segunda-feira, 5 de outubro de 2009

M (OU A ÚLTIMA PÁ DE CAL SOBRE SEIS BOATES)


M (OU A ÚLTIMA PÁ DE CAL SOBRE SEIS BOATES)

Por Lourenço Diaféria

O anunciado fim de seis velhas boates da cidade pegou de calças curtas - digo de calças curtas, não necessariamente em trajes menores - meia dúzia de gatos-pingados sentimentais, nada além disso.

Os boêmios, os que deveriam tremer nas bases e gemer nas rampas, esses aprendem desde pequenos que não se deve chorar por nenhuma boate.

Mas a notícia foi chocante

Primeiro, chamar boate de velha é assim meio sobre o depreciativo. Mais elegante seria dizer: as maduras boates.

Segundo, muito admira que essas casas de tédio e ilusão ainda funcionassem em regime de dedicação exclusiva.

Eu, confesso, me retirei antes - soldado ferido e colocado fora de combate, preferindo não ver de corpo presente a queda dessas antigas fortalezas. Não importa que tipo de fortalezas; foram fortalezas.

Caem, portanto, não de velhas - mas de maduras, arrastando nos escombros falsos amores, falsos uísques - quantos tomei e quantos paguei! - falsos garçons, falsos porteiros, falsos apaixonados e quatro ou cinco mulheres realmente verdadeiras.

O resto eram manequins.

Sempre impressionou muito a este ex-falso boêmio a freqüencia de manequins nessas velhas - perdão, nessas maduras boates. Manequins de todos os temperamentos ali relacionaram seus dotes e suas prendas e no perene lusco-fusco profissional tentaram ser estrelas radiantes. Perderam a luta. Elas sempre perdem a luta: as estrelas evanescem à luz de mercúrio.

E eis aqui uma grave constatação: as boates, as criaturas de boate, dificilmente resistem à crueldade da luz de mercúrio.

Mas enquanto houve iluminação para a farsa, houve manequins e houve farsa, a clientela sendo ao mesmo tempo platéia e comediante - mãos, cordéis, fantoches do espetáculo. E, naturalmente, patrocinadores das récitas.

Baixa agora o pano do palco: o progresso rói não apenas as paredes, mas também as infinitas dores-de-cotovelos que ali foram bebidas, consumidas e choradas, de sorte que cada tijolo adquiriu a porosidade de uma lembrança e cada nervura de vigamento é o fio da meada de uma história inconfessável.

Nada mais tenho a dizer sobre o episódio final dessas casas noturnas senão isto: não deixo nenhuma conta pendurada, nenhum favor não liquidado, nenhum porteiro de boné na mão, nenhuma mulher me chamando de vai-vai, ingrato!

Fui honesto, até onde se é possível ser honesto num estabelecimento do ramo.

Jamais briguei, e jamais afirmei, a qualquer das damas ali presentes, que era fazendeiro em Presidente Prudente. Ao contrário, fiz-me sempre passar por competente revisor, com o que angarei as quase desinteressadas caridades de mais de uma dama. (Não sei por que cargas d`água, mas os revisores - embora não o saibam - são extremamente estimados nesses ambientes festivos, principalmente após as três da madrugada).

Fiz boas, ótimas amizades, embora fugazes: duravam coisa de duas doses. Mas eram amizades tão sólidas que os garçons, que têm esplêndido faro, cobravam por cinco, fora a propina.

Por várias vezes emprestei lenços de cambraia para enxugar as lágrimas de senhoritas que ali haviam entrado pela primeira vez - e por lamentável engano. Na verdade, procuravam uma tia muito rica, que enviuvara.

E outras vezes ajudei a curar enxaquecas, varizes, verrugas, panarícios, tudo de acordo com receitas médicas que me foram devidamente apresentadas.

Um dia, na manhã seguinte, deu-me uma dor de cabeça muito forte. Deveras, muito forte. Uma dor de cabeça atroz, que não houve sal-de-fruta que sossegasse. E eu descobri, desapontado, que fora enganado todo o tempo: o coquetel que as meninas pediam e bicavam era apenas suco de uvas.

Fui até a chapelaria, pedi meu chapéu de coco - e me retirei em definitivo, com a respeitabilidade maior que os senhores de respeito sabem manter nos momentos das pequenas decisões.

Dessas casas - dessas seis casas especializadas que encerram agora seu expediente, e meso das outras casas afins - levo apenas uma mágoa: a lembrança da abominável presença dos leões-de-chácara, que geralmente usam perfume de péssima qualidade e são de natureza mal educados.

Tudo se perdoa à noite, menor um leão-de-chácara com perfume barato.

De resto, peço licença para fazer um pouco minha a imortal frase do “Coroa da Boca”, que resumiu sua filosofia de manobrador de carros nesta frase fundamental: “O diabo fecha uma porta, mas Deus abre muitas outras.”

Esse “Coroa da Boca” tem sua ponta de fé, embora pessoalmente eu não creia que Deus se deixe envolver nesse estranho negócio, onde mulheres florescem e murcham como sonhos. Afinal, são seis portas que o diabo fecha de uma vez só, quase sem aviso prévio.

Isso é que é realmente o diabo.

Mas Deus também escreve certo por linhas tortas.

Afinal, foi numa dessas casas que conheci M., muitos anos atrás, e foi ela que me ouviu tantas vezes as conversas sem nexo e sem propósito, me encarando no rosto seus olhos negros e brilhantes de carinho, de atenção, e tendo até o pudor de não pedir nada, nem uma bebida, nem um guaraná. Ficava ali ouvindo, ela tentando ser mil coisas, menos aquilo que a gente pensava que ela fosse. Encardenou livros, costurou vestidos, fez curso de madureza, acordava às seis da manhã para forçar o corpo a fugir daquele mundo.

O mundo de M.

A lenda da dama da noite que é uma fada não passa de um mito dos bêbados. Mas eu estava completamente sóbrio quando a vi pela última vez - e ela, depois de me ouvir muito tempo, disse simplesmente assim: adeus.

Perdão, leitores.

*Este post é dedicado a Alex B, escitor e pesquisador sobre a boêmia de SP. A crônica foi retirada do livro Um Gato na Terra do Tamborim de Lourenço Diaféria, publicado pela editora Símbolo em 1976. Este livro está fora de circulação das livrarias, mas pode ser facilmente achado nos sebos a um preço bastante acessível.

2 comentários:

Agente X9 disse...

Matheus: parabéns pelo resgate das letra do Diaféria. O melhor cronista urbano de São Paulo. Abraços, Gilmar

Alex B disse...

Ah,sim,esqueci de falar disso no e-mail: você me recomendou, no comentário sobre a entrevista do Kazinho postada no Boteco Sujo, o Boca doLixo, do Hiroito Joinades.No mesmo dia em que li o comentário o achei em um sebo da 7 de abril, pela bagatela de 5 paus. Estou lendo e obrigado: ótimo livro. Vou procurar, logo lgo esse do Diaféria.