A cidade de Taboão da Serra é o segundo menor município do estado de São Paulo em extensão. A cidade sofre de graves problemas urbanos como a violência e a falta de atividades culturais. Atualmente, o município aparece mais nos meios de comunicação pelo noticiário policial.
O polêmico jornalista David da Silva, 52 anos, é um defensor de Taboão. Natural do município, ele fez carreira em várias publicações da região e possui grande experiência no jornalismo regional. “Não entro nessa viadagem de imprensa cidadã”, explica.
Admirador confesso de escritores como Plínio Marcos e João Antônio, David não acredita em alguns dos novos nomes da literatura de periferia. E não mede as palavras para criticar os nomes atuais do gênero. “Eles fazem uma poesia pobre e medíocre. Uma bosta”.
Por jornais locais, David conseguiu imprimir a sua marca e chegou a entrevistar o grande compositor Adelino Moreira antes da morte deste. Pra quem não sabe, Adelino foi o grande parceiro de Nelson Gonçalves, tendo feito a maioria dos grandes sucessos do boêmio.
Atualmente, o jornalista taboanense mantém o blog Bar e Lanches Taboão (www.barelanchestaboao.blogspot.com) e é assessor de imprensa da tradicional escolinha de futebol Pequeninos do Jockey. Numa manhã do mês de março, ele recebeu Violão, Sardinha e Pão no seu escritório para esta entrevista de mais de três horas.
VSP- Pra gente começar David, fala da sua infância, sua família.
David da Silva- Eu nasci no dia 20 de setembro de 1957 no bairro do Pazzini, em Taboão da Serra. Na verdade, Taboão é uma extensão da capital e essa parte em que eu nasci é um dos núcleos formadores da cidade em termos populacionais. Tinha uma outra parte de Taboão que era uma área mais agrícola e que não era tão urbana. Meu pai era caminhoneiro e minha mãe era metalúrgica. Hoje, ela está aposentada.
VSP- O seu pai veio pra Taboão quando?
DS- Ele chegou em São Paulo com dezesseis anos. Hoje, ele está com 73. Ele veio e logo depois ele se casou e foi pra Taboão da Serra.
VSP- Eles estão casados até hoje?
DS- Não. Eles se separaram quando eu tinha três anos de idade. Eu fui morar com uns tios meus porque quando o meu pai saiu da casa da minha mãe, ela ficou com as duas meninas e ele falou: “O moleque fica comigo”. Mas claro, o meu pai vivia na estrada...então eu fiquei com uma tia.
VSP- Seu pai transportava que tipo de carga?
DS- Tudo. Principalmente carga seca...ele trabalhou muito no Ceasa. Ele fazia o famoso noturno entre São Paulo e Curitiba pela BR-116. Meu pai foi pra estrada muito cedo. Quando ele chegou em São Paulo, ele foi trabalhar como ajudante de mecânico. A primeira casa dele foi um Oldsmobile, um carro do dono da oficina e ele morava dentro do automóvel. A minha vó acho morava num quarto muito apertadinho e ele dormia no carro. Foi nesse momento que ele aprendeu a gostar de tango...tinha um programa de rádio chamado Salão Grená e ele dormia embalado naquele programa que ia a noite inteira com tangos e boleros. Depois, ele foi trabalhar na Cooperativa Agrícola de Cotia como ajudante de mecânico. Mas ele já estava querendo tornar-se motorista. Mas era hábito...se viajava muito com ajudante e nas estradas os motoristas: “O baianinho você gosta de dirigir, então você pilota o caminhão”. Nessa época não tinha tanta fiscalização na estrada. Nisso, ele se realizou profissionalmente. Quando ele foi tirar a carta, ele já era caminhoneiro e até hoje ele não sai da estrada. As minhas irmãs vivem brigando com ele pra ele sair da estrada. O médico já proibiu também. O médico é tão filho da puta que chegou nele e falou: “Geraldo, você arruma um motorista pro seu caminhão. Você não dirija mais porque a sua pressão está alta”. Sabe o que ele fez? Ele tinha uma carreta de três eixos, agora ele tem uma porra de um tremilhão que a gente chama. É um caminhão de dois comboios...foi pra desafiar mesmo. Ele me falou: “Eu vou ficar aqui dentro. Se eu ficar dentro de casa, eu vou ficar doente”.
VSP- Claro. Ele deve ter vivido mais tempo no caminhão que em casa.
DS- Mais tempo...ele vive em Iconha, uma cidade no Espírito Santo que só tem caminhoneiro. O Espírito Santo é um lugar centralizado, tanto faz ele ir pra Porto Alegre ou Recife porque a casa dele está no meio do caminho.
VSP- Quando você nasceu ele só fazia essa linha São Paulo-Curitiba?
DS- Quando eu nasci, ele estava na estrada. Depois durante um tempo ele ficou trabalhando como motorista urbano com basculante, caminhão de areia. Durante um outro período, ele trabalhou com ônibus, ficou durante muito tempo sendo motorista de ônibus. Ele trabalhou na Penha, que hoje é a Itapemirim fazendo viagens interestaduais. Do ônibus ele voltou pro caminhão e está até hoje nisso. Hoje, ele é um veterano de estrada, então ele não pega carga em determinados horários. Ele pode chegar e falar: “Eu não vou fazer daqui a Recife em poucas horas”.
VSP- O que faziam os seus tios que te criaram?
DS- O meu tio era encanador e depois virou encadernador de livros. Eles tinham uma banca de jornal que foi o meu primeiro trampo. O meu tio acabou migrando pra ser dono de banca e depois trabalhou com encadernação de fascículos. Isso era uma febre naquela época...
VSP- Como a Internet não existia, essas coisas tinham muita força.
DS- Meu amigo era uma carga de trabalho nisso...
VSP- O seu tio era irmão do seu pai?
DS- A minha tia era irmã do meu pai.
VSP- Eles tiveram filhos?
DS- Tiveram, acho que foram cinco.
VSP- Como surgiu essa sua relação com Taboão? Como você começou a gostar da cidade?
DS- Não é questão de gostar, são as circunstâncias. Eu nasci lá. Como eu digo no meu texto Confissões do Taboanense: “Alguns anos vivo em Taboão, principalmente nasci lá”. Eu até te digo que se eu tivesse uma condição de vida diferente, eu não moraria lá. Porque é uma cidade degradada por falta de cuidados públicos. A gente olha em volta e não vê uma cidade, as instituições não funcionam como poderia ser. Taboão só não é menor do que São Caetano. Nós somos a segunda menor cidade do estado de São Paulo. Agora você veja: São Caetano do Sul tem 20 quilômetros quadrados, nós temos 20,5. Nós só temos meio quilômetro a mais que São Caetano. Então, porra é uma cidade pra você administrar na palma da mão.
VSP- E São Caetano acaba sendo bem mais desenvolvido...
DS- Não justifica a falta de estrutura da minha cidade porque ela está entre as 30 que mais arrecadam dos 645 municípios (do estado de São Paulo). Porque lá tem bastante industria, indústria de ponta. Todo material rodante do Brasil é fabricado lá, compreendeu? Então, tem uma boa arrecadação. Talvez por isso que a classe política de Taboão da Serra não seja zelosa com os recursos públicos. Eles se arvoram: “A gente está trazendo o desenvolvimento pra cidade”, mentira. O cara vai pra lá por logística: “Vou ficar em Taboão da Serra porque tem o rodoanel, BR-116”. É por isso que nasceu a cidade...Taboão é aquilo que a Emplasa (Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano, empresa criada para organizar as regiões metropolitanas de São Paulo) considera como povoado-entroncamento. Essa linha da (avenida) Francisco Morato sempre existiu, esse trecho acompanhando o Córrego Pirajussara que vai por baixo. Quando você chega em Taboão da Serra, tem um caminho que vai pro lado do Embu e outro que vai pro Capão Redondo, Campo Limpo. Então, Taboão está no meio disso tudo que eles chamam de povoado-entroncamento. Alguns políticos falam que vão trazer o metrô pra Taboão...os caras já falavam em terminal de trem em Taboão da Serra nos anos 50.
VSP- E essa história que você fala no blog de projeto de fazer um aeroporto em Taboão.
DS- Aquilo é uma piada de cafajeste né? Mas Taboão não tem lugar, não tem área pra isso. O que existe é um picareta de um vereador dono de imobiliária que estava fazendo corretagem pra coisa. O que tem haver? Em Taboão, não tem área nem pra fazer campo de aeromodelismo (risos). Isso tudo é canalice. Mesmo um terminal intermodal é complicado...
VSP- Mas Taboão não tem terminal rodoviário?
DS- Não.
VSP- Não tem terminal de ônibus?
DS- Não tem porra nenhuma, não tem nada. Rodoviária em Taboão da Serra não se justifica porque a cidade está a 25 quilômetros do centro de São Paulo. O que não falta pra Taboão são projetos. Se você vai pra Emplasa , a coisa está toda pensada porque os técnicos são honestos e eles projetam. Mas a gente tem uma classe política vagabunda, eles são extremamente vagabundos e criminosos com o dinheiro. Você deve ter visto no blog que eles estão todos pendurados por um fio. Todos amarrados com essas farras de congresso de vereadores.
VSP- Eu vi inclusive no seu blog que você fala mal de políticos de esquerda e as pessoas reclamam de você.
DS- A gente fala assim: “A direita é escrota”. Tudo bem, a direita é escrota e a esquerda é escabrosa. Elas acabam se juntando: está aí o governo Lula que não deixa a gente mentir. “Sarney ladrão”, hoje ele é sócio. O Zé Dirceu: “Não roubar, não deixar roubar”...e ele nacionaliza o escândalo paroquiano dos tucanos. O que o PT faz? Ele nacionaliza isso. E o PMDB se encolheu porque aquela era a hora de pegar o vagabundo. Isso em 2005.
VSP- Na sua opinião, por quê a classe política de Taboão é assim?
DS- A cidade é favorecida geograficamente pela localização. Então, algumas empresas até caem no colo da cidade por uma razão logística. O empresário não é bobo e nenhum deles são loucos de peitar o poder público. Tem a questão do fisco, da fiscalização. Depois sai no jornal os políticos falando: “Nós estamos atraindo investimentos pra cidade”. Mas isso é mentira porque isso não existe. Houve um período de um prefeito do final da década de 70 e início de 80 que favoreceu a instalação de empresas na cidade. Isso foi um ex-prefeito chamado Armando Andrade. Ele inclusive foi a única pessoa a dar uma fisionomia de cidade pra Taboão...ele criou um teatro, um zoológico, um campo de futebol.
VSP- Taboão teve um cinema de rua também.
DS- Teve o Cine Tupi. Hoje, tem o cinema no shopping.
VSP- Você foi nesse Cine Tupi?
DS- Nunca fui. Eu fui criado por família evangélica, você está me entendendo? Quando eu tinha treze anos eu falei que não ia mais pra igreja. Eu comecei a trabalhar com quatorze anos em firma. Até então, a minha vida era de casa pra igreja, de casa pra igreja.
VSP- Mas na época era bem menos evangélicos que hoje?
DS- Bem menos. Essa explosão de Igreja Universal, Deus é o Amor é bem depois.
VSP- Pentecostal...
DS- Pentecostalismo é depois. Depois, houve outra explosão das igrejas maleáveis, as igrejas malandras que são Edir Macedo, RR Soares. Eles na verdade não tem doutrina. Na verdade, eles querem pegar o desencantado com a igreja católica. A religião é uma necessidade espiritual ou cultural da pessoa, não é isso? O cara vai nisso porque ele precisa de algumas respostas. Eu sou anticlerical, não acredito em bosta nenhuma mas a gente reconhece porque o cara vai pra igreja. Sabido, esperto e malandro é o cara que capta esse momento como o Edir Macedo. Eles sabem que a pessoa não está tendo resposta na católica, então eles fazem um neopentecostalismo mais light. É a teologia da fortuna que o Edir Macedo pratica.
VSP- Tem agora uma de surfista, não sei se você conhece.
DS- Tem de surfista, de puta...a Monique Evans não vai numa igreja lá no Rio de Janeiro? Gretchen, Rita Cadillac, essas mulheres. Então, tem a igreja das putas. Daqui a pouco vai ter a igreja dos funkeiros (risos). Na verdade, isso daí é mesma coisa que aconteceu depois da Revolução Industrial. As igrejas pentecostais cresceram na Revolução Industrial. O cara vem do campo pra cidade e não tem respostas. Aquele Deus patriarcal, pastor de ovelha não existe. Por isso, ele vai procurar os tremedores que oram e entram num estado catatônico. Aquilo é uma carga de emoção muito forte e o cara extravasa naquele momento.
VSP- Sua família ficou muito chateada de você não ser evangélico?
DS- Enche o saco...mas eles vão fazer o que? Eu não queria ir, não tem jeito. Chega uma hora que você fala: “Eu não vou nessa porra mais. Eu não vou”. De toda a forma o embrião cai. O que a gente é hoje já vem lá de trás. Aposto que você não começou a gostar de Nelson Gonçalves com 20 e poucos anos de idade. Com oito anos e pouco você já tinha alguma melancolia, alguma coisa. Eu tinha esse negócio de ficar olhando e pensei: “O que aquele cara está falando?”, me questionei sobre aquilo.
VSP- Você começou a ler mais por causa da banca do seu tio?
DS- Eu já lia antes.
VSP- Como você começou a se interessar por essas coisas?
DS- Por gibi. Eu lia uns gibis da Ebal...Homem Aranha, Demolidor. A banca de jornal favoreceu bastante porque naquela época eles lançavam muitas coisas em coleções. Tinha uma coleção da obra completa de Jorge Amado. Eu lembro de ler Jubiabá, Mar Morto, Capitães de Areia. Em termos de literatura brasileira ele foi o primeiro.
VSP- Muita gente fala mal dele porque ele vendeu muito.
DS- Os caras tem umas frescuras com o Jorge. É o que eu sempre falo: o cara tem pegada? Ele tem domínio da palavra? Você se transporta pra aquela realidade? Tem cadência, ritmo, poesia? Eu gosto. Até porque existe uma questão de afinidade com o Jorge Amado porque o meu pai é conterrâneo dele. Ele é um cara culto não letrado. Ele sempre esteve na estrada mas tem sensibilidade, gosta do grande e bom cinema americano. Eu lia aquilo e lembrava de conversas que a gente ouvia.
VSP- O seu pai também era evangélico?
DS- Não, ele nunca foi. Mas era filho de evangélicos. Ele até por essa vida itinerante de caminhoneiro nunca foi.
VSP- O que mais você leu nessa época?
DS- Eu lia muita enciclopédia. Tinha muitos fascículos naquela época.
VSP- Você estudou até quando?
DS- Eu parei no colegial. Mas quando eu comecei a ler, a banca era uma verdadeira orgia. Eu conseguia ler de tudo um pouco. Como a casa era evangélica, o pessoal não vai te estimular a ler gibi, história de super herói. Uma vez eu achei um gibi na rua vindo da escola. Eu catei aquela porra, era do Demolidor...eu li e escondi. Na escola, a gente trocava os gibis. Lia livro de bolso, livro de bang-bang.
VSP- Sheron Scott?
DS- É...Um monte de tranquerada...mas a gente lia. Tinha as enciclopédias, as revistas de mulher pelada que você abre, lê e vê.
VSP- A Fairplay você chegou a pegar?
DS- Fairplay. Rapaz, a minha irmã uma vez me achou a porra da Fairplay dentro da minha mala. Eu fiquei puto com a minha irmã: “Que sacanagem”. Ela foi mostrar pra minha tia as mulheres com peitão. A minha tia ficou escandalizada, coitada.
VSP- Você tinha acesso a revistas suecas também?
DS- Não. Meu tio não vendia as revistas suecas...ele era crente né? Mas o pessoal procurava muito: “Não tem aquelas revistinhas de sacanagem?”.
VSP- Ele chegou a vender as revistas do Carlos Zéfiro?
DS- Não. Revista de sexo ele não vendia. Ele somente comercializava a Fairplay que era erótica somente.
VSP- Quais outras revistas você lia?
DS- Manchete. De revista masculina tinha a Ele Ela que tinha aquela seção Fórum que devia ter algum redator criativo que fazia aquele monte de carta. Mas não é querer ser precoce nem nada, mas eu gostava muito das revistas Realidade e do Pasquim. Essa minha mentalidade anárquica e jornalisteira vem muito do Pasquim.
VSP- Essas duas publicações foram importantes na sua formação?
DS- Sim. Esse apego, esse amor pela pesquisa jornalística e o apuro. Não que a gente tenha, mas a gente respeita e sabe desses grandes nomes.
VSP- Você descobriu o João Antônio pela Realidade?
DS- Não. Eu descobri o João Antônio em alguma crítica...eu lia muitos cadernos de cultura do Estado de São Paulo. Mas eu descobri por causa de livro e não por reportagem. Foi por causa do Malagueta, eu devo ter lido alguma coisa. Como eu não tinha grana pra comprar os livros, a resenha te ajuda a saber o que estava acontecendo por aí. Eu já gostava da literatura de ficção porque a banca propiciava isso. Tinham coleções dos clássicos da literatura mundial: Dostoievski, André Gide. Pela banca eu conseguia ter acesso a tudo isso. Naquele tempo, tinha uma coisa bem saborosa que eram os clássicos recontados pra uma linguagem juvenil. Gente como Carlos Heitor Cony, Rachel de Queiroz recontavam grandes livros numa linguagem mais acessível que te prepara pra ler o original. Eu me lembro quando eu peguei o Germinal do Zola, que tem um realismo. E a gente acaba gostando de tudo...pra mim tanto faz um escritor ser da linha realista, surrealista, realismo fantástico. A gente acaba gostando de tudo e isso é necessário. Do mesmo jeito que eu gosto daquela escrita esparramada do Eça de Queiroz, eu sou fanático por Dalton Trevisan que tem muita concisão.
VSP- Do João Cabral você gosta também.
DS- Poesia eu me sinto incapaz de penetrar muito. Como a poesia é a sublimação da língua, eu consumi pouco. Eu vivia mais para a literatura de romance. Eu fiquei mais no Drummond porque uma professora me deu um livro dele e como era o que tinha, a gente lê bastante.
VSP- Como você decidiu virar jornalista?
DS- Rapaz, eu não sei. Em redação de escola eu sempre ia bem. Aliás, eu nem sabia se tinha dificuldade ou não. Eu ia lá e escrevia, porque eu sempre gostei de escrever. Eu trabalhava numa empresa como auxiliar de escritório e nós fizemos um trabalho de escola. Eu fiz uma introdução, entendeu? E eu dei pro meu chefe ler. Ele se chama Fernando Paulo Conde. Ele me falou: “David faz jornalismo. Você escreve gostoso”. Eu fiquei meio em dúvida porque escrever pras pessoas era um negócio sério. Mas eu não levava isso muito a sério. Aconteceu lá no Taboão de eu estar nessa área política fui chamado pra colaborar em jornal a convite.
VSP- Antes de ser jornalista você teve muitas outras profissões?
DS- Não. Eu trabalhava em escritório.
VSP- Você começou em jornalismo quando?
DS- Isso foi em 76.
VSP- Você começou em qual veículo?
DS- Na época em Taboão da Serra, existiam alguns veículos...jornais de políticos, jornal do MDB. Eu fazia alguma coisa pra eles. Eu comecei nesse meio. Depois, quando eu tinha de dezoito pra dezenove anos eu fui militar na Convergência Socialista que tinha um jornal muito bom chamado Versus. Esse jornal tinha o Jorge Pinheiro, muita gente boa. Nesse veículo, eu comecei fazendo pesquisa.
VSP- Quando tempo você ficou nesse jornal da Convergência Socialista?
DS- Uns dois anos.
VSP- Você pensou em fazer faculdade de jornalismo?
DS- Não, eu nunca pensei nisso. Eu conversava com os colegas que estavam fazendo jornalismo e eles estavam desaprendendo. Eu nunca senti valor efetivo nisso porque o cara não vai te ensinar a ser repórter. A faculdade pode te lapidar alguma coisinha lá mas eu não conheço nenhum grande repórter brasileiro que tinha feito faculdade. A exceção é o João Antônio que vai fazer a Faculdade Cásper Líbero...mas ele já tinha feito Malagueta, Perus e Bacanaço.
VSP- Acho que o próprio Ruy Castro não fez.
DS- O Ruy não fez.
VSP- Acho que o Kotscho não fez...
DS- Não sei. Mas ele é um dos grandes nomes e que a gente respeita muito.
VSP- O Marcos Faerman não fez.
DS- Não sei...esse homem é uma sumidade porra. Sabe o que pra mim era faculdade de jornalismo? Era ler o Jornal da Tarde. Aquilo era uma aula de jornalismo, vale por um semestre todo. Eu me lembro rapaz de uma vez que o Jornal da Tarde fez uma reportagem chamada Expedição São Paulo, era uma reportagem de muito fôlego. Por intermédio do Pasquim tinham os jornalistas que eu gostava como Newton Carlos, Fausto Wolff. Você está me entendendo?
VSP- O Newton Carlos eu acho que parou. Ele estava na rádio Bandeirantes.
DS- Acho que sim. Ele está com a idade muito avançada. Mas ele era um dos paradigmas do jornalismo. Era o jeito de contar o Brasil que a gente vê. Naquela época, a gente tinha os jornais tradicionais como Estadão, Folha, Diário da Noite e tinha essa imprensa com sabor de coisa proibida.
VSP- Você teve muito contato com o NP?
DS- Tive, pra caralho. Eu gostava muito, li bastante o NP. Acho que eu li o NP até ele acabar quando veio essa excrescência (David refere-se ao jornal Agora São Paulo que substituiu o Notícias Populares). Não é nada isso né? Mil vezes ficasse o Diário Popular, que ficasse ali e não se transformasse no Diário de São Paulo.
VSP- Você acha que piorou muito depois que a publicação mudou de nome?
DS- O Diário Popular tinha essa cara de São Paulo, ele traduzia isso. O Diário atendia essa faixa que também lia o Notícias, mas era mais abrangente. O NP a gente percebia que era pra entreter, pra enfeitiçar o público. Nessa época, a gente já sabia das sacanagens do jornalismo, das histórias inventadas que hoje eu dou risada. Muita coisa eu me lembro de ler isso no O Cruzeiro no David Nasser. Em casa tinha muito a revista O Cruzeiro, revista Manchete. A Realidade veio bem depois. Com essas leituras críticas que saiam no Pasquim a gente pensava: “É uma mentirada do caralho”. Então, jornalista não está aqui somente pra falar a verdade. Isso é uma coisa muito entranhada na população. O Raul Seixas disse isso numa canção: “Eu não preciso ler jornais/mentir sozinho eu sou capaz”. Eu lia demais aquelas coisas do David Nasser, achava aquelas grandes reportagens dele demais. Mas depois porra percebi que era inventado, não existia.
VSP- Quais outros veículos você passou no seu começo do jornalismo?
DS- Tirando essa parte da esquerda...eu passei pelo Versus e pelo jornal da Convergência Socialista. Depois, eu voltei a trabalhar em firma e fiquei nisso um monte de tempo. Em 1982, eu voltei ao jornalismo no Taboão porque tinha A Gazeta do Taboão mas não acontecia nada. Eu já estava velho e em 89 tinha um jornal chamado Metrópole que fazia oposição ao prefeito. Depois, os caras acabaram vendendo o veículo pra quem eles metiam o cacete. Os donos me falaram: “Você não quer trabalhar no Metrópole?”. Eu trabalhava como assessor de um vereador em Taboão. O cara pegou e me falou: “Eu comprei um jornal e não tenho quem faça”. Isso já em 1988. Na profissão de jornalista, eu não tive essa precocidade, mas eu fazia as minhas coisas. Mas quando chegou em 89, esse cara comprou esse jornal e pediu pra eu tocar a publicação. Eu já comecei como diretor de redação. Do final dos anos 80 pra cá, eu já montei um monte de jornal em na minha cidade e todos faliram. Jornal de bairro é assim: ou você está do lado da situação ou você quebra. Se eles perceberem que você não quebra sozinho, eles dão um jeito de quebrar. Eu tive um jornal chamado Movimento. Ele tinha esse nome em homenagem ao extinto jornal O Movimento, que tinha o Raimundo Rodrigues Pereira, a redação ficava em Pinheiros. Como esse jornal terminou, a gente colocou esse nome em homenagem. Como o presidente da Câmara da época ia nos comerciantes da cidade: “Você tá dando anúncio pro David? Você está alimentando cobra. O prefeito não gosta”. Aí o contato publicitário voltava de tarde pro jornal chorando praticamente: “Poxa, fulano ia fazer um contrato comigo de não sei quantos meses e ele falou pra esperar um pouco”. Esperar um pouco é nunca, não é isso? Porque eles jogam pesado em você. Isso já foi no meu terceiro jornal.
VSP- O seu primeiro veículo em Taboão foi o Metrópole?
DS- Isso.
VSP- Durou quanto tempo esse jornal?
DS- Rapaz, esse jornal passou pela mão de um monte de gente. Antes de eu ir pro Metrópole quem tava lá era o Daniel Castro. Antes dele, haviam outros caras que depois mudaram. Os caras que montaram o jornal já eram organizados com o PT, mas não era um veículo do partido. Eles mexeram com a coisa...mas eram cagão. Eles mexeram com os políticos, levaram um tapa e saíram correndo. Eu graças a Deus não é por coragem nenhuma...eu faço a linha do Voltaire. Não por coragem física, mas por coragem cívica eu não tenho medo de bosta nenhuma. “Os caras vão te pegar de pau”, vão pegar porra nenhuma porque eu vou escrever e publicar isso. Pegava uns negócios de polícia e eu fazia. E também porque eu não era moleque, você está me entendendo? Eu era macaco velho.
VSP- E você devia conhecer a cidade melhor?
DS- Já conhecia. Com jornal de bairro, você tem que conhecer os três mapas da cidade: o mapa geográfico, o mapa político e o mapa do submundo. São as três plantas que você tem que ter da cidade. Senão, você vai ser mais um. Você vai fazer aquele jornalzinho que vai dizer que o prefeito inaugurou uma escolinha e vai ficar por aí. E quando você colocar uma matéria policial, você vai colocar o que está no boletim de ocorrência e já era. Afinal, você se aprofundar demais em determinadas coisas é assinar a sua sentença.
VSP- Como era a linha do Metrópole?
DS- A linha dele era mais a política local. Esse Metrópole teve um papel importante na cidade nessa briga contra os congressos de vereadores. Isso se tornou um norte do jornal. A gente cobria muito polícia. O Metrópole se notabilizou e foi procurado na banca por conta da cobertura policial.
VSP- A violência sempre foi forte em Taboão?
DS- Razoável. Quando não tinha, a gente arrumava um jeito e esquentava um assunto. O pessoal falava assim: “Essa semana tá uma merda: não morreu ninguém, não teve um grande assalto”. Tinham policiais que eram nossas fontes. Ele chegava e falava: “A gente prendeu um frango. Me espera em tal lugar, tal hora”. Todo dia a polícia tem um cara pra prender, todo dia a polícia chega e fala assim: “Esse crime está concluído”. Se você está legal com os policiais, você sempre vai ter boas matérias.
VSP- Você tinha boas fontes na polícia?
DS- Sim. Tinha as fontes que a gente mantinha quase sempre engavetada e eu procurei ser muito direto com os delegados. O delegado da 1º Seccional da Taboão era o doutor André Cassiano Pirozi. Esse homem facilitava muito o trabalho da gente. Depois, veio o doutor Jaques. Eu não digo que eu gosto da polícia e não posso falar que ninguém presta. Mas esse doutor Jaques é uma pessoa que eu poderia falar que eu acho que presta. Até porque ele é dostoieviskiano. Eu comparava ele ao delegado Porfiri, personagem que prende o Raskolnikov no Crime e Castigo. A gente tinha esse trânsito com a polícia. Meu pensamento era o seguinte: “Pra bater firme na política e ter respaldo da população tem que ter apoio na polícia”. Tanto que eu tenho certeza que por conta dessa popularidade eu acabei não sofrendo problemas físicos com relação aos políticos. Os primeiros caras do Metrópole andaram assustados com isso porque ás vezes eles levavam uns tapas ou recebiam uns telefonemas e se cagavam de medo. Tanto que aconteceu um episódio de um prefeito que eu nem vou citar porque ele não existe. Ele ocupou o cargo, mas ele é merda. Não é o cargo que ele ocupou que vai convertê-lo em ser humano. O pessoal até brincava com ele: “Não deixa o David escorregar na rua porque a gente sabe que você que mandou empurrar ele”. Então, eu sempre andei...se eu usar o adjetivo folgado, não é folgado. Eu falei: “Que se foda”, vou publicar, entendeu? Vou falar que o prefeito está fazendo alguma coisa errada, que existe indícios de corrupção.
VSP- Então, pelo que você está me falando esse teu ingresso no jornalismo se deu meio que por acaso.
DS- Ela veio por causa dos contatos políticos. Quando eu parei de militar na Convergência Socialista, quando eles falavam de construir o PT, se fortalecer dentro do partido para depois ter vida própria. Eu graças a Deus nunca me iludi com o PT (rindo). Eu conhecia uns cabras bons do PC do B, sabe? Militante antigo, nego velho e esperto. Caras forjados na luta, na resistência a ditadura. Eles iam dando os toques e a gente ia vendo. O fato do Lula ser cria política do Paulo Vital, que era o interventor do sindicato em São Bernardo. Nisso, eu fiquei com o pessoal do MDB, PMDB...e passei depois a trabalhar na área pública. O engraçado desse convite que veio pra eu dirigir o jornal não veio dos caras que eram da linha política que eu trabalhava. Quando esse prefeito compra o jornal, ele fala pra mim: “Toca a publicação pra mim”. Por isso eu te falo: você tem que ter um perfil, uma qualidade no seu trabalho. E é trabalho meu chapa, você está me entendendo? Foda- se o patrão é situação ou oposição. Antes da gente assumir o jornal, a publicação batia muito no prefeito. A gente não queria isso, queria fazer um jornal de bairro, levantar os problemas da população local. Fizemos meio que um pacto com eles. Tudo isso foi no Metrópole.
VSP- Quanto tempo você ficou nesse jornal?
DS- Foi um ano e pouco...dois anos. Depois a gente montou o jornal Movimento.
VSP- O que você queria de diferente no Movimento que não tinha no Metrópole?
DS- Era uma diferença de propriedade. O Metrópole pertencia a esse político e o Movimento era meu e de um outro parceiro, um grande filho da puta. Ele acabou vendendo uma pauta que era a menina dos olhos da gente, que era sobre a questão dos congressos de vereadores. A gente ficava sabendo sobre esses congressos quando eles já tinham ido. Como a gente iria em Fortaleza? Em João Pessoa? Eles só iam em lugares turísticos. Teve uma vez que eles foram estância hidromineral perto de São Paulo. Acho que era Águas de São Pedro ou Águas de Lindóia. Nisso, eu corri num comerciante lá e falei: “Patrocina a gente. Eu vou mandar um fotógrafo e um repórter”. O repórter era o Alisson, eu cheguei nele e falei: “Alisson, você vai lá e cola nesses vereadores”. Eu voltei com a grana do comerciante, a gente tinha conseguido vender a pauta pro cara. Pra você ter uma ideia Matheus, em dinheiro de hoje eram uns cinco mil reais.
VSP- Caralho...
DS- Eu falei: “Os meninos tem que ir lá e nem beber água com os vereadores. Eles tem que ter vida própria e ficar de boa pra poder trabalhar”. Mas esse meu sócio pegou e falou: “Eu vou junto”. Questionei ele...
VSP- Mas você tinha confiança no repórter?
DS- Sim, eu confiava nele. Eu sabia que esse cara que era meu sócio no Movimento tinha sido um dos fundadores do Metrópole. Ele falou: “Eu vou. Eu vou”. Tentei argumentar: “Nós estamos com a edição quente. Nós vamos pegar os vereadores cagando”. Nunca tínhamos conseguido isso. Eu orientei o repórter a não aparecer pros vereadores. Esse Alisson não era de ir na Câmara, não era conhecido ali. Então, ele ia meio transitar de boa entre aqueles vereadores...não poderia ir eu, porque eu era bem conhecido entre eles. Eu falei: “Rogério, os caras vão te ver lá caralho”. O nome dele era Rogério, acabei falando o nome do filho da puta: Rogério Dipoudid. Aí ele usou um estratagema, alguma desculpa que eu não me lembro porque a memória da gente é seletiva. Aí eles foram embora, o congresso ia terminar numa quinta-feira á noite. Chega na sexta-feira, eu estou com a capa e a página da matéria esperando a matéria. Nove horas da manhã nada...meio-dia nada. Pensei: “Cadê os caras? Eles chegaram de madrugada”. Depois de um tempo aparece o fotógrafo. “Rapaz, me dá uns filmes aqui, vamos lá buscar o Alisson”. Aí ele me responde: “Os filmes ficaram com o Rogério”. “Mas você é o fotógrafo”...ele respondeu: “Sou fotógrafo mas ele é o dono do jornal. Ele me falou que era pra eu dar os filmes que ele levava pro David”. Rapaz, pra fechar a história: eu chego na casa do filho da puta e pergunto: “Bicho, o que aconteceu?”. “Pô, eu tomei umas cachaças ontem e estou com uma dor de cabeça”. Eu perguntei: “E os filmes?”, ele me respondeu: “Esqueci dentro do carro do vereador”. Mas o que ele foi fazer dentro do carro do vereador? Ele era desgraçado e então ele vendeu, vendeu a pauta. Aí acabou o jornal...
VSP- Nesse momento mesmo você quis acabar com o jornal?
DS- Nesse dia mesmo. Não tinha condições de continuar com a publicação. Eu ainda soltei uma última edição com um fiapo de coisas, o fotógrafo tinha uma panorâmica. Mas eu orientei o Alisson pra ele fazer uma espécie de diário de bordo do congresso de vereadores. Exemplo: ele colocava oito horas da manhã, vereador fulano está numa casa de perfumes...o outro está almoçando em tal lugar. Nós pegamos todos. Queríamos fotos...mas o cara vendeu as fotos.
VSP- A maneira como a matéria foi concebida foi perfeita.
DS- Ela saiu. Mas nós queríamos fotos. Eles estavam flanando, gastando dinheiro do povo com compras. Eles iam nesses lugares pra fazer compras.
VSP- Com dinheiro público?
DS- Lógico. Cada um desses condenados vão ter que devolver algo em torno de 500 mil reais cada um.
VSP- E pra um município que precisa desse dinheiro.
DS- Isso é o que o promotor fala. É uma cidade carente de infra-estrutura, precisando de uma série de recursos públicos e a classe política fazendo congresso. Esses caras foram pra Havana...fazer o que em Havana? Eles foram pra Buenos Aires, fazer o que lá? Bom, mas a matéria saiu. O título foi: “O diário da farra”. Deu uma repercussão na cidade e a gente tem o prazer jornalístico desse material ter sido anexado e fazer parte dos autos. Eu não entro muito nisso de empresa cidadã porque a política é sacanagem e sempre vai ser sacanagem. Eleição não endireita porra nenhuma, não endireita nada. Eu não tenho a menor confiança em voto, isso não existe. Stanislaw Ponte Preta já falava: “Televisão é máquina de fazer doido”. E a urna eletrônica é a máquina de fazer trouxa...você vai ali vota e acredita. Se você não se mantiver mobilizado, cobrando o cara nada acontece. Então, não é o voto que resolve. Pra mim, o cara pode até não ser eleito. Apesar de eu ser anarquista, anárquico ou sei lá o que, eu quero o serviço público funcionando. Você está me entendendo? Eu sou boêmio e preciso do ônibus cinco da manhã no ponto. Não importa a anarquia da minha forma de pensar ou estudar. Eu mesmo pra fazer um texto de putaria preciso de energia elétrica. Ou então o cara vai falar: “O rapaz da Eletropaulo está trepando com a mulher ali” (risos). Não...entendeu? Mesmo uma bagunça precisa de ordem, senão não é sociedade humana.
VSP- Qual era a tiragem do Movimento?
DS- Jornal sempre tira pouquinho. Coisa de cinco mil exemplares por edição.
VSP- Vendia ou distribuía?
DS- Distribuía.
VSP- Era semanal?
DS- Semanal. Essa edição a gente tirou um pouco mais...deve ter chegado a uns oito mil exemplares. Depois esse filho da puta desse sócio falou pra mim: “A gente pode dar um repeteco, rodar mais”. Eu falei: “Rapaz, eu vou te bater. Você é digno de levar uma facada porque você vendeu as fotos”. Ele se defendeu, chorou: “Eu não vendi, eu esqueci o meu paletó dentro do carro do cara”. Eu falei: “Porra, não era pra você estar dentro do carro do cara mano”. Então, eu larguei aquela bosta pra lá e o que eu vou fazer?
VSP- Isso em que ano?
DS- 94.
VSP- Você trabalhou na Gazeta do Taboão também?
DS- Na Gazeta foi o seguinte: não era propriamente trabalhar. Eu trabalhava pra um grupo de políticos que era ligado a situação mas a Gazeta era de propriedade desse grupo. Não era coisa de diletantismo, eu gostava de fazer entendeu? Era até engraçado porque eu não precisava daquele dinheiro. A mulher do financeiro me falava: “Eu tenho que te pagar”, eu falei: “Não. Você não vai me pagar porque se você pagar, você vai ter o direito de encomendar, vetar os textos”. Era uma coluna que eu e o Anderson Siqueira fazíamos. O Anderson é um excelente desenhista e era diagramador e ilustrador do jornal. A coluna se chamava De Olho na Câmara. Mas eu gostava daquilo, alguém tinha que encher o saco da Câmara de Vereadores. O político agüenta porrada, denúncia e até cadeia, mas a ironia dói nele, dói muito. Se você faz um jornalismo a lá Aparício Torrelly. Você pode ver: os jornais mais perseguidos em termos de imprensa alternativa são os que caem pro lado do escracho, do humor. O político fala: “Não...você está me ridicularizando”. Então, o político não agüenta o escracho e esses bravos desses jornalistas que a gente fala sempre foram escachados.
VSP- David quanto tempo durou o seu jornal?
DS- O Movimento durou dois anos e meio, quase três.
VSP- Você chegou a receber alguma ameaça por alguma matéria?
DS- Os caras falavam assim: “Você é louco”...
VSP- Mas você nunca recebeu ligações com ameaça?
DS- Uma vez foi uma mina lá, uma bandida. Chegou no jornal uma baita gostosa e falou pra mim: “Você vai engolir o que você escreveu”. Eu falei: “Tá. Vou engolir por quê?”. “Você pôs o nome do meu irmão...”, “Eu não coloquei porra nenhuma. A coisa já está enrolada pro seu lado”. Aquela facilidade...se você vai mexer na merda de reportagem policial, você tem que ter o fraquejo. Mas também tem o seguinte: tinha os manos que davam...você não pode mexer em reportagem policial de besta. Se você trabalha no Diário, na Folha você faz a matéria e vai embora. Agora, se você mora na cidade é diferente. Você tem que ter alguma pessoa que chega nos caras e fala: “Ele é nosso truta maluco. Eu vou trocar uma ideia com ele”. Muitos chegavam em mim e falava: “Porra, você fudeu fulano”. Eu respondia: “Mano é o meu trampo, é o meu dinheiro. O que eu vou fazer? Não fui eu que prendi o cara, o nome dele no boletim de ocorrência. Não fui eu que coloquei ali”. Tive alguns problemas sérios também. Uma vez teve um congresso de vereadores em Brasília. Estava faltando um dia pros vereadores de Taboão irem pra lá. Por uma ironia do destino, naquela mesma semana acho que a encomenda dos desmanches estava grande em Brasília. Foi um negócio bobo que a gente fez...o título da matéria era: “Ladrões de Taboão da Serra preferem Brasília”. O olho era: “Oito veículos foram furtados em Brasília nos últimos dias”. Lá embaixo estava a legenda com a foto: “Vereadores partem amanhã para congresso na capital federal”. Ficou legal aquele negócio, o duplo sentido da coisa. Os vereadores não chiaram porque são vagabundos, são ladrões do dinheiro público e foram pra Brasília. No dia seguinte quando eu fui na delegacia, o delegado me falou: “Você não vai mais olhar boletim de ocorrência aqui”. A Seccional tinha dado uma comida de rabo nele porque a cidade tinha virado motivo de chacota. Nisso, os caras me deram um esporro Matheus, me esculhambaram e falaram que eu não iria colocar mais os pés dentro da delegacia. Então, ás vezes tinha problema com polícia...eu tive problema com esse delegado. Mas ameaça física perigosa eu nunca tive.
VSP- Você teve outros jornais?
DS- Vixi...(risos). Eu fiz um jornal pra futebol de várzea e depois quebrou, depois fiz um outro.
VSP- Como se chamava esse de futebol de várzea?
DS- Folha Esportiva. Só coisa da várzea da região e depois fiz O Esporte. O principal patrocinador desse segundo jornal foi uma imobiliária chamada Ouro Verde. Esse jornal durou uns três anos também. Mas ao mesmo eu tempo, eu acabei trabalhando na prefeitura.
VSP- Você assessorou algum vereador?
DS- Não, eu assessorei o prefeito. Tirando esse que está no segundo mandato, eu trabalhei com o Fernando Fernandes. Na verdade, eram várias pessoas lá porque a máquina da prefeitura de Taboão também é inchada. Eu fiquei ali oito anos. Mas isso foi questão de salário, questão de salário. Mas fica a frustração do negócio de jornal porque eu vou falar: “Meu Deus do céu, eu vou fazer o quê?”. Aí vem essa parte eletrônica (David refere-se ao blog), que pelo menos você não perde os textos.
VSP- Depois desse jornal sobre o futebol de várzea, você teve outros jornais?
DS- Não.
VSP- Você perdeu muito dinheiro com jornalismo?
DS- Perder dinheiro não. Você deixa de ganhar.
VSP- Por que esse veículo de várzea não deu certo?
DS- Esse jornal acabou por uma desinteligência do meu sócio. A maior merda é você ser sócio de pessoas na mesma condição que você. Quando se faz uma sociedade, o certo é um entrar com o capital e o outro com a mão-de-obra. Mas se fica dois fudidos ali, daqui a pouco um enche o saco do outro: “Vai pra puta que pariu. Eu não estou ganhando nada aqui e você ainda me enchendo o saco”. Você está me entendendo? O que mais mata na minha questão é a área comercial. Eu nunca dei sorte com esse setor. Eu sempre chegava neles e falava: “Gente, para de vender anúncio pra vereador. Para de ir em solenidade e falar pra prefeito comprar uma página pra paixão de Cristo”. A gente não queria isso daí...Eu falava: “Se fosse pra trabalhar pra político, pode deixar que eu sei ir lá”. E pra mim tanto faz o partido, é só o cara não ser nazista. Pra mim tanto faz ser socialista, malufista. Eu vou...eu quero é o meu dinheiro. Aliás, quanto pior for o cara melhor porque eu posso cobrar. Eu gostaria que o Maluf me chamasse, Antonio Carlos Magalhães. Eu vou trabalhar pra Eduardo Suplicy? (risos). O cara vai me pagar me falando: “Meu companheiro”, eu vou chegar nele: “Eu não sou seu companheiro. Eu não comungo das mesmas ideias que você”. Essa frustração com jornal porque o João Antônio está certo. Ele teve aquela experiência de Londrina (David refere-se a participação o escritor e jornalista João Antônio no jornal Panorama de Londrina, Paraná. O veículo contou com grandes nomes da imprensa brasileira mas acabou não vingando). Ele escreveu uma paródia do Humilhados e Ofendidos do Dostoievisky e é verdade. No jornalismo de bairro tem os comprados e os vendidos, entendeu? É uma desgraça. Por isso, esses jornais não têm credibilidade, viram um grande balcão de anúncio. Existe uma força fictícia. Os políticos chegam e falam: “A força do jornalismo comunitário”, isso não existe.
VSP- Você acha que a Internet fez as publicações regionais perderem força?
DS- Não. Eles perderam leitores porque são ruins mesmo. Esses veículos são mal intencionados.
VSP- Não tem credibilidade?
DS- Nenhuma. Os jornais são montados pra faturar um anúncio e aí o redator mete um calhazinho, um release. Taboão da Serra é uma cidadezinha medíocre em extensão territorial, mas tem grandes valores humanos. A gente tem uma classe artística lá muito boa. É tão boa e tão grande que dá até pra dividir, tem uma parte que está dando certo e está na prefeitura. Tem outra parte que não está na prefeitura e também está dando certo. Tem esse grupo de teatro Clariô que é uma sumidade. Eu queria fazer um jornal com cultura, com um bom conteúdo. Mas você precisa de gente pra vender, eu nunca dei sorte de pegar um cara que saísse de manhã e não se dirigisse a Câmara de Vereadores. Eles pensam: “Tem 13 malandros aqui. Eu vou morder pelo menos dois”, isso é uma desgraça. Ou ele vai na assessoria de imprensa da prefeitura pegar um anúncio. É uma tristeza.
VSP- Qual é a maior dificuldade do jornalismo regional?
DS- Recursos. Ou você faz um jornal mais dinâmico, com conteúdo. Mas aí tem outro problema porque você vai acabar trabalhando igual a um cavalo. De manhã tem o encontro com os professores, depois tem a campanha de vacinação com os cachorros, nisso você passa na delegacia. Você está me entendendo? Depois chega na sexta-feira e você tem que fechar o jornal. Nisso, você pega o bicho na gráfica e tem que distribuir o jornal. Você chega no sábado completamente escangalhado, todo fudido e o cara pega o jornal porque é de graça. Ele dá uma olhadinha e vai embora. De qualquer maneira, a publicação não vai ter uma repercussão séria. Eu cheguei a colaborar com um colega e a ganhar algum dinheiro. Esse jornal se chamava Hoje Taboão, fiquei lá um ano e pouco. Nesse meio tempo, eu fiz jornal de campanha política.
VSP- Mas isso você fez pra todos os políticos?
DS- Eu nunca fiz nada pro PT. Engraçado isso.
VSP- Você foi filiado ao PT?
DS- Não. Eu fiz parte da Convergência Socialista, depois eles se integraram no PT e eu caí fora.
VSP- A Convergência Socialista era uma organização de esquerda?
DS- Era um partido. Era o que é o PSTU hoje, entende? Os caras queriam legalizar o partido. Eu falei: “É pra brigar com a ditadura? É pra ganhar as eleições?”. Nisso, cada um vai tirando as suas próprias conclusões. Eu não acredito no voto e acabei saindo da organização.
VSP- Você não acredita no voto?
DS- Não. Qualquer idiota vai lá e tira o título de eleitor. O voto é uma coisa comprável.
VSP- Você já viu alguém comprando voto na sua cidade?
DS- Rapaz...se você faz a parte de imprensa de um grupo político, você vê isso. Você vê a troca de cargo, a barganha, a compra de voto, o favorecimento.
VSP- Você é um cara que militou em movimento de esquerda. Ver isso dói um pouco?
DS- É isso que rompeu a última membrana sensível do saco. Não...eu nunca depositei uma confiança muito forte numa eleição. No governo Fernando Henrique aconteceu a mesma coisa: compra de voto. Teve compra de voto pra ter o segundo mandato. Eu pensei antes: “Porra, os caras são éticos. Eles combateram a ditadura”. Fizeram acordo com PMDB na época. Os mesmos caras que estavam com o Fernando Henrique são os mesmos que estão com o Lula. E vão ser os mesmos que vão estar com o Diabo se ele ganhar a próxima eleição. Se precisar, eles vão estar com Jesus Cristo também. Entendeu? Não tem seriedade nenhuma.
VSP- Você vota nulo?
DS- Eu nem vou lá. O título eleitor serve pra quê? Pra se um dia eu ganhar na loteria, eu pegar o prêmio. Pra manter o passaporte em dia. Pra isso. Eu acho que você tem que se cadastrar pra não ter um número fictício de eleitores. Mas o voto tem que ser facultativo.
VSP- Você também trabalhou no jornal dos funcionários da prefeitura de Taboão?
DS- Trabalhei sim.
VSP- Nisso, você conseguiu entrevistar algumas figuras interessantes como o Belchior.
DS- Isso mesmo. No jornal dos funcionários a gente não tinha que correr atrás de dinheiro. Então, a gente conseguia fazer esse tipo de pauta que seria o ideal de fazer em jornais regionais. Tanto entrevistar o Belchior como o meu amigo Geraldo Magela de Taboão da Serra que faz um trabalho magnífico de pesquisa. Ele é um cara muito sério e eu gosto muito dele porque ele nasceu na mesma cidade do João Bosco. Você tem que fazer isso, senão não é jornalismo regional. Pra fazer porcaria é melhor nem fazer. A salvação da lavoura é o blog. Em breve, eu quero entrevistar muita gente, abrir espaço mesmo.
VSP- Quais outras figuras que você entrevistou?
DS- Foram o Belchior, Paulo Vanzolini e o Adelino Moreira.
VSP- Como surgiu a ideia de você entrevistar o Adelino?
DS - O Adelino foi o seguinte: eu pensei que ele estava morto. Eu sempre gostei das músicas dele e do Nelson Gonçalves. Um dia de madrugada ouvindo a Rádio Globo, eu ouvi o radialista falando com ele. Pensei: “O cara deve estar brincando”. Nisso, eu liguei pro meu amigo Aloísio e falei: “Aloísio, o Adelino Moreira está vivo e nós vamos entrevistar ele pro jornal de funcionários”. Por intermédio de um médico da prefeitura que o sogro era boêmio no Rio, a gente conseguiu o telefone e o endereço do Adelino. Ligamos e ele mesmo que atendeu. Falamos que era pro jornal de funcionários da prefeitura e ele falou: “Meu filho, não tem problema. Que dia você quer vir?”. Ele já estava no ostracismo. Nisso, a gente foi lá e fizemos a primeira matéria com ele que saiu no jornal dos funcionários e também saiu num jornal chamado O Cidadão. Esse jornal era do Nilson, uma grande figura de Taboão da Serra que infelizmente já faleceu.
VSP- Como foi o relacionamento de vocês com o Adelino?
DS- Com o Adelino foi muito tranquilo.
VSP - Que histórias ele contou? Você falou que ele até chorou falando do Nelson...
DS- Muito. Nós combinamos e ele falou: “Vocês venham num sábado”. Chegamos lá, ele tinha preparado um banquete pra gente. Nós falamos pra ele: “Adelino, nós viemos aqui agradecer o senhor pelas maravilhas que você compôs”. Ele falou: “Não, vocês vão ficar pra almoçar”. A nossa ideia era fazer a entrevista e depois sair, pra ele poder almoçar. “Não, eu mandei fazer coisas pra vocês”. O homem mandou fazer lá uma carne assada com batata, arroz e salada, cerveja. Ele falou: “Eu sei que vocês gostam de beber. Não bebam muito, não bebam muito. O Nelson bebia, bebia todas”. Ele ficava puto e ia falando: “Eu brigava com ele”. Foi uma pena que eu acabei perdendo alguma coisa dessa entrevista.
VSP- Você perguntou pra ele se ele ainda fazia músicas nessa época?
DS- Eu perguntei. Ele me falou: “Eu estava compondo a hora que você chegou”. Aí ele cantou um samba que falava como a cachaça virou patrimônio cultural, patrimônio do Brasil. Ele falava: “Eu vou gravar..vou dar pra alguém gravar. Mas quem vai gravar?”.
VSP- Ele chorava quando falava do Nelson?
DS- Muito, chorava, chorava. Aliás, não precisa nem dizer que ele é uma usina de sentimentos. Ele chorava muitas vezes contando histórias sobre determinada composição. Quando ele cantou Argumento...Por que eu perguntei pra ele: “Qual música que o senhor mais gostou?”. Ele ficou e veio a dona Arzina, a esposa dele. Ela falou: “Eu gosto de Escultura”. Perguntei pra ela: “Mas a senhora não ficou com ciúmes?”, “Não, eu sei que tudo aquilo era de brincadeira”. Ele me falou que gostava da música Argumento. Nisso, num trecho ele começava a cantar e depois chorava. Mas ele chorou muito contando pra nós do primeiro encontro dele com o Nelson. Ele falou pra gente que ele já compunha e saia de Campo Grande pro centro do Rio, o Café Nice, o centro boêmio. Ele já tinha feito uma música e outra. Numa noite, ele estava deitado no chão numa esteira com a dona Arzina ouvindo rádio. Ela acorda e fala: “Adelino, olha que voz bonita tem esse moço”. O Nelson estava cantando Nem Coberta de Ouro. Ele respondeu pra esposa: “Bonita mesmo a voz desse moço”. Ele tinha uma fábrica de colares, bijuterias. Ele trabalhava durante o dia e cinco horas da tarde ia pra boêmia. No trem com ele ia um fotógrafo chamado Sebastião Santana. Nisso, o cara chegou nele e falou: “Você devia uma composição sua pro Nelson”. A música era A Última Seresta. Mas como ele ia chegar no Nelson? O Nelson já era muito famoso. Esse fotógrafo conhecia muito a esposa do Nelson na época, a Lourdinha Bittencourt. Ele falou: “Eu vou te apresentar a mulher do Nelson”. Um dia a moça atendeu o Nelson numa rádio e ela quis saber a música. O Adelino cantou e ela gostou. Eles marcaram um dia e ele foi dar a composição diretamente pro Nelson. Eu lembro que ele chorou muito contando: “Aquele era o meu dia. Aquela era a minha estrela, o dia que Deus guarda pra cada um dos seus filhos”. Ele disse que estava subindo a escada e o Nelson descendo: “O senhor que é o Nelson?”, “Sou sim, por quê?”. Ele falou: “Eu sou Adelino, compositor”, “Sobe lá no bar, senta e me espera”. O Adelino contou que ele estava com um terno discreto e passou todo mundo por ele: Sílvio Caldas, Francisco Alves, Dalva de Oliveira, todo mundo. De repente, depois de muito tempo chegou o Nelson. Ele falou pra mim: “Eu não pensei em nada meu filho. Fiquei ali olhando”. Nisso, o Nelson chegou e falou: “Canta a música?”, “Aqui? Na frente de todo mundo”. “Quer cantar onde? No Scala de Milão?”, aí ele cantou e o Nelson sentiu demais a música. Eu brincava com o Adelino: “Poxa seu Adelino, você já começou se despedindo com o Última Seresta”. Aí o Nelson gostou da música, gravou e começou a carreira dele.
VSP- O Adelino teve durante muito tempo a fama de ser o pai da jabá. Voê chegou a perguntar isso pra ele?
DS- Sim. Eu provoquei ele: “O senhor pagava pros caras tocarem a sua música”, “Eu nunca paguei”, ele negava. “O senhor é o pai do jabaculê”. “Eu nunca. Eu ajudava, o rapaz estava com uma conta de luz. Precisando de um dinheirinho extra” (risos). Português filho da puta...
VSP- Ele era português mesmo? Tinha sotaque tudo?
DS- Ele era português. Mas não tinha sotaque, parecia carioca. Mas assim: a medida que envelhece, acaba puxando um pouco mais.
VSP- Curiosidade: ele era vascaíno?
DS- A gente não conversou de futebol. Ele era muito putanheiro, a gente conversou muito sobre mulher. Ele contava: “Eu comi a Angela Maria em pé atrás da geladeira dela. Comi, fudi” (gargalhadas). O filho dele ficava fodido...eu quero que se ele se foda. Ele falava: “Precisa tomar cuidado com isso. Nem tudo que o meu pai fala se escreve”. O que era legal era assim: ele começava a falar e a dona Arzina: “Adelino...”. Ele contava muito das cachaçadas do Nelson: “O Nelson bebia tudo. Ele bebia mesmo”. Quando a esposa ia pra cozinha ele falava: “Fulano de tal se matou porque queria comer a Elizeth Cardoso”. Ele contava cada uma...que o Ary Barroso era doido pra comer a Maysa. Mas a Maysa falou pra ele que até pro lixeiro ela dava, mas que pra ele não...nisso o Ary ficava louco e mastigava um cigarro. E não deu mesmo. Sei lá bicho...a gente ia perguntando: “Seu Adelino e A Flor do Meu Bairro?”, mas eram histórias legais. Por exemplo: A Flor do Meu Bairro...quando eu era moleque e curtia os bolachões do meu pai, eu adorava essa música: “A minha história é vulgar/ Mas algo fica provado”. A história, a trama. Lá no Taboão tem um pernambucano meu amigo, Seu Vitório que toda vez que a gente se encontra tem que cantar essa música. Pode ser a cerveja do domingo ao meio-dia. O Adelino me disse que ele fez essa música por causa de um cara que contou um causo pra ele num boteco. Um cara com dor de corno contou pra ele um rolo de uma namoradinha. A Flor do Meu Bairro era uma pretinha, morava no Cosmo e chamava Ondina. Ele contou que esse rapaz tinha acontecido um problema entre ele e a namorada. Depois, muita coisa ele acabou inventando e surgiu a música.
VSP- É verdade que ele tinha ódio dos jornalistas?
DS- Ele tinha ódio de todos jornalistas. Eu perguntei: “O senhor fez Enigma pra quem?”, “Contra os jornalistas que ficam dizendo que a minha música e de baixa qualidade. Eu sou um escravo da leitura. Procuro fazer coisas com qualidade pro povo, faço músicas simples de tocar porque eu sou compositor. Eu faço música pra vender não faço de brincadeira”. Ele fazia as coisas em determinados acordes pro cara do boteco da esquina possa tocar e não ter dificuldade. Você percebe Matheus que é uma tonalidade média que dá no vozeirão do Nelson mas qualquer pessoa pega.
VSP- Com letra fácil.
DS- Letra fácil. Não tem rimas rebuscadas. Mas tem um cuidado, um apuro. Eu não admito que a pessoa fale que a música do Nelson não tem um valor. Como o Adelino ficou puto com a imprensa, ele fez Enigma: “Quis conter me mas não pude/ Revoltado com a atitude dessa gente original/ Que julga ser incomum/ Tira todos por um e pregam sem ter moral”. Nisso, ele inventou que era uma letra pra separar a mulher? Ele tirou a raiva dos jornalistas e veio colocar um caso de amor.
VSP- Ele devia ser uma baita figuraça.
DS- Figuraça.
VSP- Eu acho ele entre os grandes compositores da MPB a altura do Ataulfo, todos esses caras. Ele é um autor mesmo como o Lupicínio. São pessoas que todas as músicas revelam uma grande vivência.
DS- E ele sofreu muito com a questão do Nelson. Nisso, você percebe um sofrimento físico também. O Adelino quase foi preso por causa do Nelson. O Nelson ficava muito na casa do Adelino, muitas vezes até confinado porque ele não queria que o Nelson caísse pra noite. O Adelino, na verdade, era meio que o produtor, o empresário do Nelson. Ele cuidou do cara até onde conseguia. Mas como o Nelson era um homem muito vigoroso então ele conseguia escapulir. A dona Arzina contou que o Nelson acordava de noite fuçando atrás de cigarro, atrás de bebida, mexendo nas plantas. “Mas muitas vezes ele me ouvia. Nelson, se acalma Nelson”, ele acordava de noite na neura. Você imagina um boxeador?
VSP- Nelsão era figura. Macho pra caralho, nervoso.
DS- Nervoso.
VSP- Depois ele inclusive botou prótese...
DS- Um macho brasileiro, latino, uma pessoa autêntica. E moleque de rua como foi, entendeu? Tem um amigo meu do Belenzinho chamado Aurimar que tem a rádio Samba do Alambique. Ele sabe do lugar onde o Nelson cantava quando moleque. O Adelino chorava muito contando... tem um trecho doído de quando ele foi visitar o Nelson no hospital.
VSP- Na cadeia ele não foi?
DS- Acho que não foi. Tanto que na época que o Nelson estava na cadeia, você veja que o Adelino tentou um outro cantor, o Carlos Nobre que gravou Ciclone. Mas não deu...a química era com o Nelson, com o Metralha. Ele foi visitar o Nelson no hospital, o cantor já estava muito mal: “Adelino, cadê a minha voz?”, “Você fique bom que a voz volta”. A gente tinha uma fita cassete disso tudo...o Adelino fala pra ele: “Seu desgraçado, filho da puta. Você acabou com a tua vida e a minha”. Porque ali era uma confraria, uma irmandade, um negócio muito sério. Ele me corrigia que o Nelson não era gago, era o taquilálico. É uma pessoa que o raciocínio era mais rápido que a fala. Então, ele foi uma figuraça com a gente e perguntamos se ele topava vir no Taboão, sentar numa roda. “Seu Adelino não é um show. É pras pessoas pegarem na sua mão”, “Eu vou meu filho”. Arrumamos tudo, a velharada de Taboão ficou alvoroçada. É isso que enche a gente de satisfação porque não foi nem uma matéria que a gente vendeu. A gente não teve esse propósito...era algo de preservação, divulgação porque é um patrimônio. Então, não tem essa showzinho: “A gente vai trazer o Adelino aqui pra sentar e a gente conversar”. Muita gente lá no Taboão chegou em mim e falou: “Pô, ontem escutei uma música do Nelson e lembrei de você”. O Adelino se propôs a vir e perto dessa suposta vinda dele, nós fomos pro Rio pra confirmar, entendeu? Ele falou pra nós: “Muita gente gosta de mim. Mas eu acho que igual a vocês dois não têm, porque vocês já vieram aqui duas vezes”. “Porra seu Adelino, mas a gente tem que vir aqui todo dia e ficar escutando”, do caralho. Mas a Arzina contava, as putarias dele eram de dia (risos). Dava seis horas da tarde e ele estava em casa, ele saia de manhã e a dona Arzina foi um dia no centro. Entrou no escritório cheio de mulher e falou: “É aqui que você trabalha seu infeliz?”, diz que era mulher correndo pra tudo que era vida. Mas como eles tinham um padrão de vida bom, ela não ia brigar com ele.
VSP- A casa dele era bonita?
DS- Bonita bicho, bonita. Era uma propriedade ampla, depois eu te dou a dimensão inclusive. Foi tudo muito legal, ele era uma pessoa muito simples. Mas o que ficou dele foi isso: simplicidade. Chinelinho de dedo, bermudinha, camisa comum, lógico que a gente lembra do Adelino nas fotos aquele velhinho mirradinho. A gente pedia pra ele pegar no violão pra tirar uma foto e ele dizia: “Meus dedos doem meu filho, meus dedos doem”. Ele ia ficando velho e dizem que as características da infância ficam mais fortes, ele falava um carioca meio puxado pro português mesmo. O que mais de legal? Você fica com aquele negócio: “Caralho, eu vivi isso”. O que eu gostei bem foi dele contando desse primeiro encontro dele com o Nelson, porque ele já deve ter falado isso tantas vezes e nunca deixou de se emocionar. Realmente é foda você ser esquecido, você ter sido o rei do Brasil. Não é fácil Matheus, é muito pra cabeça de um cara. Ele aparecia na TV Excelsior, TV Tupi, o maior vendedor de discos do Brasil. A palavra do homem era uma ordem né? Ele era o compositor do Nelson Gonçalves, o Nelson quando entrava no palco falava: “Agora eu vou cantar uma canção de Adelino Moreira”. Ele falava pra gente: “Fulano fez uma entrevista comigo e eu não gostei. Gostei dessa aí”. Ele tinha generosidade com a gente, como um avô. E nisso vem as músicas, você fica lembrando as coisas. Tem muita coisa de arrepiar pela importância do Nelson pra gente e pra cultura. A gente deveria fazer romaria pra essas pessoas...eu acho que de tanto a gente não acreditar no sobrenatural, a gente acaba idolatrando essas pessoas.
VSP- Como você descobriu escritores como o Plínio Marcos e o João Antônio?
DS- Tem o seguinte: eu sempre fui um rato da Biblioteca Mário de Andrade. Eu ia de ônibus do Taboão e eu passava meus sábados e domingos lá. Saia de manhã e ficava lá o dia todo. Quando eu terminei o colegial, o horário que teria de ser destinado a uma faculdade eu ficava lá.
VSP- Qual foi a primeira coisa que você leu do Plínio Marcos?
DS- Conheci ele primeiro como ator, mas eu não tinha a referência de quem ele era. Não sei como eu cheguei no Plínio.O primeiro livro que eu li dele foi o Inútil Pranto e Inútil Canto Pelos Anjos Caídos. Eu li um trecho do Querô e depois li esse livro. Mas engraçado, o Plínio tem essa coisa forte da denúncia mas o humor dele é uma coisa muito saborosa. Os contos dele com uma carga de picardia eu gosto bastante.
VSP- E o João Antônio?
DS- Creio que foi alguma crítica literária sobre ele. A primeira coisa que eu li dele foi com certeza o Malaguera, Perus e Bacanaço. Mas é em termos de cara, é um cara que exerceu aquilio que acredita, entendeu? É um desprendimento muito grande. O cara fala: “Eu vou viver aquilo que os merdunchos vivem”. É um mergulho, uma ida aos infernos.
VSP- Ele era um escritor com uma vida tudo. Depois, ele desencanou de tudo.
DS- Veja bem: eu acredito que ele podia ter uma mágoa no reconhecimento, mas profissionalmente ele não tinha muito o que se queixar. Eu me lembro que esse papo de fazer uma matéria e levar pro editor dói. Dói na gente que é um bosta, imagina nele. Eu brigava com o meu amigo Nilson: “Eu vou fazer um artigo pra você e depois você me paga”. Ele me respondia: “Hoje tá complicado. Passa aqui depois que eu te pago uma cerveja”. Mas não é um filho da puta? “Se você não for comprar um artigo meu, nós vamos gastar R$ 100,00 em cerveja!”. Eu nunca trabalhei em redação de jornal nem nada. Mas eu conheço bastante gente e converso com o pessoal. O cara trabalha num troço e ele fala: “Eu estou fazendo aqui David mas eu não sei como vai sair”. Tem muita gente que desiste de redação porque é um inferno. É um negócio de louco mesmo, entendeu?
VSP- Você nunca sentiu falta de não ter trabalhado como jornalista em algum lugar da grande mídia?
DS- Não. Eu ainda quero né? A gente não pode morrer sem ter um produto que mereça um lugar porque todo lugar é legal, todo lugar é digno e tem o seu valor. Isso não pode ficar ali. Como dizia o Plínio: “Lá onde o vento encosta o lixo e os bichos põe suas pragas”. Até ali tem gente sofrendo, tem gente vivendo não é isso? Então, se a literatura chega a essas almas de uma forma difícil, tem o dia-a-dia. Porra, tem um cara em Taboão da Serra que é consertador de sanfona você está me entendendo? Tem que fazer uma matéria sobre o cara. Ele é uma espécie de pneumologista do forró (risos).
VSP- Você acha que o jornalista precisa de diploma pra exercer a profissão?
DS- Não.
VSP- Isso é elitizar a profissão?
DS- Olha, não sei se é pra elitizar. Acho que é mais pra atender aos interesses dos donos das empresas. Porque você não elitiza a capacidade, nesse momento deve estar algum molequinho aprendendo a rabiscar as suas primeiras coisas. A qualidade não pode ser etilizada, como você vai barrar o talento? Falam: “Vai pra faculdade”. Existem coisas que se passarem pela moenda acadêmica vai sofrer alguma alteração. Acredito mesmo nas especializações, eles tem que promover mais seminários. Eu aprendi cada coisa linda em palestras ou seminários com Dimes, Cláudio Abramo, uma palestra do Paulo Francis. Em poucos minutos o cara pode te falar uma dimensão das coisas...eu mesmo fui numa palestra do Paulo Francis aqui em São Paulo. O próprio Kotscho eu via nesse negócio de PT. São pessoas que calados nos dão uma aula porque eles incorporam o pensamento, a ação, a postura, um comportamento. Só isso já tem um baita significado. Eu pego o Ricardo Kotscho descendo a General Carneiro, aquilo já tem toda uma configuração. Ou quando eu vejo ele sentado em algum shopping de bacana, ou na Daslu mesmo. Eu acredito que ele tenha um outro olho, entende? Esse filtro quem vai dar? O jornalista também tem que ter a vontade de contar, de compartilhar. O Chatô levantava as coisas pra vender, mas em termos jornalísticos eu não questiono porque senão você não teria um Joel Silveira pra escrever. Antigamente, eu era mais intransigente em algumas coisas. O Renato Pompeu é outro jornalista que eu gosto muito e ele parou de escrever em jornal. No máximo, ele faz alguns artigos e ele tem uma farmácia lá em Pinheiros. Ele não quer mais entrar na moenda do editor, do diretor. Tem uma passagem da vida do Joel Silveira que um bostinha lá saído da faculdade negou uma pauta pro velho. Então, isso não existe. E que faculdade iria fazer o Joel Silveira ser o repórter que ele era? Não existe. Porra nenhuma, pode estragar. É igual quando o João Bosco falou pro Radamés Gnatalli que ele iria fazer uma faculdade de música: “Não perca essa explosão. Você vai ficar preso numas coisas”. Nós temos uma cidade, uma vida e tem os interesses das pessoas que não estão sendo respeitados. E o pior Matheus: a sacanagem, a desfaçatez, a falta de respeito pelo ser humano. É muita pilantragem, muita filha da putice. Eu não estou endeusando os meios de comunicação, mas você sabe que se não fosse a imprensa as coisas estariam muito piores no Brasil. Eu reputo duas coisas: o Ministério Público e a imprensa. Se a classe política não está aproveitando, isso é um problema deles.
VSP- O Baden Powell você não chegou a conhecer?
DS- Só show, só show. Chegar perto do Baden eu ia falar o quê? Eu vou falar o que pra ele? Vou ficar mudo. O meu amigo me falava: “Vamos lá pegar um autógrafo dele”. Eu respondi: “Não me atrevo. Eu não vou chegar perto desse homem. Ele é uma entidade”. O Baden morreu em 2000.
VSP- Você me falou que começou a ir em shows dele na época da ditadura?
DS- Sim. Na época da ditadura, tinha o projeto Minerva. Eu conheci consegui ir num show do Baden Powell assim. Eu não podia ir em show de bossa nova porque eu sou pobre. Como eu ia sair de Taboão da Serra e pagar um show de bossa nova? Nem hoje dá.
VSP- E esses artistas não iam lá?
DS- Cara, no tempo que o Cunha Bueno era secretário de cultura eu ia assistir Hermeto Pascoal fazendo show nas praças do Morumbi. E hoje, porra...é regime democrático, social-democrata, esquerda e você não tem porra nenhuma. Você tem banda Calypso, entende?
VSP- Vitor e Léo...
DS- César Menotti...então é uma desgraça. A gente vive numa desgraça. Eu vivo na periferia e eu vivo num estado constante de irritação, uma tortura porque é o funk tocando aos milhões. Depois passa o cara do rap, do pagode, do samba, do Exaltasamba...merda. Merda, você tá me entendendo? Eu me sinto acossado o tempo todo.
VSP- O que você acha do hip hop?
DS- Veja bem: o hip hop é a colonização do colonizado. É o preto brasileiro copiando o preto de Los Angeles...porra. Eles deveriam aprender a tocar cavaquinho e tocar samba de breque. Fala rimada, fala ritmada nós já temos. Na década de 40, o Moreira da Silva já fazia isso. Você pega as músicas do Miguel Gustavo e são verdadeiras crônicas do cotidiano e com humor. Eu vou ficar olhando pro Mano Brown fazendo cara feia pra mim? Eu não fiz nada pra ele. Ele está com raiva do que? Ele fala um monte de coisa e vão enriquecendo porque é um outro nicho de mercado. Ele fala um monte de merda porque é merda...
VSP- E ele não dá entrevista em lugar nenhum.
DS- “Eu não vou na Globo”...ele foi no Canal Livre (David refere-se ao programa de entrevistas Canal Livre da Rede Bandeirantes) e amarelou. Eu falaria pra ele: “Tá aberto pra você negão. E aí?”. “Vocês tão querendo me impressionar”, depois ele sai com cadillac com figura metálica, o caralho. Ele anda na periferia de carrão com segurança e musicalmente ele não existe. São trechinhos de arranjo musical que vai e volta, vai e volta. Uma fala raivosa, entendeu?...uma poesia pobre, medíocre. Gosta de fazer poesia, então vai faz o seguinte: vai ler. Leia João Cabral, Drummond. Querer fazer o que esses caras dizem: “A gente faz literatura”. Ferréz e esses caras...
VSP- O Ferréz você gosta?
DS- Não, é bosta. Meu amigo: quem lê João Antônio, quem lê Plínio Marcos vai ler esses caras? Você está me entendendo? Eu vou ler esses caras? Eu li Carolina de Jesus que fez Quarto de Pensão. Você lê Lima Barreto, Zé Carlos de Oliveira e as crônicas dele...quem lê o Rubem Fonseca que é um homem de elite e trata sobre a realidade da periferia com maestria. Eu acho o seguinte: quer fazer alguma coisa? É um trabalho artístico? Então, tem que ter arte. Por exemplo: nós somos jornalistas. Nós temos direito de entregar um texto mal-elaborado? Não revisado? Não temos esse direito.
VSP- Qual é a sua opinião sobre a literatura de periferia que hoje é feita no Brasil?
DS- O cara vai fazer hip hop, literatura da periferia...Eu falo: “Que literatura da periferia você vai fazer?”. Só porque você mora na periferia e achou um esquema de fazer uma determinada movimentação...isso não existe porque não tem qualidade literária. Literatura é você se fuder por aquilo que você faz.
VSP- Como o João Antônio...que morreu de uma maneira trágica.
DS- Como o João Antônio. É viver aquilo que faz. Tem que ser como o Dostoievski: “Eu vou falar sobre a alma humana, então eu vou mergulhar em mim também”. Como o Nelson Gonçalves...se você quer falar sobre a boêmia, você tem que ser um boêmio. Ou então você pode ser um humorista da música como o Moreira da Silva. Ele cantava a malandragem mas não ia na malandragem. Tomava leite, não fumava, se aposentou como motorista de ambulância. Mas era uma outra coisa...era picardia. Você escuta aquilo e vê que era uma ironia.
VSP- Mas o Moreira era um grande cantor de samba romântico também.
DS- Sim. Era um cantor...mas se você tem um determinado tipo de trabalho você tem que se entregar, procurar a tua identidade naquilo e ter a tua identidade. De tal forma que eu te ouça e leia e saiba de onde vem aquilo.
VSP- Como você começou o seu blog, o Bar e Lanches Taboão?
DS- Foi no finalzinho de 2007 por intermédio de um amigo. Ele me falou: “Porra escreve num blog”. “Eu quero lá saber de porra de blog rapaz? Eu quero montar um jornal”. E sei lá...mas não sacia você sabe por quê? Eu não sou bolchevista. Mas eu acredito muito quando Lenin falava que a imprensa organiza a sociedade em suas demandas. Na verdade ele queria dizer: “O jornal é organizador de massas pra fazer a revolução”. Mas eu acredito nesse papel da imprensa...por favor não é essa viadagem de jornalismo cidadão. Eu acredito na palavra escrita e o povo acredita muito nela também. Tanto que está a Bíblia que não deixa a gente mentir. A palavra de Deus tem que ser impressa e a pessoa vê. Quando você entrega algo impresso, você está inoculando noção de ser gente pelo olho do cara. O ato solitário da leitura assim como o ato solitário de escrever é uma coisa muito importante pro ser humano. Eu fico preocupado quando eu vejo pessoas no ônibus andando com um caralho de um MP3 o tempo todo. Essa pessoa não sabe a importância do silêncio, a cabeça não tem momento de fazer...como chama? Esses caras não tem placa tectônica no cérebro. É concreto armado, ele já está moldado, montado pra ser aquilo ali. E por quê o jornal? O jornal é uma hemodiálise. Tem um personagem de Goethe que diz: “Entreguei o meu Homero e fui sentar embaixo de um Omo”. Existe essa relação calorosa com o papel e eu acredito muito nisso. Isso faculdade nenhuma ia me ensinar e ia me dar essa disposição porque é muito complicado quando o cara saí da universidade. O cara pensa que ele vai ser jornalista e ganhar dinheiro, notoriedade, ser um cara legal e ser chamado pras festas. Aí o jornalismo vira um alpinismo social como essas prostitutas que ficam apresentando programa dizendo que são apresentadoras e modelos. Ou é um alpinismo social ou é pra esquentar o michê. Hoje, você tem uma mídia eletrônica que não presta pra porra nenhuma, eu não vejo nada, nada, nada. A gente tem que se refugiar no Discovery Channel, BBC. Eu acho que um país que chega a um ponto desse tendo passado oito anos de governo de um professor? Eu falo: “Você deixa escangalhar porra”. Quando começou o Segura o Tchan?
VSP- Foi no FHC.
DS- Governo Fernando Henrique. Você está me entendendo? Começou tudo ali. Matheus: eu escutava mais Paulinho da Viola no rádio no tempo da ditadura do que agora. Isso eu falo de boa mesmo: escutava, tinha programa bom na televisão, Jair Rodrigues e Elis Regina na televisão. Você está me entendendo?
VSP- Tinha aquele Almoço com os Artistas que iam muitos artistas ruins, mas ia muito cara bom também.
DS- Sim. Mas o artista tem uma alma generosa. Outro dia eu vi o João Bosco com o Dudu Nobre...o João é tão grande, ele está tão acima. Esses artistas que são importantes que eu tenho como paradigmas da nossa sociedade, eles são como setas. Eles são coisas que devem estar disponibilizados pro povo ouvir. Eu escutei o verdadeiro discurso que o Tom Zé fez no programa do Raul Gil que eu falei: “Porra, um homem desse tem que falar no rádio em rede nacional”. Os caras ficam aí pelos cantos? Se não fosse os benditos que são pessoas que eu reputo assim...um dia que eu encontrar com eles uma pinga eu vou pagar. Por exemplo, o pessoal do Gafieiras (David refere-se ao site Gafieras.com.br, especializado em música brasileira) que faz um trabalho grandioso. Você está me entendendo? São pessoas que vão ali e fazem das tripas coração pra gente conseguir segurar essa bagaça. Está tudo uma merda. Olha o tipo de caldo cultural que vai ter daqui há dez anos se já está ruim? Não entorna de vez porque existe uns xaropes igual o David, o Matheus, igual ao Fausto (Salvatori) que seguram e preservam por aqui. Daqui a pouco nós vamos estar mortos ou caquéticos você está me entendendo? Só não vamos ser assessores de imprensa do crime organizado (gargalhadas). Porque existem coisas que precisam ser ditas, senão você endoidece. Por quê a gente toma uns graus? Porque é foda, se não tomar eu vou ficar brigando o tempo inteiro. Eu vou querer chegar na porta do prefeito e falar: “Seu desgraçado, você tem que terminar aquele posto de saúde”. Não é pra mim porra...se você tem o dom de fazer uma reportagem. Nós todos somos um projeto. Vai chegar uma hora que a realidade social não vai se conformar e quem vai dar o golpe? Quem vai ser? Eu não sei. Também não gosto quando a imprensa faz couro, eu quero morrer quando isso acontece. Tem um projeto, tem uma coisa. Daqui a pouco vai ter que pegar em arma porque o jornalismo não está resolvendo. A comunicação pode ser uma forma, um instrumento, um meio.
VSP – Vamos mudar completamente de assunto. David, como você se tornou santista?
DS- Isso aconteceu em 67...tinha um moleque que estudava na mesma classe que eu que o pai dele era palmeirense. Ele me levou num jogo entre Palmeiras e Santos no Pacaembu.
VSP- Poxa. Em 67, era Pelé, Pepe, Zito...
DS- Era um timão. Nós fomos lá e eu me lembro até a frase daquele meu amigo: “O uniforme do Santos é tão bonito, é tão branquinho que é até azul”. Ficou aquele negócio muito legal e eu virei peixeiro. Mas nenhum filho meu se tornou santista, são todos são-paulinos. As duas meninas e o moleque...
VSP- Você trabalha no Pequeninos do Jockey. É um clube que realiza um trabalho muito forte nas categorias de base. Você acha que o Pequeninos é valorizado aqui no Brasil?
DS- Não. No Brasil, a editoria de esportes está preocupada se o Ronaldo está gordo ou magro. A página de esportes não deveria estar falando se o Vágner Love anda com traficante. Isso é página policial...não é isso? Isso é um assunto de polícia. O cara vem dizer: “Eu não sabia”, como não sabia? O outro cara com um canhão do lado dele (risos). Aqui no Brasil não se investe na imprensa pra falar sobre categorias de base. Na Europa é justamente ao contrário, muitos jornais de fora dedicam páginas e páginas sobre o Pequeninos.
VSP- A maioria dos campeonatos de base são feitos na Escandinávia?
DS- Sim, é tudo sincronizado. A primeira competição é na Finlândia numa semana, depois na outra semana é em outro país. Essa região é considerada o local da Copa do Mundo infanto-juvenil. Tem reconhecimento da Fifa inclusive.
VSP- Como é visto os empresários aqui no Pequeninos?
DS- Ele é visto como pessoa não grata. Porque eles acabam desvirtuando o trabalho que se pretende fazer que é integrar o moleque. Se o moleque tiver um potencial, a coisa é feita de maneira diferente.
5 comentários:
Caraio, Excelente. Conheci mais um pouco deste que tenho o privilégio de dizer, é meu carissimo amigo David.
Abração
Ary Marcos
http://sambadealambique.blogspot.com
David da Silva tem o jornalismo no sangue, já elevado a categoria de mestre. Tenho orgulho de participar desses grandes momentos, que só se tornaram grandes, por causa da presença de David da Silva.
Anderson Siqueira
Muito bacana !
Valeu Matheus...Otima entrevista.Abracos
Adoro Adelino Moreira,um dos grandes,sem dúvida.
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