O jornalista Gio Mendes publicou uma crônica na edição de ontem do Jornal da Tarde em homenagem ao cineasta Pio Zamuner, falecido recentemente. Como muitos amigos moram fora de São Paulo ou não compraram o JT, estou colocando o texto aqui. Com os devidos créditos a Gio e ao jornal.
PIO, O CINEASTA IGNORADO PELA CIDADE
Por Gio Mendes
Não foi mera coincidência. No mesmo mês em que o poder público adotou a política da “dor e sofrimento” para tentar escorraçar os usuários de droga da cracolândia, a região perdeu um de seus moradores mais ilustres. Assim como os “noias” que ainda vagam pelo bairro da Santa Ifigênia, agora driblando o olhar de um batalhão de policiais, o italiano Pio Zamuner passou décadas desprezado pela cidade, apesar de sua importância para o cinema brasileiro.
Pio morreu aos 76 anos no dia 20 de janeiro, mas continuou vítima da indiferença. Não ficamos sabendo pelos jornais ou pelos programas de televisão que o italiano que dirigiu 12 filmes de Mazzaropi havia nos deixado no mesmo ano em que será comemorado o centenário do comediante que imortalizou a figura do Jeca na tela grande.
Nenhum governante decretou luto oficial para homenagear Pio por sua contribuição para a cultura brasileira. Quase ninguém sabe que a região da cracolândia, onde Pio fixou residência durante 44 anos na Rua dos Andradas, foi um grande centro de produção de filmes entre os anos 60 e 80.
Nessa época áurea, a região era conhecida como Boca do Lixo. Cineastas, técnicos, atores e atrizes conviviam harmoniosamente com as prostitutas que ganhavam a vida nas ruas do centro. Também deviam circular traficantes pelo pedaço, mas nada comparado ao grande mercado de drogas a céu aberto em que se transformou a região nos últimos 20 anos.
“Ninguém mexia com a gente naquela época. Todo mundo se respeitava”, disse-me Pio pela enésima vez em um dos últimos encontros que tivemos em um bar na Rua do Triunfo, onde o italiano adorava tomar uma cachacinha como bom brasileiro.
Apaixonado pelo cinema, Pio gostava de lembrar que tinha trabalhado como técnico para cineastas como Walter Hugo Khouri, Anselmo Duarte e Carlos Coimbra. E também lamentava a chegada dos filmes de sexo explícito nos anos 80, o que para ele ajudou a acabar de vez com o cinema popular que era feito na Boca do Lixo.
Com o passar dos anos, Pio passou a ficar preocupado com o crescente movimento de “noias” na região. “A Boca foi esquecida pelos governantes e até pelo povo do cinema”, disse-me certa vez. Mesmo assim, ele e o inseparável amigo, o também cineasta Rodrigo Montana, de 71, nunca abandonaram a região. Para a infelicidade de Montana, agora ele se tornou o morador mais ilustre da área.
Mesmo com a morte de Pio, Montana não se verá livre tão cedo do bom papo do italiano. “Acho que ele apareceu dias desses para falar comigo”, contou-me recentemente por telefone, o cineasta que sempre acreditou na comunicação com espíritos. A essa hora Pio também já deve ter encontrando o Jeca no céu e colocado a fofoca em dia
O começo do ano realmente foi de dor e sofrimento para a turma da Boca. Em menos de duas semanas, outro estrangeiro que ajudou a abrilhantar o cinema brasileiro nos deixou porque também enfrentava problemas de saúde. Se a partida de um cineasta que fez carreira como diretor de grande parte das obras de Mazzaropi, um fenômeno de bilheteria, foi completamente ignorado pela mídia, não é se de admirar a ausência de notícias sobre a morte do chinês John Doo de 69 anos.
Acho que é exigir muito da curta memória do brasileiro que ele se lembre que John Doo foi diretor de filmes. Talvez apenas os mais amantes e estudiosos do cinema vão recordar das realizações dele atrás das câmeras. Quem tinha mais de 18 anos para entrar no cinema no início dos anos 80 certamente se lembrará do John Doo ator em papéis marcantes como o do pasteleiro que mata prostitutas para ter o principal ingrediente da sua iguaria. Nunca o nosso cinema foi tão gostoso.
Publicado originalmente no Jornal da Tarde em 12 de fevereiro de 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário