segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Cantinho do Marcos Rey: esta noite ou nunca



- Metade agora, metade contra a entrega.

Era voz do Aranha, o amado Aranha. O governo, com sua tara de cobrar impostos, podia ter queixas dele; eu não. Dono duma editora pirata de fundo de quintal, a Meia-Noite, que publicava livrecos de cem páginas, capa mole, para vendas nas bancas de jornais da periferia e do ABC, o Aranha conseguira comprar, talvez do próprio Gutenberg, uma impressora cujas peças ainda se ajustavam por obra da pressão e aderência de barbantes, esparadrapos e fitas colantes. O papel de suas edições, pouco mais resistente do que o higiênico, embora capaz de substituí-lo nas emergências, era lhe cedido da cota do proprietário de um jornaleco do interior, seu cumpadre. A distribuição, parte mais árdua do trabalho, fazia-a numa caminhonete dum biscateiro apaixonado pela sua literatura. Lançando um livro por mês, dos gêneros terra, mar e sexo, ilustrados evidentemente em presto e branco, o editor vivia disso desde os tempos do Estado Novo. Sabia-se que algum fiscal xereta já aparecera por lá, mas o Aranha abrira a gaveta ligeiro, e tudo não passara duma ida ao bar, onde o contraventor explicou as dificuldades que enfrentam as pessoas idealistas ocupadas com a difusão cultural.

Eu saíra da cadeia, suspeito de atuação subversiva, quando um velho que lembrava um palhaço desempregado bateu à porta da pensão:

- Quer escrever um livro para mim? Sou um dos que pagam. Metade agora, metade contra a entrega.

Cheirava a tabaco, logo existia. Miragens não cheiravam.

- Que gênero de livro?

- Policial. Meu nome é Aranha- e tirou do bolso um exemplar mirrado de suas edições. – Este tamanho, nem uma página a mais. Agora, tem uma coisa: quero dinamite.

Não era minha especialidade, mas qual era minha especialidade?

- Prazo?

- Três semanas.

- Quem escrevia antes?

- Um tal de Canabrava, mas esvaziou.

O primeiro enigma da série policial precisava ser elucidado.

- Quem indicou meu nome?

- Um grande amigo seu.

Lembrei-me de cinco, mas eram pequenos amigos.

- Nome?

- Odilon.

Devia haver muitos Odilons circulando pelas ruas, porém não conhecia nenhum.

- Como vai ele?

- O de sempre.

Contentei-me com isso. Num mundo em que todos mudam, o Odilon continuava o mesmo. É o melhor que se pode dizer de alguém.

Retirado do livro “Esta Noite Ou Nunca”, de autoria de Marcos Rey

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu tenho esse livro e outros do escritor,''Café na Cama'' e ''Memórias de um Gigolô''.