terça-feira, 17 de maio de 2022

Por Dentro do Cinema Novo, minha viagem por Paulo César Saraceni, capítulo 6: Nasce o Cinema Novo

Capítulo 6: Nasce o Cinema Novo

 


Por Paulo César Saraceni

 

O “movimento” não seria mais nacional, tínhamos que aproveitar nossa ida á Europa. A “geração Rosati”, os críticos franceses do Cahiers du Cinéma, que queriam fazer filmes, Jean Rouch e o canadense Michel Brout, craque de câmera na mão e som direto, os independentes do mundo inteiro. Tinha que ser um movimento internacional. Aproveitando Paulo Carneiro na Unesco e o Almeida Sales como adido cultural em Paris. E, sobretudo, o guru de todo o movimento devia ser Gianni Amico. Ninguém seria melhor que ele para introduzir esse cinema novo recém-nascido.

 

Eu continuava na dúvida, mas no fundo queria voltar para o Brasil. Mas não podia deixar a Europa naquele momento em que estava acontecendo tudo. Mas, se eu voltasse, o Joaquim e o Gustavo ficariam e tocariam o bonde de lá, fazendo a ligação. Mas, e se eu não convencesse a Edla e os Taylor a fazer um novo roteiro e escolher a equipe e o elenco? Seria uma grande frustração. Talvez o melhor fosse ficar e aproveitar o sucesso de Arraial e fazer um filme na Europa? Sei lá. Difícil decisão. Almeida Sales e Rudá chegaram para uma estadia em Roma, ficaram com a gente na Via Marco Valerio Corvo, Cinecittá. Liliane Pogessi se esmerou no tratamento ao presidente e ao Rudá – foram dias divertidos e Roma, ensolarada, oferecia muita beleza nas suas cores de terra de Siena a dois grandes brasileiros. Eu, Gustavo e Geraldo levamos o presidente da Cinemateca Brasileira e o Rudá a um restaurante no Trastevere. Comemos a verdadeira comida romana. Eu exagerei na comida e na bebida. Me senti mal. O presidente, glória de gentileza e sensibilidade, quis conhecer a Cucina do Luigi – fomos. Tomamos mais vinhio. Depois fomos leva-los à Stazione Termini. Partiram para Paris. Grande presidente, o Almeida Sales enchia nossos corações de entusiasmo, fé e amor.


De noite, passei mal – uma dor de cabeça como jamais sentiria. Lisbeth, a namorada holandesa de Gustavo, tratou-me. Mas a dor não passava. Chamou um médico amigo, quer achou que eu estava com meningite, chamou a ambulância e telefonaram para os Franchina, que logo me arranjaram um hospital. Fui cuidado com muita atenção e preocupação – fizeram mil exames. Acordei de manhã com dez médicos me examinando, achando estranho o meu modo de falar. Disse-lhes que eu não era italiano. Mas eles nem davam bola, me faziam andar e ficavam, os médicos, me olhando sem chegar a conclusão alguma.

 

Recebia muitas visitas: as atrizes do Centro, o pessoal do Rosati, entre outros. Os enfermeiros napolitanos, que viviam cantando belas e doces canções de sua terra, ficavam de olho nas belas ragazze e diziam que os médicos estavam por fora: “O que você tem é excesso sexual”. A notícia da minha doença chegou a Paris. Todos estavam preocupados. Ninguém sabia o quw era.

 

O diretor do hospital veio me ver, ele era primo da Gina, mãe do Sandro Franchina. Examinou-me detalhadamente e mandou tirar líquido da minha espinha. Foi pior que tortura – uma dor fina e gelada. Depois deu ordens expressas para eu permanecer no leito e em posição fetal durante 24 horas. Fiquei horas assim por puro medo, mas puto da vida. Horas depois, chegam os jovens médicos querem novos exames. Digo-lhes que o diretor recomendara que eu não saísse da cama, tirara líquido da espinha. Eles riram do conservadorismo do diretor e, modernos, me levaram para fazer um eletrencefalograma. Claro que não ia dar porra nenhuma. Eu suave em bicas, acabei desmaiando. Levaram-me para a cama. Voltei à minha posição fetal, detestando todos os médicos e a medicina.

 

Duas horas depois, sem conseguir dormir, ouço nosso caro napolitano gritando: “Saracelli! Saracelli!” Na quinta vez, me lembro de Mário Carneiro em Bilbao – Medalha de Ouro para Pablo Saracelli. Respondo sonno Saraceni! O enfermeiro diz:

- Claro, claro, é você mesmo, venha!

 

- Mas o diretor mandou ficar neste suplício fetal por 24 horas, porra!

 

O enfermeiro diz:

 

- Saraceni, o terror das mulheres romanas, foi o próprio diretor quem me mandou te chamar. Vamos, eu te ajudo.

 

Saí lentamente. Havia uma escada enorme. Pensei em Kafka:

 

- Você tem certeza que o diretor mandou me chamar?

 

- Você acha que estou louco? - respondeu.

 

Voltei a suar, quis recursar, voltar, já estava no meio da escada. Comecei a rezar...Naquele tempo eu não sabia rezar...Pedi a Deus. Apareceu o diretor, felizmente, e gritou:

 

- Essa não, esse é Saraceni, não pode levantar da cama!

 

Acho que desmaiei de novo. Quando dei por mim, estava na cama e em posição fetal.

 

Foram mais de quinze dias. “Chega! Amanhã chamo o Gouthier e volto pro Brasil para enfrentar A casa assassinada. Não dá mais para adiar. Mas quero uma passagem de avião. Vou me tratar no Brasil. Quem sabe vou a Bahia ver a Menininha do Gantois...” Eu tinha finalmente decidido: que me importa a Edla van Steen! Faço o roteiro, equipe e elenco. Imagine se vou fazer sem Mário Carneiro e Ferdy Carneiro? Faço em cinemascope – cinemascope íntimo, na mão, se for preciso.


Deixei o hospital com um documento isentando de responsabilidade a equipe, pois saí sem terminar os exames e sem nenhum diagnóstico. E com as recomendações de que, se eu sentisse alguma coisa, deveria voltar correndo. Fiquei três dias em casa, deitado na cama, morrendo de medo. Levantei-me, fui ao quarto do Geraldo e do Gustavo. Voltei com duas garrafas de bom vinho tinto. Em meia hora estava pronto para sair. Fui ao Rosati e encontrei Alberto Ruschel, continuei bebendo e soube que ele ia visitar Lea Massari. Disse lhe: - Vou contigo. Tenho uma carta de Lelena Cardoso. Talvez seja para ela fazer a Nina, protagonista de A casa assassinada. Fomos.

 

Lea Massari morava no Parioli. No caminho, eu disse a Ruschel que estava decidido a voltar para o Brasil, tinha conseguido uma passagem de avião e ia tentar um longa-metragem.

 

- Acho que estou pronto.

 

- Mas você não estava doente?- perguntou-me.

 

- Nada que um porre não possa curar.

 

Naquela mesma semana eu partiria de volta. Lea nos recebeu sem demonstrar qualquer surpresa por eu estar com Ruschel. No Rio é assim, não é?, perguntou. Entreguei-lhe a carta de Lelena. Adorou. Ficou emocionada. E começou a botar discos de música brasileira. Falava português quase sem sotaque, com gírias de Ipanema, ficamos espantados. Comentava as impressões maravilhosas que tinha do tempo em que estivera no Brasil, de Lelema e suas amigas, de Lúcio e seus amigos. Prometeu voltar. Resolvemos dançar um chorinho de Garoto, depois um samba-canção, passamos para a Bossa Nova do Tom e finalmente um samba-enredo. Lea Massari dançava como uma porta-bandeira, ou passista de categoria. É brasileira de alma, incrível. Eu estava ficando apaixonado. Ela também. Alberto Ruschel percebeu e se mandou. Tocava um samba encantado, envolvente, amoroso – nos beijamos muito, fizemos juras de amor. “Só Lea pode ser Nina. Tá na cara. A Edla que vá lamber sabão”.

 

Todo mundo estava me procurando. Depois de três dias, resolvi aparecer. Fui à embaixada. Gouthier estava preocupado, já com a passagem na mão, com data marcada para dali a dois dias. Ninguém sabia dizer onde eu estava. Geraldo sabia, mas moitou. Gustavo, dividido entre a holandesa Lisbeth e a francesa Martine, estava sumido também. Comecei as despedidas. Murilo Mendes e Saudade., Nino e Gina Franchina, o pessoal do Rosati, da Cucina de Luigi, e todos os amigos. Luís Sérgio Person, que ia me substituía no Centro, chegara. Se tudo der certo, direi que frequentei o Centro. Lea foi um amor o tempo todo. Antes de partir, ainda recebo carta de Joaquim Pedro e uma entrevista que dei em Paris para Zuenir Ventura.

 

Eis a carta de Joaquim Pedro.

 

Paris, 12/7/61

Paulo querido

Foi um alívio falar com você. Eu tinha combinado com o Otávio de irmos juntos pra Roma, hoje á noite, ver o que tinha acontecido e conversar direto com você, porque as notícias que vieram pela Regina Castelo Branco e o Gouthier deixaram a gente em pânico. Otávio acho que vai de qualquer maneira. Eu desisti, depois que falei com você, entre outros motivos por causa de dinheiro. Minha bolsa acabou. Recebi o dinheiro da passagem de segunda classe e com isso vou me aguentando enquanto decido o que fazer. Se o Roberto Assunção confirmar o convite que me fez, devo ir para Milão no princípio de setembro. O Couro de Gato está quase pronto. Já completei a sonorização e talvez dia 14 agora fique pronta a primeira cópia. (Quando cheguei a Sta. Margherita peguei o Gordini com o trabalho parado, esperando uns rushes do Brasil. Trabalhei uma semana com a montadora dele, esperei uns quinze dias por vaga no estúdio para gravar o som que faltava e combinei, meio vagamente ainda, que daria a ele os direitos do Couro para o mercado francês em troca do pagamento das despesas de laboratório. O filme dele, Le tout pour le tout, está muito curto e vai levar dois complementos, um francês e o meu.) Tive de pagar também uma porção de coisas e gastei quase todo o dinheiro que o Itamarati me deu adiantado por uma cópia 16mm. Vou mandar essa cópia para o Rio, pela mala diplomática e candidatar o filme ao festival de Bérgamo. O filme do Mário sobre gravura, que devia representar o Brasil no festival, acho que ainda não começou. Depois de Sta. Margherita, virei o cu pra lua. Um dos diretores associados da fundação Rockfeller me ofereceu uma bolsa que dá margem para qualquer programa de estudos. Ainda não decidi nada por falta de melhores informações, mas o que eu quero fazer parece difícil: estudar uma porção de filmes em moviola, fazer um curso rápido de fotografia com câmera leve, estudar um pouco de técnica de direção de atores. A primeira resposta que recebi, da Inglaterra, foi inteiramente negativa. Vou tentar a Itália, antes de pensar no Canadá (onde parece mais viável o curso de fotografia, pelo que nos disse o Jean Rouch) e nos Estados Unidos. Prefiro não sair da Europa e voltar para o Brasil o mais depressa possível, no máximo no fim do ano que vem.

Minha passagem para Milão, na volta de Sta. Margherita, também foi bastante útil. Combinei mais ou menos, com o Squinzi e o Roberto Assunção, dar um jeito de trazer um crítico moço do Brasil para fazer um curso de um ano em Milão, no Centro di Studi Cinematografici e na Universidade Católica (nególcio de Columbianum é com padre mesmo). Escrevi para o Paulo Emílio e ele propôs o Jean- Claude Bernardet. Já mandei a sugestão para Milão e estou esperando a resposta. O Squinzi falou também na possibilidade de levar gente do Centro Sperimentale para fazer lá uns cursos de férias. Pergunta ao Gustavo se isso poderia interessar. Comeceri também umas conversas de co-produção, naquela base que nos interessa: mistura de nacionalidade só no dinheiro, material e talvez equipe técnica. Criação toda brasileira. Se eu voltar para lá vou intensificar a cantada com a colaboração do pessoal do Brasil. Escrevi pra eles, pedindo projetos. Ninguém respondeu até agora.

Me mudei para um apartamentinho bem simpático, dúplex, imagina, que fica em 36, rua des Boulangers, 5ème. Não tem banho, nem telefone nem água quente, mas só custa 120 NF por mês e é independente. Continuo na mesma merda de comer quem não interessa, às vezes só pra não ser muito grosseiro. Mas o Sena agora fica pertinho e eu vou pra lá, recuperar a alma. Se vocês escreverem, mandem as cartas para esse endereço novo. Diga à Nili pra passar uns dias no apartamento. Seria bom se a gente pudesse conversar antes de você enfrentar o Brasil. Diz ao Gustavo pra vir com você ou sozinho, quando ele quiser. Pede a ele ou manda você mesmo, pelo Otávio ou pelo correio, informações sobre o curso de fotografia do Centro. Tem moviola e cinemateca no centro?

O Guido não mandou mais notícias sobre a carreira do Arraial no festival de Praga. Vou escrever de novo para ele. Um abraço grande pra você, Gustavo e Geraldo.

Escreva logo que você chegar ao Brasil.

Joaquim

 

Eu estava ridículo quando saí da Via Marco Corvo. Cheio de malas, cartazes e prêmios. Sandro, Guido, Liliane e suas filhas me gozavam muito. Ambiente alegre e festivo. Sandro Franchina troca comigo um blazer que Frank Sinatra deixara em sua casa, por uma camisa da Esplanada que ele gostava. Fizemos muitas fotos. Liliane, que tinha chorado, agora ria muito. Luís Sérgio Person e Geraldo chegaram para a despedida. Gustavo estava fora de Roma.

 

O carro de Lea buzinava lá embaixo. Ela riu muito quando me viu daquela forma ridícula, mas abafei seus risos com mil beijos. Partimos para o aeroporto de Fiumiccino. Eu estava feliz e cantei Caymmi: “Estava desprevenida e por acaso eu também”. Aconteceu um novo amor, que não podia acontecer: “Quem inventou o amor não fui eu, não fui eu, não fui eu, não fui eu, nem ninguém”.

 

Nos beijamos muito, quase perco o avião. Parti. Lá de cima ainda olhe para ela – vi Lea chorando ou foi minha imaginação? Foi um cometa, passagem rápida, rapidíssima – O Viajante.

 

Tomei dois uísques e uma bola. Dormi. Quando acordei, já era Brasil: amarelão e vermelhão na janela da Panair.


Afinal, qual foi a doença que eu tive? Estou ótimo. Deve ter sido Deus me empurrando de volta ao Brasil. Ok, mas Lea estava no programa? São caminhos de Deus, como diria Otávio de Faria, Robert Bresson e Marcos Konder Reis.

 

Tenho que meter a cara no Brasil para fazer A casa assassinada esquecer a Itália. Mas como esquecer Lea?

 

No Zacatecas, foi uma festa. Papai e mamãe, queridos, estavam melhores do que nunca. Muita emoção com papai. Sérgio providenciando tudo à moda dele e Norma chorando. Muita alegria e o telefone tocando sem parar. Marquei mil encontros, não sabia por onde começar. Nenhum sinal de doença. Edla van Steen já tinha ligado duas vezes, mas eu continuava querendo Lea para o papel de Nina. Mas aí o Belo Ghigia me telefona convidando para ir à sua casa, correndo, que ele tinha uma surpresa. Fui, pensando que fosse Ana Letícia. Passei pelo Largo do Machado, pelo Lamas. O Zé Henrique Belo, o Ghigia, morava com Climene, num edifício no Morro da Viúva, com bela vista para o mar do Flamengo, as montanhas de Niterói ao fundo. Muitos abraços, cervejinha gelada, João Gilberto e Tom na vitrola, mas nada de surpresa chegar. Eu achava que era Ana Letícia, só podia ser. Não tinha telefonado e ela era amiga do Ghigia. Só podia ser ela, como estaria?

 

Toca a campainha, entra a surpresa – Nara Leão, a musa da Bossa Nova.

 

Nosso romance começou tranquilo como os acordes de Chove na roseira, do Tom. Íamos ao cinema, ouvíamos Bossa Nova e conversávamos muito no seu famoso apartamento na avenida Atlântica.

 

Certa noite, em fins de agosto, fazia frio no Rio e estávamos agarradinhos no sofá quando tocam a campainha e entram Tom, Vinícius e João Gilberto. Tinham acabado de mixar o terceiro disco – João Gilberto. Estavam felizes, tinha sido duro, haviam, brigado muito, mas chegaram a um acordo e estavam comemorando. Bebemos muito uísque. João cantou, Nara tocou violão, Vinícius e Tom contaram histórias engraçadíssimas, e o melhor ficou por conta de João Gilberto, que começou a dançar e sapatear – é o rei do ritmo. Sapateia mais que Fred Astaire, Gene Kelly e Zé Medeiros juntos. Só se compara ao meu irmão Sérgio.

 

Revi os amigos, me senti em casa, li o roteiro de Lúcio e gostei muito (o do Millôr Fernandes eu odiei). Disse aos Taylor que faria novo roteiro, e só depois de pronto escolheria o elenco e a equipe. O roteiro viria primeiro. Lúcio Cardoso riu muito e aprovou. Gláuber, esse grande irmão, já estava transando com Edla. Ela estava montando Barravento. Vi o copião e adorei, estava ali o Cinema Novo! Mas Edla não podia montar o filme, eles trepavam na mesa da moviola, era excitante e Barravento ficava cada vez mais confuso. Namorei um pouco Edla também, quando deu uma confusão com Helena Inês na Bahia. Gláuber partiu morto de ciúmes e o mesmo fez Lolo Pérsio, marido de Edla, que a levou. Foram para São Paulo e esqueceram o Rio de Janeiro, A casa assassinada e Barravento.

 

Fiquei namorando Nara e saí algumas vezes com Danuza e Antônio Maria. Uma semana depois de minha chegada ao Brasil, Jânio Quadros renúncia. Brizola resiste no Rio Grande do Sul à tentativa de golpe da UDN e dos militares.

 

Guerra civil nas ruas. Jango está na China e não pode voltar. Todo apoio a Brizola e aos democratas do país.

 

No meio das bombas de gás lacrimogênio encontro dr. Lúcio Costa na porta do Vermelhinho. Nos abraçamos muito e, indiferente às correrias da população e das bombas, contei-lhe minha viagem a Roma. Ele me falou de Brasília e achava graça nas janelas do prédio da ABI, onde, ao ruído de cada bomba lançada, apareciam várias cabecinhas espantadas. “E Helena e Lili?”, perguntei. Marcamos um encontro em sua casa. Dr. Lúcio continuou caminhando, indiferente às bombas e aos acontecimentos. Fiquei olhando-o desaparecer, imune à guerra civil.

 

Gláuber Rocha voltou da Bahia e me telefonou, queria me entrevistar para o SDJB, queria que eu desse um depoimento sobre minhas impressões europeias e os prêmios de Arraial. Marcamos no Amarelinho. Bombas caíam cada vez mais perto. Porradas nas ruas entre os estudantes e a polícia de Lacerda. Fui falando da Europa e vendo as manifestações. Ás vezes aplaudíamos os estudantes, xingávamos a polícia, mas Gláuber, como bom jornalista, ouvia e anotava tudo.

 

“O negócio é juntar Jean Rouch com Rossellini. Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Gláuber gostou, saiu usando, a frase que virou dele também, de tanto que ele espalhou. No seu livro A revolução do Cinema Novo, ele diz que a frase era minha, eu já tinha até esquecido. Gláuber sempre foi leal. Contou que quase matou Helena Inês e queria ficar com Paloma.


Dois policiais estavam batendo muito numa jovem, saímos do bar e botamos os policiais para correr. Vieram outros e, com cassetetes, nos encheram de porrada. Corremos. Bombas, os olhos ardiam, fiquei preocupado com minha cabeça. No dia seguinte fui ao médico. Dr. Clementino Fraga me examinou e achou que era estresse. “Uma semana de cama e repouso, e estarás novo em folha. Com 27 anos, dá para o gasto”. Saí dali pensando em Gláuber. Que loucos fomos. Podíamos ter morrido, mas acho que o Manifesto do Cinema Novo vai sair.


Fechei-me em casa, só atendendo aos telefonemas de Nara. Ela vinha me visitar, mas ficava pouco tempo. Eu escrevia sem parar. Em uma semana, num estado febril, escrevi o roteiro de A casa assassinada, adaptação do genial romance de Lúcio Cardoso. Esse estado febril me permitiu fazer uma síntese louca de 35 páginas de um livro de quase quinhentas, inteiramente fiel ao autor e sua obra, mantendo (e isso foi o melhor) o personagem Timóteo de corpo inteiro, enquanto no roteiro de Lúcio só aparecia com seus anéis e suas joias (e nem isso no roteiro de Millôr). Fiquei besta comigo mesmo, e mais ainda quando Lúcio o aprovou. Foi com essas 35 páginas que realizei o filme, dez anos depois, em 1971.


Com o desaparecimento de Edla e a renúncia de Jânio Quadros, desapareceram também os co-produtores paulistas. Os Taylor ficaram sozinhos e com medo. Tínhamos que procurar novos produtores, e o projeto foi adiado. Fiquei pensando em Lea, morri de saudades dela. Ela daria uma Nina genial.

 

Telefonei para Nara, fomos encontrar Marcos Konder e Lígia Moraes ao Alcazar. Bebemos muito. De madrugada, Lígia nos convidou para ir até a casa dela na rua das Acácias, onde Vinícius passou sua infância e adolescência.

 

Chegamos lá e tivemos uma bela surpresa. Tom e Vinícius estavam bêbados e compondo A distância não existe. Ficamos ouvindo.


Vina olhou para mim. Juro que ele fez aquela letra para mim e Lea.

 

Mandei a letra para Lea, ela me respondeu que, pela demora de uma carta minha, a distância devia existir.

 

Saídos do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, esses artigos de Gláuber ficaram sendo o manifesto que tínhamos prometido ao Reinaldo Jardim, quase dois anos antes. Agora o Cinema Novo tinha até curtas premiados, Arraial já ia para o seu quinto festival internacional dos sete que ganharia. Couro de gato começava sua carreira vitoriosa de três prêmios. Nélson Pereira dos Santos montava Barravento, o primeiro longa-metragem do Cinema Novo. Já era hora de sair o manifesto. Aberto, sem nenhum dogma, nenhum preconceito, pedia-se apenas que fosse autoral, sincero, criativo, revolucionário e que olhasse a realidade social e econômica do Brasil com vontade de analisa-la, transformá-la num mundo melhor para todos. Mas que, principalmente, amasse o cinema.

 

Arraial cinema novo e câmera na mão

Gláuber Rocha

Cinema novo em marcha: volta da Europa Paulo César Saraceni, após um ano e meio de trabalho com os jovens realizadores italianos, contato técnico e vivência com o moderno cinema europeu, sucesso de três prêmios importantes para Arraial do Cabo, criação conjunta com Mário Carneiro.

O cinema brasileiro ganha esse nome: Lima Barreto com seus documentários e O cangaceiro, Nélson Pereira dos Santos com Rio, 40 graus e Walter Hugo Khouri com Na garganta do Diabo são três nomes atives que romperam as barreiras tímidas do colonialismo cultural, arrancaram prêmios e despertaram atenções da crítica. Antes, um documentário de Gérson Tavares, O Grande Rio, também desviou olhares para o selvagem Brasil. Agora, a dupla Saraceni & Mário Carneiro. Em três testes diferentes – Bilbao, Firenze, Santa Margherita – Arraial do Cabo, antes até menosprezado no Brasil, venceu com facilidade. Na Cinemateca Francesa – diante do grand monde – cinco minutos de aplausos. No famoso Centro (Academia de Cinema da Itália) é distinguido pela professora Rosada, como exemplo, e vai a aulas práticas. E Saraceni não estuda, dá aulas.

 

II

A descompostura intelectual do cinema brasileiro – sua falta de prestígio, seu abandono político e econômico, sua tragédia, destinação à demagogia, aventureirismo, teoria de algibeira – subitamente levanta a cabeça. O furo de Arraial do Cabo é mais importante para o cinema nacional do que tudo que se faz agora: as briguinhas, a euforia industrialista, o culto do ouro corrompido que virá com a co-produção. Incrível, como apenas dois ou três nomes de nossa crítica – quando possuímos uma grande equipe – se detiveram na análise desse pequeno filme. Alguns dos nossos maiores homens não viram, inclusive, Arraial do Cabo. Há muito silêncio duvidoso no ar. Já disse, em artigo passado, que este documentário – reconhecido na Europa pela crítica (não é mentira, que até se falou em nomes como os de John Ford e de Luís Buñuel...) – poderia atemorizar certos tabus humanos e profissionais do mal iluminado palco cinematográfico de nossa terra, desde quando provava – na insistência de três prêmios – que não se necessita de milhões para um bom filme; que cinema moderno é um problema de inteligência, coragem, vivência, sobretudo sentido de profissionalismo; que cinema moderno é o cinema de autor, por isto é o cinema independente e para ser isto precisa ser digno (em todas as direções) e somente os jovens (que é uma questão de verdade e não de idade) podem e estão aptos para esta revolução que se anuncia no País e já começa a despertar as ironias iniciais da geração que teve uma oportunidade e não soube aproveitá-la; já tem uma concorrência de sangue vibrante, de sangue que não se quer diluir, mas ser derramado na obsessão de libertar o cinema nacional do colonialismo econômico e intelectual.

 

III

Não tem a menor importância a reação. É débil e basicamente não propõe um debate em termos de inteligência. As provocações de certa dupla crítica não suportam argumentações lógicas. E uma briga em termos de desaforos não é o modelo mais corajoso, pois seria mesmo uma falta de piedade, caso voz conjunta de todos os cinenovos investisse contra os dominadores fictícios deste ainda mais fictício cinema nacional. Se adotados o nome cinemanovo, não foi por imitação. É porque – certos ou errados – envergonha dizer que fazemos ou vamos fazer cinema brasileiro ombro a ombro com aqueles que, até agora, apenas gastaram dinheiro com imponências fracassadas.

É bom que agora se diga a verdade: os chamados filmes sérios fracassaram nas bilheteria porque eram provincianos, malfeitos, culturalmente desligados de nossa realidade, covardes nos argumentos e na realização quadradinha da imitação de cinemateca ou de Hollywood. E é bom, também que os estrangeiros dinamitadores da Vera Cruz, o bloco profissional dos coquetéis, das delegações e dos prêmios fabricados e produtores que estouram orçamentos em pés-de-meia, e diretores improvisados e funcionários de comissões saibam do seguinte: só existe ilusão neste cinema brasileiro e, salvo o nome daqueles diretores de trinta já citados, Carlos Manga é o único artesão respeitável, porque, mesmo na chanchada, realizou uma comunicação com o grande público, dentro de uma linguagem insegura, às vezes vulgar, mas reveladora de momentos respeitáveis (e pessoais) nunca antes acontecidos nas famosas produções de equipe da Vera Cruz, Multifilmes, Maristela – oportunidades industriais assassinadas pela auto-suficiência e diletantismo dos alunos formados no IDHEC.

O cinenovo brasileiro não quer co-produção, não quer empréstimos caudalosos, não quer distribuição compulsória. Se a boa-fé de Flávio Tambellini deseja ajudar os novos cineastas brasileiros, pense no seguinte:

a) documentários para os jovens, com inteira liberdade de criação;

b) prestígio para os jovens na carreira do ouro, ou seja, na disputa de financiamento bancário; o jovem vai entrar sem títulos, sem o brilhante passado dos veteranos e com roteiros de ideias (o que pode ser perigoso, caso se deseja, apenas, fomentar a fabricação de filmes...);

c) abrir o INCE aos jovens produtores – fornecendo o material disponível; fazer com que os laboratórios paralisados, como o do Ministério da Agricultura, entrem em funcionamento, para servir aos jovens; desencavar as várias câmaras de filmagem que estão enferrujando em prateleiras de várias repartições federais (já estamos fazendo um levantamento) e coloca-las à disposição dos jovens.

Queremos um crédito de confiança, ainda que não seja movido pela crença no talento, pelo menos seja pela simpatia original que cada homem civilizado possa ser por esta verdade desmoralizada pelo romantismo: a juventude acesa para o trabalho.

Não desejamos nada mais. E, caso não apareçam imediatamente estas ajudas – de elementos que existem e não precisam ser importados -, vamos fazer nossos filmes de qualquer jeito: de câmara na mão, de câmara 16mm (se não houver 35 mm), improvisando nas ruas, montando material já existente. Desde Caminhos, de Paulo Saraceni, e O maquinista, de Marcos Faria, estamos produzindo, e, agora, já temos dois longas-metragens, inclusive. Os documentários individuais continuarão. Couro de gato, de Joaquim Pedro, já foi vendido em Paris; Mário Carneiro vai realizar outro curto, sobre gravadores; Diegues e David Neves terminam O domingo; Leon Hirszman e Marcos Faria preparam já um longo, em episódios, para este ano, Favela, com Miguel Borges e Saulo Pereira de Melo, enquanto Saraceni prepara um longo.

Não, senhores temerosos de perder a coroa, não é para rir. É para chorar!

 

Depoimento de Saraceni

Em Santa Margherita, GUSTAVO DAHL, falando aos jornalistas do mundo inteiro, disse: “Hoje em dia vão ao cinema não mais para se divertir, não mais para esquecer suas mágoas, e sim para ouvir a voz de um homem”. Esta é a minha grande impressão da Europa, que, longe ser um continente em decadência, continua aberta, viva, às grandes conquistas do homem. O movimento dos jovens de toda a Europa é uma prova disso. A Nouvelle Vague (excelente do ponto de vista artístico e do de produção), uma renovação completa, errando muitas vezes mas sempre viva, sempre criando: ALAIN RESNAIS, depois dos fabulosos Nuit et bruillard e Hiroshima mon amour, sai para um filme com roteiro do principal nome do novo romance francês, ROBBERT GRILLET, o autor de Labirinto, que também pretende dedicar-se ao cinema. Este ano mesmo deve começar o seu primeiro filme. JEAN-LUC GODARD (o mais revolucionário dos jovens franceses), depois de A bout de souffle (Acossado), mesmo tendo uma fita interditada pela Censura, realizou seu terceiro filme. O cinema de RESNAIS, GODARD e ANTONIONI, além de ser grande sucesso de bilheteria, renova inteiramente o modo de expressão cinematográfica e coloca o cinema não só no sentido de evolução formal e ideológica, mas também no da conquista, num plano muito mais elevado do que as outras artes.

Além dos nomes citados da Nouvelle Vague existem outros dois grandes: FRANÇOIS TRUFFAUT, do excelente Tirer sus le pianiste, e JACQUES DEMI, de Lola. Poderia citar mais cinquenta novos realizadores franceses que continuam filmando. É preciso não se esquecer de JEAN ROUCH, genial diretor de Piramide humaine e Moi um noir, autor de um cinema-verdade, sem qualquer artifício, cinema sem tripé, sem maquiagem, sem ambientes que não sejam os reais – Câmara na mão, baixo preço de produção, para mostrar o verdadeiro rosto e gesto do homem.

O artista existe, o artista cria. Acusa os erros do seu tempo – o artista integrado no seu espaço, na sua época. O que adianta ficarmos enterrados nas teorias formalistas de um cinema superado? O cinema é uma arte jovem feita pelos jovens para os jovens, e o Brasil é um país jovem – VIVA O BRASIL.

Outro grande cinema é o americano de Nova York, que nada tem que ver com o cinema de Hollywood. Filmes de baixo preço, sem vendetas. Filmes empenhados com problema sociais e humanos. CASSAVETES E JOHN MEKAS, dois grandes. SHADOWS e The guns of the tree, na linha do romancista JACK KEROUAC. A ligação dos cineastas com os romancistas, longe de tornar o cinema literário, acaba com todo o complexo de inferioridade que o cinema tinha com as outras artes. Torna o cinema muito mais puro que os filmes-montagens de PUDOVKIN, EISENSTEIN, BELA BALAZ, ARHEIN, o cinema perfeitinho dos americanos de 35. O cinema hoje é livre como a pintura, a música, a escultura, a arquitetura, a dança e a poesia. O movimento dos jovens (ser jovem não é um problema de idade e sim de criação) nasce também agora na Inglaterra, no ótimo cinema da Polônia e no novo movimento anticonformista soviético. E a prova da vitória desse movimento será a mudança total de linha da nova direção do Festival de Veneza que, abandonando as vedetas e os grandes diretores de fama internacional, organizou uma comissão que corresse o mundo inteiro procurando fitas de novos realizadores. Será um festival dos independentes.

A Itália continua mantendo uma grande média de produção, duzentas fitas por ano, a maioria co-produção. Mas atravessa uma profunda crise artística.   A produção italiana parece ser a que economicamente deveria servir de exemplo, é o que pensam os cineastas brasileiros que foram a Santa Margherita e à Semana do Cinema Brasileiro em Roma. Não é verdade. Esse sucesso de Cinecittà é de pouca duração e é devido a três fatores: 1º - os americanos, fugindo do alto custo das produções de Hollywood, da concorrência na Televisão) é preciso dizer que todos os americanos já foram ou sonham ir à Itália), do imposto de renda, resolveram co-produzir na Itália. 2º - a produção italiana assim aproveita a fama dos grandes atores americanos e também co-produz secretamente com a nova produção independente francesa, aproveitando o sucesso dos atores franceses – assim, muito inteligentemente, a co-produção colhe os frutos de uma cinematografia que nasce e outra que morre. 3º - devido ao sucesso dos famosos criadores de neo-realismo, hoje em completa decadência. Foi por isto que a principal revista de cinema da Itália, Cinema 60, acusa a geração dos grandes leões: DE SANTIS, LATTUADA, GERMI, PIETRANGELI, LIZZANI, ZAMPA, COMENCINI, todos com seus últimos filmes de péssima qualidade artística: acusou a decadência criadora de DE SICCA, FELLINI, ZAVATTINI, em La dolce vita e La ciciara.

ROSSELLINI, apesar do bom Viva Italia, está longe de ROSSELLINI de Paisá, Amore, Viaggio in Italia. Somente VISCONTI, depois do formal Notta bianca, volta com uma fita digna de Terra trema e Senso, ROCCO.

O maior nome do cinema italiano e europeu é MICHELANGELO ANTONIONI. Com três filmes, ele estuda a crise de sentimento da nossa época: Il grido – o problema existencial de um operário que não pode esquecer um amor infeliz; L`aventura – um casal que não pode esquecer uma amiga desaparecida; e La notte, crise de um casal que teme não reconhecer que o amor acabou entre eles. Tema inteiramente moderno numa sociedade que está perdendo todos os valores humanos. Os novos diretores italianos somente inteligentes. Os melhores, MAZELLI VANCINI e BOLOGNINI, estão longe da geração neo-realista e principalmente muito longe dos novos franceses, americanos e poloneses. Somente PIER PAOLO PASOLINI, autor dos cenários dos melhores filmes de BOLOGNINI, parece ter a força de grande cineasta. PASOLINI é o melhor romancista italiano e acaba de realizar seu primeiro filme que irá para o Festival de Veneza. Dos diretores já conhecidos, gostei de PICKPOCKET, de Bresson, vi uma retrospectiva genial de ORSON WELLES – AMBERSSONS, Dama de Xangai, Otelho, Machbeth, de BUÑUEL – Los olviados e Nazarin. Joseph Losey, dois grandes filmes – Chance meeting e The criminels. Do cinema japonês, MIZOGUCHI, do ótimo Conto de lua pálida de agosto, Estrada da vergonha e Ohahuru Dona Galante. Akira Kurosawa: A vida. Como revelação de cinemateca, Pabst.

Concluindo, quero salientar a grande importância artística e sociológica do Festival de Santa Margherita, porta aberta para a cinematografia latino-americana e pela qual os novos argentinos penetraram com sucesso na Europa. Através de Sta. Margherita nossos filmes, se forem bons, serão curador do complexo de inferioridade cultural, Gostaria de advertir que Sta. Margherita é um festival de cultura e não de vedetas...

Idem, ibidem.

 

Novas Teixeira continuava a mandar correspondência e críticas das carreiras de Manuel Bandeira e Couro de gato, de Joaquim Pedro, e de Arraial do Cabo.

 

Novaes previu e antecipou o movimento do Cinema Novo, dizendo:

 

Nunca o cinema brasileiro se apresentou na Europa tão ambicioso de se exprimir com um natural tão simples, com tanta limpeza e tão digno desinteresse. Ambição de uma juventude consciente e séria através da qual se vislumbra um largo horizonte de esperança para um novo cinema nacional. Juventude sem fórmulas, sem intelectualismos, despretensiosa, mas já com um estilo. Isto é o que nos parece mais reconfortante e revelador nas fitas quer acabamos de ver. Dois curtas-metragens e um documentário com as características comuns de uma elegante discrição, onde se identifica o que já se sabe fazer com o que se pretende fazer. Chegaram esses três rapazes à realização cinematográfica depois de um aprendizado de amor. A imaturidade neles nunca é improvisação inepta, mas conhecimentos ainda não perfeitamente consumado. E os acertos, que são muitos, nunca são obras do acaso. Frutos são, que já começam a ser saborosos.

Como indício de um novo cinema brasileiro, parece-nos extremamente importante o que acabamos de ver na tela da Unesco. Três cineastas, Joaquim Pedro, Paulo César Saraceni e Mário Carneiro, que evitaram pacientemente a fase do amadorismo e iniciam com armas limpas e seguras a sua vida profissional.

A característica mais importante desses três rapazes é a sua brasilidade, que não é, como se sabe, sinônimo de cangaço, mas o ato de integração na arte universal da sensibilidade brasileira e tudo que a diferencia e particulariza como expressão. O que significou para as letras e artes nacionais a Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922 poderia repetir-se no cinema, aventamos nós então. Data de aí, de 1922, a independência do Brasil. A boutade não é nossa, mas aceitamo-la como se nossa fosse. O Mário de Andrade do celuloide talvez se encontre entre esses jovens cineastas. Certo é que ainda não têm no cinema, em fins de 1961, a mesma importância que seus precursores em 1922, nas letras e nas artes, mas igual estrela os guia no caminho da expressão. Pertencem à mesma família. Outros rapazes existem no novo cinema do Brasil. Não os citamos pelo seu nome porque ainda não lhes vimos as obras. Que eles nos desculpem.

 

É impressionante a intuição do crítico português que lutou na guerra civil espanhola, amigo queridíssimo de Luís Buñuel e Almeida Sales. Que acreditou nos filmes que viu, apenas três curtas, e acreditou nas palavras proféticas de Gustavo Dahl em Santa Margherita.

 

O mesmo fez mais tarde Paulo Emílio com a protagonista de Porto das Caixas, chamando-a de Capitu.

 

O namoro com Narinha estava firme, eu já ia me esquecendo da frustração e do adiamento da realização da Casa assassinada e de Lea e de Roma. Procurava viver aquele momento único na cultura brasileira. Tancredo Neves tinha dado mais uma de gênio político, arranjando um parlamentarismo tampão, para Jango voltar, assumir a Presidência – sem poder ainda – e logo depois fazer um plebiscito e recuperar o poder.


Voltamos a sair com Danuza, que estava linda e feliz, ao lado do gordo Antônio Maria, inteligência rara. O gordo era corajoso, de briga. Samuel Wainer vinha com a força toda de seu tempo com Getúlio. Agora com Jango, mas o amor de Denuza falou mais forte. Narinha tinha adoração pro Danuza. Íamos de bar em bar, lembrando as músicas que cantávamos juntos. Danuza seria a musa de Gláuber mais tarde – para esquecer Nina-Lea, só duas musas assim.


Antônio Maria tinha fama de cheirar pó, mas nunca vi, se fazia era um profissional, discretíssimo. Eu e Nara saíamos também com Vinícius e Lucinha Proença. Íamos a Petrópolis, em casa de Lucinha. Casa agradável e conhecida através dos livros de Otávio de Faria. Eu imaginava seus personagens jogando vôlei em Paquetinha. A terrível Reni procurando condenar padre Luís e seu orgulho ao inferno.

 

Era a Paquetinha para se filmar a “Tragédia Burguesa”.


Passamos, eu e Vinícius, a noite e a madrugada até a manhã de muito sol, conversando sobre tudo, mas a maior parte do tempo foi sobre o cinema, Otávio de Faria e depois a “Tragédia Burguesa” – Vinícius foi amigo de Otávio, pois este último chegava a fazer prova por Vinícius na Faculdade de Direito do Catete. Poeta, crítico de cinema, defensor do cinema mudo, era discípulo querido de Otávio. Lucinha era sobrinha de Otávio e seu marido, Vargas era um craque na Bolsa e nos negócios, e estava administrando muito bem a renda da família Faria/Proença. Logo, Otávio não gostou nada quando Vinícius enfeitiçou Lucinha. Otávio não gostou – chamou-o de poeta de bar da esquina. Vina sabia disso e respeitava muito Otávio, mas arrasou a “Tragédia Burguesa”. Demoliu-a, ridicularizou-a. Eu defendi até não aguentar mais. Era impossível acompanhar Vinícius no uísque.

 

Narinha dormia. Um trauma, decorrente de sua ligação com Ronaldo Bôscoli, fazia com que ficasse tensa demais. Ela foi perdendo o medo aos poucos, relaxando, se convencendo de que não existia tanto pecado humano. Não era humano. O sexo podia ser o retrato da morte, mas também o retrato da vida. Ela foi relaxando, relaxando...Estava tão bom, mas ela cortou, foi fazer análise, sumiu.

 

Fiquei meio sem saber por quê. Sofri.

 

O que senti do toque foi que eu tinha que começar a pensar num filme, já que tinha vindo da Itália para filmar.


A situação política estava esquentando, caminhando para a esquerda. Brizola ficou forte. Darcy Ribeiro adquiriu a condição de timoneiro da educação e cultura. O CPC crescia. Ali na Praia do Flamengo, no belo teatro da sede da UNE, faziam músicas de protesto, teatro popular e armavam o roteiro de Cinco vezes favela. O pessoal de São Paulo veio para cá. Oduvaldo Viana Filho, Milton Gonçalves, Flávio Migliaccio, Fernando Peixoto, Chico Xavier, quase todo o Arena para encontrar os cariocas, Armando Costa, João das Neves, Sérgio Ricardo, Carlos Lyra, Guarnieri, Leon Hirszman, Eduardo Coutinho, Antônio Carlos Fontoura, Marcos Faria, Miguel Borges, Carlos Estevão, Arnaldo Jabor.

 

Eu ficava meio desligado, via que o que eu queria fazer tinha outras arestas. Vivia lá, mas continuava a frequentar a mesa do Otávio, a casa de Alair, o Beco das Garrafas, o ateliê de Aluísio Magalhães, o Albino e suas mulatas, o samba de morro, o futebol do Fluminense. Continuava a ver o fervor dessa geração criadora, sentido a década promissora.

 

Mário Carneiro ia se casar com Marília, Gláuber se separava de Helena Inês, Sérgil, meu irmão, era o advogado dos dois. E ficou maluco comigo quando a pedido de Gláuber, raptei Paloma e a levei para a casa de minha mãe, no Zacatecas. As brigas de Helena e Gláuber eram terríveis, eu não podia deixar Paloma ali naquele caos. Helena nunca ficou contra mim, e Gláuber me considerava um irmão. Enquanto isso, Nélson montava Barravento.


A Bossa Nova se dividia entre a leva e a de protesto. O Rio estava em movimento. Resolvi escrever um roteiro do que eu estava vendo e vivendo, era a continuação do roteiro italiano sobre Mussolini e um exercício do Desafio: Amor de gente moça. Começava assim:

 

Marcelo se levanta da cama onde acabara de fazer amor com Ada. São jovens. Marcelo coloca um disco, pergunta para Ada: Mozart? Ou Jobim? Ela pede Mozart, ele põe Insensatez com João Gilberto cantando, volta para a cama e continuam fazendo amor. Enquanto isso, duas turmas se encontram na praia de Copacabana, em frente ao Alcazar. A turma da UNE vem cobrar dos estudantes do Lacerda a posição reacionária. Trocam slogans de esquerda versus a direita. Porrada come até a polícia chegar.

 

Numa sequência, Marcelo vai com uma linda mulata (Luisa Maranhão), influenciado pelo genial copião de Barravento. A mulata chamava-se Lindaura. Mais tarde, quando eu morava no hotel Plaza com Isabela, ela, com ataque de ciúmes, rasgou esse roteiro pensando tratar-se da Lindaura, rainha do caldo verde do Beco da Fome, na esquina de Viveiros de Castro com Prado Júnior.

 

Fernando Campos me procurou com ideia de um filme e umas fotos de Irma Álvareza, careca, no Festival de Veneza. Irma tinha cortado o cabelo para fazer o filme, que ficou inacabado, Cavalo de Oxumaré, de Ruy Guerra, o mesmo que fez Gláuber acusa-lo de plagiador. Estava lindíssima e começamos a querer aproveitá-la num outro filme.

 

Íamos aproveitar a beleza daquele rosto magnífico num filme de Zona Norte. Irma seria filha de um contínuo do Ministério do Trabalho cuja mulher tinha um terreiro de umbanda em Queimados, e lá uma bela Iansã baixava no corpo de sua filha. O importante era Irma. Eles teriam que ir para Brasília, mas não queriam deixar o terreiro.

 

Nesta época, a polêmica ideológica vinha aumentando, também as polêmicas entre filmes baratos com câmera na mão e aqueles de produção, industriais. Arraial era usado para polemizar.

 

Dizíamos: a realidade do Brasil é esta, pobre e cheia de conflitos, não adianta fazer filmes caros, não adianta criar uma indústria cópia de Hollywood. Vamos fazer filmes artísticos, culturais, que deem o retrato verdadeiro deste nosso país e do nosso continente. Vamos competir e concorrer com qualidade, com nossas ideias, nossos temas e nosso tesão. Ideia na cabeça e câmera na mão. Íamos formar um público para nossos filmes- um público que acreditasse nas nossas ideias, nas nossas emoções e na nossa revolução.

 

Era também um combate ideológico. E Arraial do Cabo, Aruanda, de Linduarte Noronha, e Couro de gato eram os pivôs da polêmica.

 

Rudá de Andrade tinha convencido Paulo Emílio e Almeida Sales a fazerem a apresentação dos curtas brasileiras na Bienal de São Paulo, em novembro de 1961. Os filmes seriam: Aruanda, de Linduarte Noronha, da Paraíba; Arraial do Cabo, de Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, do Rio de Janeiro; A rampa, de Luís Paulino dos Santos, da Bahia; Apelo, de Trigueirinho Neto, de São Paulo; O poeta do castelo e O mestre de Apicucos, de Joaquim Pedro de Andrade, do Rio de Janeiro; Couro de gato, do mesmo Joaquim Pedro; Igreja, de Sílvio Robato, da Bahia; e Desejo abstrato, de Roberto Müller, de São Paulo.

 

A grande expectativa em torno dos filmes encheu as salas e fomentou discussões. Rudá de Andrade, depois da exibição de Couro de gato, lançou oficialmente o Cinema Novo. Novembro de 1961.

 

Eu e Gláuber entramos numa briga de quase porrada com César Memolo e Carlos Alberto de Sousa Barros. Era a indústria contra a arte. Arte é plural, dá para todos. Indústria é filme de produtor. Imposição de tema, equipe, linguagem, etc;

 

Rudá defendia os filmes em que a criação e a emoção eram o que interessava. Filmes de baixo custo – ideia na cabeça e câmera na mão. César Memolo contra-argumentava dizendo que estávamos na era da bomba atômica, e a gente querendo fazer filmes com câmera na mão. Estávamos loucos.

 

Paulo Emílio não se manifestou, ficou aguardando para ver no que dava a continuidade daqueles filmes. Mas gostou da polêmica, Almeida Sales ficou dividido. Escreveu um artigo favorável, mas considerou todo mundo como fazendo cinema novo. Não viu a ruptura, veria mais tarde.

 

Os jovens, principalmente, ficaram do nosso lado.

 

Gláuber estava cheio de ideias e levando a maior fé. Barravento estava pronto e tinha recebido convite de Gianni Amico, com passagem, para o Festival de Porreta Terme.

 

Gustavo e Gianni Amico estavam trabalhando, o que era genial. A ponte Paris-Roma, Bahia-Rio-São Paulo funcionava.


Couro de gato tinha chegado antes de Joaquim Pedro. Que emoção contida e derramada ao mesmo tempo. Que comunicação lírica com o público. Quincas casa com Sara por procuração. Termina o curso de cinema verdade-cinema direto com os irmãos americanos.

 

Joaquim volta para o Brasil. Chega em grande forma. Armara com David Neves-Carrilho pelo Itamarati e dr. Rodrigo pelo Patrimônio Histórico – a vinda do cineasta sueco Arn Sukesdorf, altamente competente junto com equipamento (moviola, câmera, Nagra), tudo bem moderno. Mas os trâmites burocráticos retardariam em um ano sua chegada.

 

Mas a tabela Joaquim/David Neves foi valiosa.

 

Em Roma, li e amei Angústia, de Graciliano Ramos. Comecei um roteiro que terminei no Rio. Estava pensando em filmá-lo. Também trabalhei no Surupita, o devente, de Guimarães Rosa. A literatura brasileira tem uma coisa nova para revelar ao mundo, e o Cinema Novo pode fazer muito por ela. Mas o autor de filmes tem que ter um amor desrespeitoso pelo livro. Não tem que ter medo, tem de criar em cima.


Fiquei feliz com a adaptação que fiz da Casa assassinada. Encontrei Ferdy Carneiro, que me disse que Lúcio estava me procurando. Fomos ao seu encontro. Ficamos amigos de todo dia. Chegamos a morar os três no edifício da Joana Angélica. Lúcio já tinha marcado uma sessão de Arraial do Cabo na paróquia de Nossa Senhora da Paz para levantar algum dinheiro para a gente fazer locação na casa onde ele havia escrito em Valença. Fomos. Uma graça de cidade, com uma praça brasileiríssima. Na chácara, que ainda não estava abandonada, moravam umas primas de minha mãe, as Ribeiro de Castro. Eram de Juiz de Fora, estavam passando dias ali. A proprietária era dona Lea Pentagna, irmã do poeta Vito Pentagna, a quem o livro é dedicado e que emprestou a chácara para Lúcio escrever o livro.

 

Dez anos depois, em 1971, a chácara estaria abandonada, perfeita para o filme. Adorei. Deus escreve certo por linhas tortas – como as pernas de Garrincha, por exemplo. Todo o filme poderia ser passado no interior da casa, salvo o jardim encantado. Estava tudo ali. Fiquei triste por não filmá-la em 1962.

 

Lúcio, sentindo minha decepção, me disse que poderíamos fazer, antes, um filme mais barato: a história de uma mulher que mata o marido a machadinha para se livrar de toda a miséria e a indignidade. Vi logo Irma Álvarez com aquele machado. Estávamos de ter, correndo o estado do Rio, voltando a Ipanema, e passamos por Porto das Caixas. Ferdy gostou do nome. Porto das Caixas ficou sendo o nome do filme.  

 

Lúcio pediu uma ilha para escrever o argumento-roteiro. Como iríamos achar uma ilha em véspera de carnaval?! Saímos em campo. Ferdy achou uma ilha fluvial do Jaguar, perto de Juiz de Fora.

 

Na véspera de nossa viagem para a ilha, tomamos um porre no Alcazar. Eru tinha convidado uma mulher interessante, mas que, quando bêbada, se urinava. Lúcio convidou o Guima para ir com a gente.

 

A ilha era selvagem, tinha apenas uma choupana. Atravessaríamos de barco para o outro lado, onde havia alguma vida, um armazém solitário, um boteco. A ida e a volta com o barco tinha um macete: se não conseguisse o trajeto certo, a correnteza do rio levava. Ficamos os quatro dias de carnaval na ilha. Lúcio fazia batidas de tudo que encontrava no mato. Ficavam deliciosas.

 

Certa noite quase morri. Ferdy também. Os dois fomos comprar comida e cachaça na outra margem. Passou um bloco, com uma mulata linda que dançava para valer. Ficamos até tarde. O rio estava violento, as águas passavam perigosas. Chegamos até o barco, de porre e assustados. Na outra margem, Lúcio Cardoso, com um lampião na mão, nos indicava o caminho. Estávamos já no meio do rio, navegando sensacionalmente, quando bateu um vento e apagou o lampião. Na escuridão, nos perdemos e o rio foi nos levando. Rezamos e rezamos, agarrados ao barco. Ferdy gritava: “Sarra, lembre-se das árvores, no alto, vamos segurar nos galhos!” Ficamos em pé no barco. Levamos uma porrada forte e caímos na água, tentando nos agarrar às raízes e nos galhos. Ferdy conseguiu, e eu tive que me lembrar do tempo de natação e nadar muito contra a correntes. Ferdy já queria se largar do seu galho, mas foi amigo heroico: “Sarra, onde você está? Vou me largar”. Foi duro gritar que eu estava ali, também, só que noutros galhos. Salvos, Lúcio apareceu com o lampião aceso.


Ficamos em, silêncio, na sala, e aí Lúcio disse que ia preparar uma batia de aipim. Eu e Ferdy nos abraçamos e rimos muito. Enquanto isso, Lúcio contava que tinha pego o Guima e a minha convidada trepando no mato, e que ele dizia: “Esta mulher mijou na minha alma!”.

 

Acabou o carnaval, saímos da ilha, Lício não tinha escrito uma linha sequer. Só foi conseguir mais tarde, no boteco Mau Cheiro, no Arpoador. Chegou de bermuda, caneta e um caderno comprado na Casa Mattos. Escolher uma mesa isolada e começou a escrever sem parar, de uma vez só. Quando terminou, me entregou, estava pronto. Ele recebera uma carta de Clarice Lispector, estava feliz.


Quanto maior a zorra em volta, melhor para Lúcio criar. Nunca pude entender a má vontade dos meus amigos, cineastas ou não, em relação ao Lúcio. Sempre vi nele o maior artista brasileiro. Com que facilidade ele escrevia poesia e prosa, como desenhava, pintava, sabia de teatro e cinema! Era um grande mestre, sem nunca teorizar em cima.

 

Eu ia fazendo o meu roteiro ao mesmo tempo que Lúcio fazia o seu. E começava a pensar no elenco e na equipe. Só conseguia ver Irma Álvarez na pele daquela mulher, símbolo de uma cidade abandonada, de toda a solidão dos marginalizados, e ao mesmo tempo, via se formar em sua alma aquela ideia fixa e violenta por redenção e liberdade. Lúcio sugeriu Norma Bengell. Recusei, Norma é mais para Nina da Crônica. Faei e logo me lembrei de Lea. “Aí, como a distância existe”. E o elenco? Sei lá, pensei em Reginaldo Faria, Nélson Dantas, Guerreirinho, Margarida Rey. Mário na câmera e na luz e Ferdy Carneiro na direção de arte. Eu não queria trabalhar com pessoas com vícios profissionais, especialistas, queria a insegurança. Para sair coisa nova. Fui à luta para arranjar dinheiro. Os Taylor recusaram de saída. Lúcio me deu um conselho: “Faz o produtor comprar o roteiro; quem dá 10 mil, dá milhões depois”.


Convidei Luís Carlos Miele e Davi Conde para fazerem a produção. Davi Conde era tor e Miele produtor de shows. Ficaram espantados, nada sabiam de produção. Legal, vai ser melhor assim. Ninguém estava acreditando em cinema nacional, mas apareceu um fazendeiro paulista com muitas sacas de café para vendes nos Estados Unidos. Ficamos paquerando o paulista na praça Mauá, onde tomávamos grandes porres nos bares e eu morria de rir com Miele. Ficávamos dando show para a mulher e os filhos do paulista. Eles adoravam. Improvisávamos muito e era engraçado, se quiséssemos podíamos até fazer um show no teatro. Zé Henrique, o Ghigia, também tomou parte do trio, que virou quarteto. Quem improvisava como Miele podia fazer muito bem produção. Eu pretendia fazer um filme dentro da realidade brasileira, o que era diferente de fazer em Hollywood ou na Europa. Aproveitar tudo que a realidade nos sugeria. Com o show, a gente era convidado para muitas festas. E entre uma e outra dança venderíamos o Porto das Caixas, mas estava difícil. Precisávamos de uma firma, um escritório. Dormíamos onde pintasse uma cama ou uma mulher...Assim não dava. O paulista vendeu sua saca e desapareceu, ficamos a La nave vá.

 

Fiz um orçamento rigoroso, que ao mesmo tempo não era nada – 6 milhões de cruzeiros, uns 12 mil dólares. Muito inferior à média dos filmes brasileiros. Já me sentia desanimado. Pensei em visitar Fernando Campos no ateliê do Aluísio Magalhães. O Fernando, nosso querido Champs, por causa de Irma Álvarez, certamente teria uma ideia genial para se conseguir o dinheiro.

 

Antes disso, porém, chega uma carta de Gláuber, ainda às voltas com a finalização de Barravento e suas ideias de novos filmes:

 

querido Paulo

ainda bem que você sabe compreender a situação do cineasta brasileiro. fiquei com medo de você, desesperado, ser capaz inclusive de se virar contra mim. o banco atrasou novamente o financiamento pra concluir barravento. Estou alucinado, perdendo tempo. tudo o que se pensa e o que se organiza é pra depois de pagar as dívidas. O atraso é como se fosse uma praga, não quero que você se comprometa mais, pelo menos comigo, todavia é coisa certa o fique sobre camponeses pra março. Produção profissional, na melhor base. Rex e Braga concordam integralmente que você seja o diretor. Não há problema quanto a argumento. O que houve em a grande feira foi por culpa de roberto: se ele cortasse as besteiras, não haveria problema. Rex é um produtor que põe no contrato o seguinte: “fica concedida inteira liberdade de criação artística ao diretor”. a proposta é de 500 contos pra você realizar o filme e mais uma porcentagem sobre os lucros: no total equivale a quase um milhão. paulo, a revolução aqui no norte é um FATO. crescemos dia a dia. o mais importante dos filmes brasileiros será esse filme camponês. 200 mil pessoas morrem de fome e sede nas estradas, enlouquecem, assassinam. dos campos áridos e miseráveis de pernambuco vem a voz da revolução. homens que não têm carteira de identidade a não ser o recibo da sociedade. obreiros da morte, onde se inscrevem pra o enterro, quando morrerem. A revolução crescendo nos campos – pernambuco, paraíba, piauí, maranhão, goiás, bahia, minas – se você olhar o norte 24 horas, você enlouquece de raiva e vibra de entusiasmo. Todos os meus amigos estão no partido. Vou entrar esta semana ainda. Na unversidade, nos sindicatos, nos campo da bahia e pernambuco só há uma palavra – REVOLUÇÃO! é um momento histórico, um momento que não se pode negar porque tudo está presente, intenso. Este filme será uma das grandes bandeiras revolucionários do norte. aqui na bahia todo mundo fala e espera este filme. ele será pro brasil uma espécie de encouraçado pontemkin – porque você, com a poesia que revelou na violência de arraial, fará um filme genial, tenho certeza. recolhi com rex os dados sociológicos e preparamos uma estrutura (está em preparo) sobre a qual você poderá fazer um roteiro com intensa liberdade. não acredito, inclusive, que diante do tema possa haver opção anti-revolucionária de sua parte, porque não se trata de um panfleto mas de uma verdade. o ambiente é aquele de aruanda – aquela gente pobre e magra, aquela paisagem infernal da seca e desolação, os latifúndios da cana e as ligas. você se lembra do túmulo do sol? agora, você só vai se comprometer com este filme, depois de contratado. no rio de janeiro, rex enviará o contrato: em fevereiro você vai pra pernambuco, preparar o roteiro pra filmar em março. eu não sou contra amor de gente mola. não há condições, porém, de produzir um filme no rio – pelos motivos que lhe expliquei. o seu roteiro é excelente, eu acho ótimo. mas teremos de esperar mais um pouco. Não pense que eu quero ser produtor pra ganhar dinheiro – eu quero criar condições pra que minha geração se realize sem problemas, sem dinheiro não se faz cinema. E não podemos ser artistas no cinema brasileiro, a não idealisticamente. Tenho muito medo de ser mal interpretado. Aqui na bahia, salvo roberto e rex, todo o mundo me interpreta mal. Não sei aí no rio. Mas isto não tem a menor importância. Entrando pro pc eu quero ser o homem revolucionário total, distanciado de qualquer problemática individual burguesa. Não que eu assuma o sectarismo de negar o homem, porque quero a revolução pra dignificar o homem. Mas não quero mais ser vítima das pequenas mesquinhezas da nossa condição.

quais as intenções de samuel wainer? quer fazer cinema – se eu tivesse nas mãos dez bons roteiros, eu levantaria dez produções. atuando como produtor este ano, eu espero que em 1963 tenhamos condições básicas de produzir com regularidade, isto se a revolução não interromper a marcha. depois de “rebelião camponesa”, vamos fazer em junho “alagados do inferno”, um filme nas invasões que vai ser dirigido por orlando senna, um jovem daqui do nosso grupo, talentosíssimo que é o assistente de direção de roberto em “tocaia no asfalto”. e ainda há chance pra mais dois filmes depois de agosto e pra isto espero convidar joaquim pra fazer um deles. talvez eu fizesse o outro. é preciso formar o movimento. precisamos fazer filmes CERTOS- entendeu? Não se pode arriscar, porque se falhamos um segundo, caímos no fracasso. filmes “LIVRES” só quando a base estiver formada. sei que você (como eu) pode reagir a isto, MAS É A SAÍDA. do contrário ficaremos apenas sonhando, entende? eu sou REALISTA, não tenho ilusões. por isto, Antonioni só me interessa enquanto sou intelectual de superestrutura. Quando eu faço a redução pro BRASIL SUBDESENVOLVIDO E INCULTO – eu vejo que a europa é a HISTÓRIA FEIOTA e nós SOMOS A HISTÓRIA A FAZER, e nosso tempo é pouco, nosso passado é vergonhoso e temos de agir engajados na história. o brasil de hoje não tem lugar pro artista romântico e sim para o artista revolucionário, mas não um revolucionário da arte e sim da própria história. estética hoje é uma questão política. escreva. gláuber.

 

Gláuber, quando está na Bahia, fica furioso e radical, queremos resolver e dirigir tudo, todo o movimento. É genial, por dar tesão para todos. Mas é ansiedade. Arte é individual. Mesmo no CPC, onde o dinheiro é estatal, do Jango, a barra é difícil, imagine com cada um de nós. Não penso mais no filme do camponês, nem na Amazônia, nem Angústia, nem Soropita do Guimarães Rosa, menos ainda no Amor de gente moça, fruto da minha ligação com Nara.  Agora estou em outra, quer ver Irma passar com sua beleza e sua revolta pelos destroços daquela cidadezinha abandonada, igual a esse povo do que fala Gláuber. Onde a palavra de ordem – reforma agrária – é pura ficção. Gláuber vivia a sua batalha, eu a minha. Mas que injustiça com Antonioni. O homem é de esquerda e está analisando a burguesia e a elite da Europa. E fazendo arte.

 

Enquanto espero, começo a pensar na equipe e elenco. Mário Carneiro na câmera e na luz. Para seu assistente chamamos o Fernando Duarte, o talentoso jovem do Metropolitano. Sérgio Sanz, filho de Zé Sanz, será meu assistente. Procuro Ferdy Carneiro, onde estará Ferdy?

 

Irma Álvarez é argentina, veio como vedete do teatro de Walter Pinto. Não parecia vedete, era discreta, doce, gesticulava pouco, carinho só. É atriz de cinema moderno – novo. Chamei Nélson Dantas, Guerreirinho e Reginaldo Faria.

 

Publicado originalmente em SARACENI, Paulo César. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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