domingo, 18 de outubro de 2009

O provocador Jards Macalé


A esquerda é de direita

O ex-compositor maldito se diz livre das amarras políticas, acha a intelligentsia burra e acusa a esquerda de defender a direita

Por Regina Echeverria e Elizabeth Carvalho


Era domingo, 30 de setembro, festa de São Cosme e Damião. Na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, 20 000 pessoas participavam de um hapenning, em que o prato principal era a Declaração dos Direitos Humanos. Entre pipocas e doces, o compositor Jards Macalé comemorava assim o lançamento do disco “Banquete dos Mendigos” - gravado ao vivo no Museu de Arte Moderna reunido os principais intérpretes da música popular (de Chico Buarque a Luís Melodia) e só agora liberado pela Censura. Uma semana antes, o mesmo Macalé desembarcava em Brasília com três Lps “Banquete dos Mendigos” na mão para presentear os ministros Eduardo Portella, da Educação, Petrônio Portella , da Justiça e Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil. De Golbery, Macalé conseguiu a qualificação de “muito louco”, bem mais amena que os xingamentos desfechados por colegas indignados pela visita.

Aos 36 anos, três LPs, inúmeras brigas com empresários, gravadoras e parceiros, o carioca Jards Annet da Silva virou Makalé (“porque o K não existe no analfabeto e eu acho essa metáfora ótima”) e estendeu a mão com um gesto conciliador: entrou no Palácio do Planalto vestindo uma camisa do Flamengo, a carteira da Ordem do Músicos na mão e fazendo a saudação de Xangô, seu santo protetor.

Uma posição bem distante do contestador Macalé que, há dez anos, mirrado e obscuro, entrava de camisola no palco do Maracanãzinho, durante o IV Festival Internacional da Canção. Debaixo de vaias, tomates e copinhos de papel ele cantou - para quem conseguiu ouvir - uma monocórdia profecia que levava o nome de “Gotham City”, em que advertia para o perigo de um morcego na praia principal. Com esse gesto, Macalé, ou ainda Macao, como o chamavam seus amigos mais próximos, ingressava no movimento tropicalista, uma das mais importantes manifestações culturais do final dos anos 60.

Começava também uma carreira que, sem sucesso de público, o colocou entre um dos mais polêmicos compositores da música popular. Ainda mais famosa que sua aparição no FIC foi sua interpretação do “Princípio do Prazer”, durante o Festival da Abertura de 1975. Entre um e outro acorde, Macalé comia rosas e maçãs, “para despertar os sentimentos de mobilização”. Já o Makalé de hoje vai entrar sobriamente no próximo festival de música da TV Tupi em novembro cantando o samba de breque “Tira os Óculos e Recolhe o Homem”, em parceria com Moreira da Silva.

Casado com Maria Eugênia (sua terceira mulher), filha do governador de Minas Gerais, Francelino Pereira, Makalé parece, no entanto, ainda mordido pelo morcego de “Gotham City”. Nesta entrevista, ele critica a esquerda e a direita, propõe a invasão de Nova York pelos cultos afro-brasileiros e declara-se rompido com tudo e com todos.

VEJA- O que o levou ao Palácio do Planalto para conhecer o ministro Golbery do Couto e Silva?

MAKALÉ- Primeiro, porque quando li seu livro “Geopolítica do Brasil”, encontrei em determinado trecho uma semelhança estilística com Jorge Mautner e seus “Panfletos da Nova Era”. Segundo, porque a síntese do pensamento do livro me chamou a atenção - a ciência como instrumento de ação, a democracia como regime sócio-político e o cristianismo como padrão ético. E, para mim, o importante no cristianismo é justamente o humanismo que ele contém. Eu quis ver o homem.

VEJA- Que questões você pretendia abordar nessa conversa?

MAKALÉ- Fui conversar com ele da mesma forma que converso com Jorge Amado, com Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Caetano Veloso, Jorge Mautner. Não existe uma coincidência de idéias nem eu o “admiro” - entre aspas- muito. Não é a primeira vez que eu vou ao Planalto. Quando se discutia a situação de trabalho do músico e a invasão do nosso espaço cultural estive com Ney Braga. Dois anos atrás fui jantar na casa do ex-ministro Reis Velloso para tratar de assuntos culturais. E, além do mais, não tenho grilo de conversar com militares porque meu pai era militar.

VEJA- Você apresentou um plano cultural ao ministro Golbery. Em que consiste esse plano?

MAKALÉ- Basicamente, meu plano prevê uma guerra cultural anticolonialista. Nossos terreiros afro-brasileiros precisam invadir Nova York. E isso se dará por meio de nossos agentes culturais não-colonizados, como Clementina de Jesus. Sugere também a reconsideração e reestudo das penas dos presos comuns, porque tenho vários amigos pessoais presos e conheço situações de pessoas presas arbitrariamente. Mencionei também o revigoramento do pensamento humanista que determina um valor ético cristão e ainda sugeri o fim das divergências político-sócio-econômicas, que é um assunto que o ministro Golbery, em 1958 já abordou em seu livro. Aliás, pedi a ele que, depois de uma “Geopolítica do Brasil”, escrevesse uma “Geopolítica Cultural”. Antes de me despedir, entreguei ao general uma fita cassete com as seguintes músicas: “Evocação em Defesa da Pátria” de Heitor Villa-Lobos; “Dona Divergência”, de Lupicínio Rodrigues cantada por Linda Batista; “Não Chore Mais”, de Bob Marley na versão de Gilberto Gil e “Canção para Inglês Ver”, de Lamartine Babo. É isso aí.

VEJA- Dizem que você pediu também a legalização da maconha. É verdade?

MAKALÉ- Por que eu pediria a legalização da maconha, se todo mundo fuma?

VEJA- Essa visita tem recebido críticas violentas. O “Pasquim” por exemplo, aconselha a rasgar com os dentes seu disco “Aprendendo a Nadar” e suspender “O Banquete dos Mendigos”.

MAKALÉ- Essa mesquinha luta político-partidária que está aí solta pelo Brasil me irrita. As pessoas são burras, não sabem de nada, não entendem o Brasil. Os intelectualóides ficaram chocados porque entrei no Palácio do Planalto vestindo a camisa do Flamengo e saudei as pessoas com o cumprimento de Xangô. E ainda tive o desplante de dar ao general o livro “Tenda dos Milagres”, de Jorge Amado. Esses esquerdetes não suportam o povo. São racistas e preconceituosos. Troco toda essa genialidade dos intelectuais brasileiros pela intelectualidade dos Trapalhões. Para mim, essa luta partidária é replay menor. É papo de otário que não tem informação. A “inteligência” é burra e a esquerda é de “direita”.

VEJA- Você pode explicar melhor o que chama de “inteligência burra” e de “esquerda de direita”?

MAKALÉ- A esquerda é conturbada, tanto quanto a direita, não entende diálogo em alto nível. A paixão política cega os homens. Eu admiro as pessoas que fazem de sua profissão uma arte. E é no nível da arte que converso com elas. Não converso com o lado escuro delas, este, eu apenas observo. Agora, quando sopram os ares de uma abertura - que aliás venho observando desde 1974 -, sobram só os intelectuais entreguistas, de mentalidade europeizada e americanizada, e uma esquerda burra, totalitária e fascista. Desapareceu a censura oficial, surgiram os censores reais. Onde é que está a liberdade de expressão de que falaram tanto? E minha liberdade de expressão?

VEJA- Você não poupa ninguém nessas suas críticas?

MAKALÉ- Só tenho admiração por um comunista - Luís Carlos Prestes. Esse é um homem que nunca se traiu. Os outros são todos conturbados. O pessoal do “Pasquim”, por exemplo, é racista, subliterato e faz humor que mataria de vergonha Chaplin, Oscarito e os irmãos Marx. Levo o Brasil a sério. Sou radicalmente libertário. Vou repetir novamente uma frase de Antônio Carlos Jobim: o Brasil não é para amadores, é para profissionais.

VEJA- O que os “profissionais”, em sua opinião, deveriam fazer para tirar o país desse caos que você descreve?

MAKALÉ- Deveriam fazer um projeto cultural para a nação! Para se entender fundamentalmente quatro livros, além de toda a obra de Jorge Amado. Esses livros são: “Geopolítica da Fome”, de Josué de Castro; a “Geopolítica do Brasil” do ministro Golbery; o “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade; e sobretudo, “Casa-Grande e Senzala” de Gilberto Freyre. Entendendo tudo isso, é possível fazer uma revolução cultural, ao som da música de Villa-Lobos e dos poemas de Carlos Drummond de Andrade.

VEJA- Tudo isso parece muito semelhante ao que diz Glauber Rocha.

MAKALÉ- Glauber Rocha é um grande criador.


VEJA- Essa “revolução musical” atinge a música brasileira de que maneira?

MAKALÉ- A música brasileira, para mim, tem apenas duas personagens: Pixinguinha numa ponta e Paulinho da Viola na outra. O resto é colonização. Eu prefiro os que ainda estão para chegar. Acho tudo decadente. Inclusive eu mesmo. De repente, até dou razão ao Tinhorão.

VEJA- Essa é certamente a mais radical crítica da década. Você poderia elaborá-la um pouco mais?

MAKALÉ- Claro, a melhor crítica é a autocrítica. Dou razão ao Tinhorão em alguns aspectos. Fui um autor de elite. “Aprender a Nadar”, o segundo, também tinha um posicionamento de elite. E isso não me interessa mais. “Contrastes”, o terceiro LP, chega mais perto. Recentemente, participei de um show para os metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Acompanhei Lula, Djalma Bom e o “Alemão”, que apresentei como Trio ABC. Quando toda a platéia esperava músicas “revolucionárias”, Djalma Bom, que tem uma belíssima voz, cantou “A Deusa da Minha Rua” e “Rosa”, de Pixinguinha. A partir daí entendi perfeitamente a sensibilidade do operariado brasileiro e comparei-a àquelas tristes figuras quixotescas da platéia.

VEJA- Você já tem um trabalho dentro dessa sua nova linha popular?

MAKALÉ- Sabe o que eu estou fazendo? Ouvindo muito Orlando Silva, Villa-Lobos, Pixinguinha, Lupicínio Rodrigues, Paulinho da Viola e Clementina. Só ouvindo.

VEJA- Você está nesse momento vivendo da renda do disco “O Banquete dos Mendigos”?

MAKALÉ- “O Banquete dos Mendigos” não está rendendo dinheiro nem pra mim, nem pra ninguém. Os intérpretes não ganham, na medida em que abriram mão de 50% de seus direitos artísticos para a ONU. Eu só tenho 2% pelo trabalho de produção, que ainda divido com outras três pessoas. Além do mais, devo 150 000 cruzeiros - gastos no lançamento do disco. Tive que vender meu carro. Com exceção da Funarte, que pagou o som, ninguém se dispôs a dar um tostão. Esse disco é o único show ao vivo que se fez no Brasil com o som tecnicamente perfeito. É um documento político fundamental e, como documento musical, também é da maior importância.

VEJA- Mas esse não foi um espetáculo produzido em benefício de Jards Macalé?

MAKALÉ- Em 1973, eu tinha sido expulso da sociedade arrecadadora e meu contrato com a Phonogram havia sido rescindido por André Midani. Estava sem um tostão. Já havia feito shows beneficentes para o Teatro Opinião, o Teatro Oficina, a operação de ouvido de Alaíde Costa, a operação de Pé Grande, marido de Clementina de Jesus. Fiz shows para entidades estudantis. Fiz shows para tudo que estava indo para a falência. Pensei, então, que podia perfeitamente fazer um show em benefício de mim mesmo. O show foi marcado para o dia 10 de dezembro, quando se comemorava, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o 25º aniversário da Declaração dos Direitos Humanos. O representante da ONU propôs a junção dos dois acontecimentos, e o resultado foi esse trabalho.

VEJA- E você conseguiu sair da miséria?

MAKALÉ- Não. Ainda briguei com meu empresário, Guilherme Araújo, me libertei das amarras do empresariado do show-bizzzzzzzzzz. E ainda por cima continuei participando de todos os espetáculos para levantar dinheiro para organizações com os fundos esvaziados. Durante a produção do disco, eu e o poeta Xico Chaves ficamos várias vezes sentados em cima de um monte de fitas dos Direitos Humanos pedindo carona, sem um tostão para ir pra casa. Sentados em cima dos direitos humanos, imagine! O disco, para completar, foi proibido em todo território nacional. Passei seis anos tentando tirá-lo do limbo.

VEJA- Por que você escolheu a Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, para o lançamento do “Banquete”?

MAKALÉ- Não teria sentido lançar esse disco num teatrinho da Zona Sul do Rio. Queria um local de lazer do povo. Compareceram 20 000 pessoas, no dia em que se comemorava a festa de São Cosme e Damião. Eu e algumas pessoas ligadas ao “Banquete” passamos um fim de semana ensacando 20 000 doces e pipocas para distribuir ao povo. E foi o povo quem aplaudiu os artigos da declaração. As palmas foram para os direitos humanos e não para nós, os “artistas”.

VEJA- Os artistas que cantam no disco também participaram da festa?

MAKALÉ- Não. A ONU mandou convite para todos, mas nenhum deles apareceu. Nenhum, graças a Deus. Foi o melhor que podia acontecer. Colocamos uma mesinha e, pelo microfone, avisamos que, quem quisesse cantar, tocar e poetizar, poderia se inscrever. Subiram no palco pessoas absolutamente fantásticas, com músicas, poemas e instrumentos maravilhosos. O povo dispensou com a melhor tranqüilidade os “ídolos”. Isso é um recado claro: não fizeram nenhuma falta.

VEJA- Parece que os antigos parceiros também não fazem falta.

MAKALÉ- São todos decadentes. O Waly Salomão é decadente. José Carlos Capinam é decadente. Não estou no meio dessa decadência. Renasci no dia do lançamento, comendo balas e pipocas com as crianças. Alimentei meu corpo social, cresci, não tenho nada com a decadência do intelectualóide brasileiro. Fica todo mundo deitado no divã do psicanalista, quando Freud entrou em crise. Não levaram Freud a sério, não levaram Reich a sério, não levaram Marx a sério. Não se levaram a sério. Eu me levei.

VEJA- Como você analisa o que aconteceu com seus antigos companheiros?

MAKALÉ- As contradições foram muito violentas. Quem não resolveu sua equação, dançou para a década que se aproxima. Como disse o Drummond: “Os delicados preferiram talvez morrer”. Torquato Neto enfiou a cabeça no fogão e acendeu o gás. Dedico o “Banquete” a ele. É um símbolo de todos os que morreram, que se suicidaram, abriram mão da vida. Na época, eu sentia uma depressão violentíssima. Mas participei do desbunde numa linguagem muito agarrada á vida. Sempre disse que sou do “esquadrão da vida”. Veja só meus antigos companheiros: um trabalha numa firma de propaganda, outro faz qualquer coisa, outro não consegue tocar nada pra frente. Então vão se virar. Rompi com tudo e com todos.

VEJA- Como é que você pretende prosseguir nessa trajetória tão solitária?

MAKALÉ- Vamos deixar de modéstia. Sou músico de formação clássica, fiz teatro com Augusto Boal, trabalhei com o Opinião. Musiquei poemas de Mário de Andrade para o filme “Macunaíma” do Joaquim Pedro de Andrade, fiz a transposição do piano para o violão de uma peça de Marlos Nobre, incluída no filme “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, de Glauber. Depois, entrei na produção efetiva de “Amuleto de Ogum” e, fundamentalmente, do filme “Tenda de Milagres”, acompanhando todo o processo industrial de um filme de Nelson Pereira dos Santos até o lançamento. Em Londres, fiz os arranjos do disco “Transa” de Caetano Veloso, que considero o melhor da carreira dele. Dirigi os arranjos do primeiro espetáculo de Maria Bethânia, na boate Cangaceiro. Eu afinei Bethânia. Não sou fazedor de arte alienado do processo industrial. Essa é minha diferença em relação aos outros autores. Deixei de ser artista para fazer arte. Artista é aquele que aparece nas capas da “Amiga”, das revistas pornográficas brasileiras. Eu faço arte.

VEJA- Há uma grande distância do Macalé de “Gotham City”, vaiado no FIC em 1969, e o Makalé que vai hoje a Brasília.

MAKALÉ- Claro. Primeiro, o mundo mudou. Depois, o Brasil mudou. A África mudou. A América Latina mudou. O que existe hoje é o ocidentoriente. O homem de Gotham City entrou exatamente há dez anos atrás de camisolão no Macaranãzinho e, junto com José Carlos Capinam: “Cuidado, há um morcego na porta principal. Cuidado, há um abismo na porta principal. Não se fala mais de amor”. Pediram minha cabeça naquela época. Agora, quem quiser que olhe para trás e veja seus últimos dez anos de vida. Quem não tomou cuidado, dançou. O Makalé de hoje é um homem livre das amarras da política. Antigamente, eu era teleguiado da direita e da esquerda, sem ter consciência para isso. Atualmente, o homem Makalé fez sua independência.

VEJA- O novo Makalé ainda é capaz de comer rosas no palco?

MAKALÉ- Não, jamais. Isso morreu. E antes isso que eu.

Publicado originalmente na revista Veja em 17 de outubro de 1979

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