domingo, 13 de abril de 2014

As dificuldades do primeiro filme



Por Tony de Sousa

Começou então a minha peleja com o velho Ozu para conseguir material para montar os roteiros. Ele ia me trazendo aos poucos umas anotações que havia feito nos mais variados tipos de papel. Pedaços de jornal, saquinhos de padaria, papel almaço, bilhete de loteria, papel rascunho...

Eu precisava montar dois roteiros. Um para um filme chamado As rosas do caminho e outro para o filme O Jagunço.

As anotações dele eram do tipo: “Fulano encontra sicrano na estrada”. “Jagunço atrás de um toco espera a hora de apertar o gatilho”. “O cara que o Jagunço vai matar entra em quadro”. “Borracheiro está trabalhando e chega Rosa. Fala com ele”.

Em nenhuma das anotações que me passava havia diálogo.

“Escuta, desse jeito tá difícil montar os roteiros”.

“É assim que eu faço minhas fitas. Não escrevo roteiro”.

“Pois é, mas a Embrafilme exige que tenha um roteiro prévio. Não só isso. Que seja feita uma análise técnica do mesmo. Relação de personagens e tudo mais”.

“Eu sabia que ia ser foda isso aí. Vou ter que inventar. Depois mudo tudo!”.

Eu aproveitava essa demora do velho em que me entregar as coisas para dar uma embromada, sem que Davero percebesse. Fingia que tava datilografando o roteiro e escrevia uns troços qualquer lá. Uma ideia para um curta-metragem. Um jovem cineasta tentando fazer seu primeiro filme. Até chegar a hora do almoço e ir comer o comercial delicioso do Serafim.

(...)

O prazo de duas semanas para datilografar os projetos do velho Ozu passou rapidinho. Cheguei a produtora de Davero com dois calhamaços. Ele e Ozu deram uma olhada nos orçamentos e ficaram impressionados com os valores. Os orçamentos de filme de longa-metragem na Boca, em média, giravam em torno dos 100 mil dólares. Havia produções mais elaboradas, mas mesmo essas produções chegavam no máximo a 300 mil dólares. Na maioria dos casos o cara recebia parte dessa grana como um adiantamento de um exibidor que virava sócio do filme. Eu havia chegado a um orçamento de 300 mil dólares apenas para a finalização do filme As rosas do caminho. Já O Jagunço ficou em um milhão de dólares.

O velho Ozu me perguntou incrédulo:

“Você acha que eles vão aprovar isso aí? Não é melhor diminuir um pouco”

“Eles vão aprovar, sim. Eu não inventei nada. Tirei tudo das tabelas de preços”.

“Eu duvido! Mas se vocês quiserem mandar assim...eu acho que isso aí não vai dar em nada”.

Fui até a Embrafilme com toda papelada e protocolei os dois projetos. Aí ficamos em compasso de espera. O velho Ozu sempre cético quanto à possibilidade de sair dinheiro da estatal para os seus filmes, mas muito simpático comigo. Só que, para mim, dinheiro não pintava. E eu continuava com aquela pendência com Eligê. Cheguei pro Davero e falei:

“Você não tem nada aí que me renda uma grana? Preciso arranjar um dinheiro meio urgente”.

Ele me levou até uma área, uma espécie de guarda-tudo, e retirou de uma prateleira onde havia várias latas de filmes meio enferrujadas, umas caixas com fitas de gravação magnética e me mostrou:

“Sabe o que é isso?”

Estava escrito nas caixas: “Magnético 17,5”.

“Esse é o tal magnético 17,5?”

“Isso mesmo! Só que esse magnético já foi usado. Tem gente que compra magnético recuperado. Se você quiser, eu te ensino a fazer a recuperação. Depois você vende, dá uma parte da grana pra mim e fica com o resto”.

Eu não tinha muita alternativa no momento. Aceitei a tarefa. Ele montou uma traquitana sobre uma mesa, pegou umas luvas e começou a me mostrar como fazia a coisa.

“É bom trabalhar sempre com luva. Tem gente que nem usa luva, mas é errado. Ah, já conhece a coladeira?”

E me mostrou um negócio com uns pininhos para encaixar as perfurações do magnético e uma lâmina bem no meio para cortar o magnético ou filme, e em uma das extremidades um rolo de fita adesiva transparente.

“É assim que se faz: os trechos muito curtos você descola com cuidado e joga fora. Deixa só os pedaços mais longos. Vai emendando um no outro assim”.

E me mostrou como usava a coladeira. Como se cortava e emendava um pedaço de magnético no outro pregando com fita adesiva.

“Esses trechos escuros que você tá vendo é silêncio. Tem que tirar tudo fora”.

Dei uma olhada e percebi que os trechos que ele chamava silêncio, eram na verdade, copiões de filme 35 mm cortado ao meio.

“Isso aqui é uma invenção de brasileiro. Lá fora, nos Estados Unidos, eles têm material apropriado para fazer silêncio. Você sabe por que se chama silêncio, não é?”

“Eu tenho as minhas suposições. Não sei se é o que estou imaginando”.

“É o seguinte: quando o montador tá fazendo as pistas de som para mixar o filme, tem trechos de diálogos, trechos de música, trechos de ruídos e trechos que é só silêncio. Não tem som nenhum. Nesse trecho se coloca uma ponta de filme que a gente chama de silêncio. Depois, na mixagem, mesmo esses trechos acabam passando por um processo de colocação de som ambiente. Ás vezes usamos também isso que chamamos de silêncio para um trecho de filme que ainda não temos o som definido”.

E assim fiquei alguns dias nessa tarefa de recuperar magnético. Quando terminei, Davero examinou se as emendas estavam bem feitas e elogiou o meu trabalho.

“Se você quiser, eu te pago tanto (falou uma quantia ridícula que não lembro quanto era, mas pelos meus cálculos dava no máximo para pagar uns três almoços no Serafim). Ou você sai por aí, oferecendo aos montadores. Pode ser que consiga bem mais. Aí me dá uma parte do valor que você conseguir vender”.

Para não esticar muito a história, peguei o valor que ele estava me oferecendo, e fiquei torcendo para que a Embrafilme não demorasse muito a responder a proposta que havíamos feito para os filmes do velho Ozu.

Retirado de A Boca do Cinema de Tony de Sousa, publicado pela LCTE Editora em 2012.

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