda e feliz, ao lado do gordo Antônio
Maria, inteligência rara. O gordo era corajoso, de briga. Samuel Wainer vinha
com a força toda de seu tempo com Getúlio. Agora com Jango, mas o amor de
Denuza falou mais forte. Narinha tinha adoração pro Danuza. Íamos de bar em
bar, lembrando as músicas que cantávamos juntos. Danuza seria a musa de Gláuber
mais tarde – para esquecer Nina-Lea, só duas musas assim.
Antônio Maria tinha fama de cheirar pó, mas nunca vi, se fazia era um
profissional, discretíssimo. Eu e Nara saíamos também com Vinícius e Lucinha
Proença. Íamos a Petrópolis, em casa de Lucinha. Casa agradável e conhecida
através dos livros de Otávio de Faria. Eu imaginava seus personagens jogando
vôlei em Paquetinha. A terrível Reni procurando condenar padre Luís e seu
orgulho ao inferno.
Era a Paquetinha para se filmar a “Tragédia Burguesa”.
Passamos, eu e Vinícius, a noite e a madrugada até a manhã de muito sol,
conversando sobre tudo, mas a maior parte do tempo foi sobre o cinema, Otávio
de Faria e depois a “Tragédia Burguesa” – Vinícius foi amigo de Otávio, pois
este último chegava a fazer prova por Vinícius na Faculdade de Direito do
Catete. Poeta, crítico de cinema, defensor do cinema mudo, era discípulo
querido de Otávio. Lucinha era sobrinha de Otávio e seu marido, Vargas era um
craque na Bolsa e nos negócios, e estava administrando muito bem a renda da
família Faria/Proença. Logo, Otávio não gostou nada quando Vinícius enfeitiçou
Lucinha. Otávio não gostou – chamou-o de poeta de bar da esquina. Vina sabia
disso e respeitava muito Otávio, mas arrasou a “Tragédia Burguesa”. Demoliu-a,
ridicularizou-a. Eu defendi até não aguentar mais. Era impossível acompanhar
Vinícius no uísque.
Narinha dormia. Um trauma, decorrente de sua ligação com
Ronaldo Bôscoli, fazia com que ficasse tensa demais. Ela foi perdendo o medo
aos poucos, relaxando, se convencendo de que não existia tanto pecado humano.
Não era humano. O sexo podia ser o retrato da morte, mas também o retrato da
vida. Ela foi relaxando, relaxando...Estava tão bom, mas ela cortou, foi fazer
análise, sumiu.
Fiquei meio sem saber por quê. Sofri.
O que senti do toque foi que eu tinha que começar a pensar
num filme, já que tinha vindo da Itália para filmar.
A situação política estava esquentando, caminhando para a esquerda. Brizola
ficou forte. Darcy Ribeiro adquiriu a condição de timoneiro da educação e
cultura. O CPC crescia. Ali na Praia do Flamengo, no belo teatro da sede da
UNE, faziam músicas de protesto, teatro popular e armavam o roteiro de Cinco
vezes favela. O pessoal de São Paulo veio para cá. Oduvaldo Viana Filho, Milton
Gonçalves, Flávio Migliaccio, Fernando Peixoto, Chico Xavier, quase todo o
Arena para encontrar os cariocas, Armando Costa, João das Neves, Sérgio
Ricardo, Carlos Lyra, Guarnieri, Leon Hirszman, Eduardo Coutinho, Antônio
Carlos Fontoura, Marcos Faria, Miguel Borges, Carlos Estevão, Arnaldo Jabor.
Eu ficava meio desligado, via que o que eu queria fazer
tinha outras arestas. Vivia lá, mas continuava a frequentar a mesa do Otávio, a
casa de Alair, o Beco das Garrafas, o ateliê de Aluísio Magalhães, o Albino e
suas mulatas, o samba de morro, o futebol do Fluminense. Continuava a ver o
fervor dessa geração criadora, sentido a década promissora.
Mário Carneiro ia se casar com Marília, Gláuber se separava
de Helena Inês, Sérgil, meu irmão, era o advogado dos dois. E ficou maluco
comigo quando a pedido de Gláuber, raptei Paloma e a levei para a casa de minha
mãe, no Zacatecas. As brigas de Helena e Gláuber eram terríveis, eu não podia
deixar Paloma ali naquele caos. Helena nunca ficou contra mim, e Gláuber me
considerava um irmão. Enquanto isso, Nélson montava Barravento.
A Bossa Nova se dividia entre a leva e a de protesto. O Rio estava em
movimento. Resolvi escrever um roteiro do que eu estava vendo e vivendo, era a
continuação do roteiro italiano sobre Mussolini e um exercício do Desafio:
Amor de gente moça. Começava assim:
Marcelo se levanta da cama onde acabara de fazer amor com
Ada. São jovens. Marcelo coloca um disco, pergunta para Ada: Mozart? Ou Jobim?
Ela pede Mozart, ele põe Insensatez com João Gilberto cantando, volta
para a cama e continuam fazendo amor. Enquanto isso, duas turmas se encontram
na praia de Copacabana, em frente ao Alcazar. A turma da UNE vem cobrar dos
estudantes do Lacerda a posição reacionária. Trocam slogans de esquerda versus
a direita. Porrada come até a polícia chegar.
Numa sequência, Marcelo vai com uma linda mulata (Luisa
Maranhão), influenciado pelo genial copião de Barravento. A mulata chamava-se
Lindaura. Mais tarde, quando eu morava no hotel Plaza com Isabela, ela, com
ataque de ciúmes, rasgou esse roteiro pensando tratar-se da Lindaura, rainha do
caldo verde do Beco da Fome, na esquina de Viveiros de Castro com Prado Júnior.
Fernando Campos me procurou com ideia de um filme e umas
fotos de Irma Álvareza, careca, no Festival de Veneza. Irma tinha cortado o
cabelo para fazer o filme, que ficou inacabado, Cavalo de Oxumaré, de
Ruy Guerra, o mesmo que fez Gláuber acusa-lo de plagiador. Estava lindíssima e
começamos a querer aproveitá-la num outro filme.
Íamos aproveitar a beleza daquele rosto magnífico num filme
de Zona Norte. Irma seria filha de um contínuo do Ministério do Trabalho cuja
mulher tinha um terreiro de umbanda em Queimados, e lá uma bela Iansã baixava
no corpo de sua filha. O importante era Irma. Eles teriam que ir para Brasília,
mas não queriam deixar o terreiro.
Nesta época, a polêmica ideológica vinha aumentando, também
as polêmicas entre filmes baratos com câmera na mão e aqueles de produção,
industriais. Arraial era usado para polemizar.
Dizíamos: a realidade do Brasil é esta, pobre e cheia de
conflitos, não adianta fazer filmes caros, não adianta criar uma indústria
cópia de Hollywood. Vamos fazer filmes artísticos, culturais, que deem o
retrato verdadeiro deste nosso país e do nosso continente. Vamos competir e concorrer
com qualidade, com nossas ideias, nossos temas e nosso tesão. Ideia na cabeça e
câmera na mão. Íamos formar um público para nossos filmes- um público que
acreditasse nas nossas ideias, nas nossas emoções e na nossa revolução.
Era também um combate ideológico. E Arraial do Cabo, Aruanda,
de Linduarte Noronha, e Couro de gato eram os pivôs da polêmica.
Rudá de Andrade tinha convencido Paulo Emílio e Almeida
Sales a fazerem a apresentação dos curtas brasileiras na Bienal de São Paulo,
em novembro de 1961. Os filmes seriam: Aruanda, de Linduarte Noronha, da
Paraíba; Arraial do Cabo, de Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, do
Rio de Janeiro; A rampa, de Luís Paulino dos Santos, da Bahia; Apelo,
de Trigueirinho Neto, de São Paulo; O poeta do castelo e O mestre de
Apicucos, de Joaquim Pedro de Andrade, do Rio de Janeiro; Couro de gato,
do mesmo Joaquim Pedro; Igreja, de Sílvio Robato, da Bahia; e Desejo
abstrato, de Roberto Müller, de São Paulo.
A grande expectativa em torno dos filmes encheu as salas e
fomentou discussões. Rudá de Andrade, depois da exibição de Couro de gato,
lançou oficialmente o Cinema Novo. Novembro de 1961.
Eu e Gláuber entramos numa briga de quase porrada com César
Memolo e Carlos Alberto de Sousa Barros. Era a indústria contra a arte. Arte é
plural, dá para todos. Indústria é filme de produtor. Imposição de tema,
equipe, linguagem, etc;
Rudá defendia os filmes em que a criação e a emoção eram o
que interessava. Filmes de baixo custo – ideia na cabeça e câmera na mão. César
Memolo contra-argumentava dizendo que estávamos na era da bomba atômica, e a
gente querendo fazer filmes com câmera na mão. Estávamos loucos.
Paulo Emílio não se manifestou, ficou aguardando para ver no
que dava a continuidade daqueles filmes. Mas gostou da polêmica, Almeida Sales
ficou dividido. Escreveu um artigo favorável, mas considerou todo mundo como
fazendo cinema novo. Não viu a ruptura, veria mais tarde.
Os jovens, principalmente, ficaram do nosso lado.
Gláuber estava cheio de ideias e levando a maior fé.
Barravento estava pronto e tinha recebido convite de Gianni Amico, com
passagem, para o Festival de Porreta Terme.
Gustavo e Gianni Amico estavam trabalhando, o que era
genial. A ponte Paris-Roma, Bahia-Rio-São Paulo funcionava.
Couro de gato tinha chegado antes de Joaquim Pedro. Que emoção contida e
derramada ao mesmo tempo. Que comunicação lírica com o público. Quincas casa
com Sara por procuração. Termina o curso de cinema verdade-cinema direto com os
irmãos americanos.
Joaquim volta para o Brasil. Chega em grande forma. Armara
com David Neves-Carrilho pelo Itamarati e dr. Rodrigo pelo Patrimônio Histórico
– a vinda do cineasta sueco Arn Sukesdorf, altamente competente junto com
equipamento (moviola, câmera, Nagra), tudo bem moderno. Mas os trâmites
burocráticos retardariam em um ano sua chegada.
Mas a tabela Joaquim/David Neves foi valiosa.
Em Roma, li e amei Angústia, de Graciliano Ramos.
Comecei um roteiro que terminei no Rio. Estava pensando em filmá-lo. Também
trabalhei no Surupita, o devente, de Guimarães Rosa. A literatura
brasileira tem uma coisa nova para revelar ao mundo, e o Cinema Novo pode fazer
muito por ela. Mas o autor de filmes tem que ter um amor desrespeitoso pelo
livro. Não tem que ter medo, tem de criar em cima.
Fiquei feliz com a adaptação que fiz da Casa assassinada. Encontrei
Ferdy Carneiro, que me disse que Lúcio estava me procurando. Fomos ao seu
encontro. Ficamos amigos de todo dia. Chegamos a morar os três no edifício da
Joana Angélica. Lúcio já tinha marcado uma sessão de Arraial do Cabo na
paróquia de Nossa Senhora da Paz para levantar algum dinheiro para a gente
fazer locação na casa onde ele havia escrito em Valença. Fomos. Uma graça de
cidade, com uma praça brasileiríssima. Na chácara, que ainda não estava
abandonada, moravam umas primas de minha mãe, as Ribeiro de Castro. Eram de
Juiz de Fora, estavam passando dias ali. A proprietária era dona Lea Pentagna,
irmã do poeta Vito Pentagna, a quem o livro é dedicado e que emprestou a
chácara para Lúcio escrever o livro.
Dez anos depois, em 1971, a chácara estaria abandonada,
perfeita para o filme. Adorei. Deus escreve certo por linhas tortas – como as
pernas de Garrincha, por exemplo. Todo o filme poderia ser passado no interior
da casa, salvo o jardim encantado. Estava tudo ali. Fiquei triste por não
filmá-la em 1962.
Lúcio, sentindo minha decepção, me disse que poderíamos
fazer, antes, um filme mais barato: a história de uma mulher que mata o marido
a machadinha para se livrar de toda a miséria e a indignidade. Vi logo Irma
Álvarez com aquele machado. Estávamos de ter, correndo o estado do Rio,
voltando a Ipanema, e passamos por Porto das Caixas. Ferdy gostou do nome. Porto
das Caixas ficou sendo o nome do filme.
Lúcio pediu uma ilha para escrever o argumento-roteiro. Como
iríamos achar uma ilha em véspera de carnaval?! Saímos em campo. Ferdy achou
uma ilha fluvial do Jaguar, perto de Juiz de Fora.
Na véspera de nossa viagem para a ilha, tomamos um porre no
Alcazar. Eru tinha convidado uma mulher interessante, mas que, quando bêbada,
se urinava. Lúcio convidou o Guima para ir com a gente.
A ilha era selvagem, tinha apenas uma choupana.
Atravessaríamos de barco para o outro lado, onde havia alguma vida, um armazém
solitário, um boteco. A ida e a volta com o barco tinha um macete: se não
conseguisse o trajeto certo, a correnteza do rio levava. Ficamos os quatro dias
de carnaval na ilha. Lúcio fazia batidas de tudo que encontrava no mato.
Ficavam deliciosas.
Certa noite quase morri. Ferdy também. Os dois fomos comprar
comida e cachaça na outra margem. Passou um bloco, com uma mulata linda que
dançava para valer. Ficamos até tarde. O rio estava violento, as águas passavam
perigosas. Chegamos até o barco, de porre e assustados. Na outra margem, Lúcio
Cardoso, com um lampião na mão, nos indicava o caminho. Estávamos já no meio do
rio, navegando sensacionalmente, quando bateu um vento e apagou o lampião. Na
escuridão, nos perdemos e o rio foi nos levando. Rezamos e rezamos, agarrados
ao barco. Ferdy gritava: “Sarra, lembre-se das árvores, no alto, vamos segurar
nos galhos!” Ficamos em pé no barco. Levamos uma porrada forte e caímos na
água, tentando nos agarrar às raízes e nos galhos. Ferdy conseguiu, e eu tive
que me lembrar do tempo de natação e nadar muito contra a correntes. Ferdy já
queria se largar do seu galho, mas foi amigo heroico: “Sarra, onde você está?
Vou me largar”. Foi duro gritar que eu estava ali, também, só que noutros
galhos. Salvos, Lúcio apareceu com o lampião aceso.
Ficamos em, silêncio, na sala, e aí Lúcio disse que ia preparar uma batia de
aipim. Eu e Ferdy nos abraçamos e rimos muito. Enquanto isso, Lúcio contava que
tinha pego o Guima e a minha convidada trepando no mato, e que ele dizia: “Esta
mulher mijou na minha alma!”.
Acabou o carnaval, saímos da ilha, Lício não tinha escrito
uma linha sequer. Só foi conseguir mais tarde, no boteco Mau Cheiro, no
Arpoador. Chegou de bermuda, caneta e um caderno comprado na Casa Mattos.
Escolher uma mesa isolada e começou a escrever sem parar, de uma vez só. Quando
terminou, me entregou, estava pronto. Ele recebera uma carta de Clarice
Lispector, estava feliz.
Quanto maior a zorra em volta, melhor para Lúcio criar. Nunca pude entender a
má vontade dos meus amigos, cineastas ou não, em relação ao Lúcio. Sempre vi
nele o maior artista brasileiro. Com que facilidade ele escrevia poesia e prosa,
como desenhava, pintava, sabia de teatro e cinema! Era um grande mestre, sem
nunca teorizar em cima.
Eu ia fazendo o meu roteiro ao mesmo tempo que Lúcio fazia o
seu. E começava a pensar no elenco e na equipe. Só conseguia ver Irma Álvarez
na pele daquela mulher, símbolo de uma cidade abandonada, de toda a solidão dos
marginalizados, e ao mesmo tempo, via se formar em sua alma aquela ideia fixa e
violenta por redenção e liberdade. Lúcio sugeriu Norma Bengell. Recusei, Norma
é mais para Nina da Crônica. Faei e logo me lembrei de Lea. “Aí, como a
distância existe”. E o elenco? Sei lá, pensei em Reginaldo Faria, Nélson
Dantas, Guerreirinho, Margarida Rey. Mário na câmera e na luz e Ferdy Carneiro
na direção de arte. Eu não queria trabalhar com pessoas com vícios
profissionais, especialistas, queria a insegurança. Para sair coisa nova. Fui à
luta para arranjar dinheiro. Os Taylor recusaram de saída. Lúcio me deu um
conselho: “Faz o produtor comprar o roteiro; quem dá 10 mil, dá milhões
depois”.
Convidei Luís Carlos Miele e Davi Conde para fazerem a produção. Davi Conde era
tor e Miele produtor de shows. Ficaram espantados, nada sabiam de
produção. Legal, vai ser melhor assim. Ninguém estava acreditando em cinema
nacional, mas apareceu um fazendeiro paulista com muitas sacas de café para
vendes nos Estados Unidos. Ficamos paquerando o paulista na praça Mauá, onde
tomávamos grandes porres nos bares e eu morria de rir com Miele. Ficávamos
dando show para a mulher e os filhos do paulista. Eles adoravam. Improvisávamos
muito e era engraçado, se quiséssemos podíamos até fazer um show no teatro. Zé
Henrique, o Ghigia, também tomou parte do trio, que virou quarteto. Quem
improvisava como Miele podia fazer muito bem produção. Eu pretendia fazer um
filme dentro da realidade brasileira, o que era diferente de fazer em Hollywood
ou na Europa. Aproveitar tudo que a realidade nos sugeria. Com o show, a gente
era convidado para muitas festas. E entre uma e outra dança venderíamos o
Porto das Caixas, mas estava difícil. Precisávamos de uma firma, um
escritório. Dormíamos onde pintasse uma cama ou uma mulher...Assim não dava. O
paulista vendeu sua saca e desapareceu, ficamos a La nave vá.
Fiz um orçamento rigoroso, que ao mesmo tempo não era nada –
6 milhões de cruzeiros, uns 12 mil dólares. Muito inferior à média dos filmes
brasileiros. Já me sentia desanimado. Pensei em visitar Fernando Campos no
ateliê do Aluísio Magalhães. O Fernando, nosso querido Champs, por causa de
Irma Álvarez, certamente teria uma ideia genial para se conseguir o dinheiro.
Antes disso, porém, chega uma carta de Gláuber, ainda às
voltas com a finalização de Barravento e suas ideias de novos filmes:
querido Paulo
ainda bem que você sabe compreender a situação do cineasta
brasileiro. fiquei com medo de você, desesperado, ser capaz inclusive de se
virar contra mim. o banco atrasou novamente o financiamento pra concluir
barravento. Estou alucinado, perdendo tempo. tudo o que se pensa e o que se
organiza é pra depois de pagar as dívidas. O atraso é como se fosse uma praga,
não quero que você se comprometa mais, pelo menos comigo, todavia é coisa certa
o fique sobre camponeses pra março. Produção profissional, na melhor base. Rex
e Braga concordam integralmente que você seja o diretor. Não há problema quanto
a argumento. O que houve em a grande feira foi por culpa de roberto: se ele
cortasse as besteiras, não haveria problema. Rex é um produtor que põe no
contrato o seguinte: “fica concedida inteira liberdade de criação artística ao
diretor”. a proposta é de 500 contos pra você realizar o filme e mais uma
porcentagem sobre os lucros: no total equivale a quase um milhão. paulo, a
revolução aqui no norte é um FATO. crescemos dia a dia. o mais importante dos
filmes brasileiros será esse filme camponês. 200 mil pessoas morrem de fome e
sede nas estradas, enlouquecem, assassinam. dos campos áridos e miseráveis de
pernambuco vem a voz da revolução. homens que não têm carteira de identidade a
não ser o recibo da sociedade. obreiros da morte, onde se inscrevem pra o enterro,
quando morrerem. A revolução crescendo nos campos – pernambuco, paraíba, piauí,
maranhão, goiás, bahia, minas – se você olhar o norte 24 horas, você enlouquece
de raiva e vibra de entusiasmo. Todos os meus amigos estão no partido. Vou
entrar esta semana ainda. Na unversidade, nos sindicatos, nos campo da bahia e
pernambuco só há uma palavra – REVOLUÇÃO! é um momento histórico, um momento
que não se pode negar porque tudo está presente, intenso. Este filme será uma
das grandes bandeiras revolucionários do norte. aqui na bahia todo mundo fala e
espera este filme. ele será pro brasil uma espécie de encouraçado pontemkin –
porque você, com a poesia que revelou na violência de arraial, fará um filme
genial, tenho certeza. recolhi com rex os dados sociológicos e preparamos uma
estrutura (está em preparo) sobre a qual você poderá fazer um roteiro com
intensa liberdade. não acredito, inclusive, que diante do tema possa haver
opção anti-revolucionária de sua parte, porque não se trata de um panfleto mas
de uma verdade. o ambiente é aquele de aruanda – aquela gente pobre e magra,
aquela paisagem infernal da seca e desolação, os latifúndios da cana e as
ligas. você se lembra do túmulo do sol? agora, você só vai se comprometer com
este filme, depois de contratado. no rio de janeiro, rex enviará o contrato: em
fevereiro você vai pra pernambuco, preparar o roteiro pra filmar em março. eu
não sou contra amor de gente mola. não há condições, porém, de produzir um
filme no rio – pelos motivos que lhe expliquei. o seu roteiro é excelente, eu
acho ótimo. mas teremos de esperar mais um pouco. Não pense que eu quero ser
produtor pra ganhar dinheiro – eu quero criar condições pra que minha geração
se realize sem problemas, sem dinheiro não se faz cinema. E não podemos ser artistas
no cinema brasileiro, a não idealisticamente. Tenho muito medo de ser mal
interpretado. Aqui na bahia, salvo roberto e rex, todo o mundo me interpreta
mal. Não sei aí no rio. Mas isto não tem a menor importância. Entrando pro pc
eu quero ser o homem revolucionário total, distanciado de qualquer problemática
individual burguesa. Não que eu assuma o sectarismo de negar o homem, porque
quero a revolução pra dignificar o homem. Mas não quero mais ser vítima das
pequenas mesquinhezas da nossa condição.
quais as intenções de samuel wainer? quer fazer cinema – se
eu tivesse nas mãos dez bons roteiros, eu levantaria dez produções. atuando
como produtor este ano, eu espero que em 1963 tenhamos condições básicas de
produzir com regularidade, isto se a revolução não interromper a marcha. depois
de “rebelião camponesa”, vamos fazer em junho “alagados do inferno”, um filme
nas invasões que vai ser dirigido por orlando senna, um jovem daqui do nosso
grupo, talentosíssimo que é o assistente de direção de roberto em “tocaia no
asfalto”. e ainda há chance pra mais dois filmes depois de agosto e pra isto
espero convidar joaquim pra fazer um deles. talvez eu fizesse o outro. é
preciso formar o movimento. precisamos fazer filmes CERTOS- entendeu? Não se
pode arriscar, porque se falhamos um segundo, caímos no fracasso. filmes
“LIVRES” só quando a base estiver formada. sei que você (como eu) pode reagir a
isto, MAS É A SAÍDA. do contrário ficaremos apenas sonhando, entende? eu sou
REALISTA, não tenho ilusões. por isto, Antonioni só me interessa enquanto sou
intelectual de superestrutura. Quando eu faço a redução pro BRASIL
SUBDESENVOLVIDO E INCULTO – eu vejo que a europa é a HISTÓRIA FEIOTA e nós
SOMOS A HISTÓRIA A FAZER, e nosso tempo é pouco, nosso passado é vergonhoso e temos
de agir engajados na história. o brasil de hoje não tem lugar pro artista
romântico e sim para o artista revolucionário, mas não um revolucionário da
arte e sim da própria história. estética hoje é uma questão política. escreva.
gláuber.
Gláuber, quando está na Bahia, fica furioso e radical,
queremos resolver e dirigir tudo, todo o movimento. É genial, por dar tesão
para todos. Mas é ansiedade. Arte é individual. Mesmo no CPC, onde o dinheiro é
estatal, do Jango, a barra é difícil, imagine com cada um de nós. Não penso
mais no filme do camponês, nem na Amazônia, nem Angústia, nem Soropita
do Guimarães Rosa, menos ainda no Amor de gente moça, fruto da minha
ligação com Nara. Agora estou em outra,
quer ver Irma passar com sua beleza e sua revolta pelos destroços daquela
cidadezinha abandonada, igual a esse povo do que fala Gláuber. Onde a palavra
de ordem – reforma agrária – é pura ficção. Gláuber vivia a sua batalha, eu a
minha. Mas que injustiça com Antonioni. O homem é de esquerda e está analisando
a burguesia e a elite da Europa. E fazendo arte.
Enquanto espero, começo a pensar na equipe e elenco. Mário
Carneiro na câmera e na luz. Para seu assistente chamamos o Fernando Duarte, o
talentoso jovem do Metropolitano. Sérgio Sanz, filho de Zé Sanz, será meu
assistente. Procuro Ferdy Carneiro, onde estará Ferdy?
Irma Álvarez é argentina, veio como vedete do teatro de
Walter Pinto. Não parecia vedete, era discreta, doce, gesticulava pouco,
carinho só. É atriz de cinema moderno – novo. Chamei Nélson Dantas,
Guerreirinho e Reginaldo Faria.
Publicado originalmente em SARACENI, Paulo César. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
Nenhum comentário:
Postar um comentário