domingo, 20 de abril de 2014

Meu primeiro filme: Carlos Reichenbach


Carlos Reichenbach

Corrida em Busca do Amor, 1971



I- O que você fazia antes de Corrida em Busca do Amor?


Eu vinha de duas experiências com filmes de episódio logo após abandonar a Escola Superior de Cinema São Luiz e abrir a Xanadú Produções, com João Callegaro (também egresso da São Luiz) e o crítico mineiro Antonio Lima. Ainda em 1969 iniciei as filmagens daquele que deveria ter sido meu primeiro longa: um delírio anarco-niilista e experimental chamado Guatemala, Ano Zero. Parei quando meus sócios descobriram o teor subversivo da trama imaginada em cima do jargão da época: “Quem sair por último, apaga a luz do aeroporto”. O que eu queria mostrar no filme acabou acontecendo e vários amigos meus, por razões obviamente políticas, se mandaram do país em 1969/70.


Descobri que eu mesmo estava fichado no Dops como “cineasta esquerdista” e já estava pensando em me mandar rapidinho pra Índia atrás de uma hippie deliciosa quando recebi um convite esdrúxulo do produtor e amigo Renato Grecchi.


Grecchi tinha se tornando produtor com dois filmes de muito sucesso: as estreias de Dedé Santana e Renato Aragão no cinema. Entusiasmado com os filmes de Roberto Carlos e sabendo que Roberto Farias iria filmar o “rei” numa aventura com carros de corrida (A 300 Km por Hora), Grecchi imaginou um argumento envolvendo escuderias, um rali, um troféu e uma garota bonita como prêmios.



II- Como era sua relação com o cinema da boca do lixo?


Eu, o Callegaro e alguns outros jovens e neófitos frequentadores da região tínhamos na boca-do-lixo a fama de “meninos da faculdade”, intelectuais metidos, bicho-grilos, maconheiros e cabeludos esquisitos querendo se enturmar com a “galera do cinema”. Era isso que me intrigava: afinal, por que Grecchi resolveu me “dar uma chance”?

Entendi depois. No final de 69, o maior concorrente artístico de Roberto Carlos era “o príncipe da Jovem Guarda”, Ronnie Von. O príncipe nunca tinha feito um filme, logo o tal projeto caía como uma luva para seduzi-lo ao cinema. Acontece que ele tinha fama de intelectual sofisticadíssimo, logo era preciso convocar um diretor à altura. Como o orçamento era exíguo, a saída foi chamar um estreante; mas um estreante de formação acadêmica, lógico.


Isso descobri quando Grecchi me levou à mansão do príncipe. Chegando lá, Grecchi me piscou o olho: “O roteiro já está na mão dele!”. Grecchi e Ronnie Von começaram a jogar bilhar enquanto eu me entediava. Passaram-se horas até o príncipe interromper o bilhar e bradar: “Não vou fazer este filme; o roteiro é uma merda!”. Aí meus brios falaram mais alto. Berrei: “Sei lá que roteiro te deram para ler, mas não fui eu que escrevi!”. Passei então a ele um “vomitório” pessoal publicado num jornal japonês que falava de cinema, artes plásticas, literatura, Hyeronimus Bosch, William Blake e Gérard de Nerval.


O príncipe leu o texto com a máxima atenção e deu um tapa na mesa de bilhar com a mão espalmada: “Vou fazer o filme, mas esse cara tem que reescrever tudo...Eu adoro Blake, eu amo Bosch...Carta-branca para ele...Carta-branca!”. Grecchi me ligou dois dias depois dizendo que o príncipe quase teve uma síncope quando soube do salário previsto para ele. Saía o ídolo, mas permanecia “o jovem diretor que amava Nerval”, desde que abdicasse da porra-louquice e fizesse um filme acessível.


Com a saída do príncipe tentaram-se alguns outros “condes” e “viscondes”, e o filme acabou mesmo com um grupo de jovens cantores conhecidos como “os ídolos do Sílvio Santos”: Vic Barone, Dick Danello, Toni Ricardo e Luis Carlos Clay.



III- Qual importância de Corrida na sua formação?


Corrida em Busca do Amor foi, na verdade, a minha melhor faculdade de cinema. Fiz um filme de corrida de automóvel em que quase nunca havia carros de corrida para filmar e onde os galãs muito raramente estavam disponíveis para filmar em grupo. O dinheiro da produção acabou no meio das filmagens e a saída foi levar à prática os ensinamentos de Roberto Santos na São Luiz: “É preciso transformar a falta de condições em elemento de criação”. Todas as noites, eu e os dois assistentes nos reuníamos no quarto de hotel com uma planilha e uma máquina de escrever. De acordo com os atores e carros disponíveis para o dia seguinte, datilografávamos as sequencias a serem filmadas.


A grande saída autoral de Corrida foi homenagear ostensivamente o cinema de Roger Corman, de quem eu era admirador absoluto, e reciclar, em tom de glosa, clichês do cinema comercial; em especial os filmes para jovens. Poucos perceberam, durante a filmagem, que o que eu pretendia era fazer uma desenfreada celebração da algazarra e da desobediência civil.



IV- Como você vê o filme hoje?


Tenho certeza de que seu estilo anárquico e fragmentado antecipa todas as características intransferíveis de meus 13 filmes seguintes: mistura de gêneros, subversão constante da sintaxe cinematográfica, a música como personagem fundamental da narrativa, nenhum preconceito contra o repertório popular (muito ao contrário) e a fé na utopia como obsessão temática.



Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 3 de agosto de 2003

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