- Metade agora, metade contra a entrega.
Era voz do Aranha, o amado Aranha. O governo, com sua tara de cobrar impostos, podia ter queixas dele; eu não. Dono duma editora pirata de fundo de quintal, a Meia-Noite, que publicava livrecos de cem páginas, capa mole, para vendas nas bancas de jornais da periferia e do ABC, o Aranha conseguira comprar, talvez do próprio Gutenberg, uma impressora cujas peças ainda se ajustavam por obra da pressão e aderência de barbantes, esparadrapos e fitas colantes. O papel de suas edições, pouco mais resistente do que o higiênico, embora capaz de substituí-lo nas emergências, era lhe cedido da cota do proprietário de um jornaleco do interior, seu cumpadre. A distribuição, parte mais árdua do trabalho, fazia-a numa caminhonete dum biscateiro apaixonado pela sua literatura. Lançando um livro por mês, dos gêneros terra, mar e sexo, ilustrados evidentemente em presto e branco, o editor vivia disso desde os tempos do Estado Novo. Sabia-se que algum fiscal xereta já aparecera por lá, mas o Aranha abrira a gaveta ligeiro, e tudo não passara duma ida ao bar, onde o contraventor explicou as dificuldades que enfrentam as pessoas idealistas ocupadas com a difusão cultural.
Eu saíra da cadeia, suspeito de atuação subversiva, quando um velho que lembrava um palhaço desempregado bateu à porta da pensão:
- Quer escrever um livro para mim? Sou um dos que pagam. Metade agora, metade contra a entrega.
Cheirava a tabaco, logo existia. Miragens não cheiravam.
- Que gênero de livro?
- Policial. Meu nome é Aranha- e tirou do bolso um exemplar mirrado de suas edições. – Este tamanho, nem uma página a mais. Agora, tem uma coisa: quero dinamite.
Não era minha especialidade, mas qual era minha especialidade?
- Prazo?
- Três semanas.
- Quem escrevia antes?
- Um tal de Canabrava, mas esvaziou.
O primeiro enigma da série policial precisava ser elucidado.
- Quem indicou meu nome?
- Um grande amigo seu.
Lembrei-me de cinco, mas eram pequenos amigos.
- Nome?
- Odilon.
Devia haver muitos Odilons circulando pelas ruas, porém não conhecia nenhum.
- Como vai ele?
- O de sempre.
Contentei-me com isso. Num mundo em que todos mudam, o Odilon continuava o mesmo. É o melhor que se pode dizer de alguém.
Retirado do livro “Esta Noite Ou Nunca”, de autoria de Marcos Rey
Um comentário:
Eu tenho esse livro e outros do escritor,''Café na Cama'' e ''Memórias de um Gigolô''.
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