segunda-feira, 14 de julho de 2014

Exclusivo: um conto raro de Hiroito Joanides


O franzino e magricelo Hiroito Joanides (1936-1992) foi um dos homens mais temidos da criminalidade paulista no início de 1960. Preso na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), Joanides escreveu e publicou sua biografia (Boca do Lixo, em 1977). A obra literária é um retrato fiel ao submundo do lenocínio e das drogas na capital paulista do final dos anos 1950 e início dos 60. Personagens da marginalidade como o delegado Minervino, os malandros Quinzinho e Nelson da 45 (O Judeu) são descritos sem romantismo. O livro fez bastante sucesso. Tanto que Hiroito chegou a dar palestras em inúmeras universidades. Em 1978, a editora Edições Populares publicou o livro Chame o Ladrão com contos policiais inéditos de diversos escritores paulistas (Ignácio de Loyola Brandão, Flávio Moreira da Costa, Sílvio Fiorani, Fuido Fidélis, Marcos Rey, Álvaro Alves de Faria, Paulo Rangel, Ewelson Soares Pinto, Humberto Mariotti, Wander Pirolli, Socorro Trindad, Edla van Steen, Mafra Carbonieri e Hiroito de Morais Joanides). Nas linhas abaixo está na íntegra o conto publicado por Hiroito no livro: Um Caso de Honra, baseado em fatos reais. O antigo rei da Boca chegou a dizer em entrevistas que publicaria outros livros sobre seus anos na marginalidade. Isso não chegou a acontecer. Após ser solto, Hiroito chegou a estudar história na USP (Universidade de São Paulo), mas acabou retornando ao submundo. Foi preso diversas vezes. Bastante intelectual, Joanides era admirador de diversos autores estrangeiros como Albert Camus. O nome de Hiroito ainda é lembrado em certos locais de São Paulo. Em lugares com muito passado e nenhum futuro.

Um caso de honra

Por Hiroito Joanides

O primeiro golpe veio por trás, à traição. “Na escama”, como se diz na gíria. A faca, simples barra de ferro arrancada do vitrô da cela e pacienciosamente afiada no chão de pedra, porém eficiente, penetrou fundo, do lado esquerdo, em busca do coração. Ademirzão voltou-se rápido, ação instintiva, agarrando o pescoço do atacante “escamoso”. Foi quando a segunda faca adentrou-lhe o vazio da barriga.

No sombrio corredor do Pavilhão Oito da Casa de Detenção, por sobre o tropel dos que fogem à cena explode no ar ruído metálico de uma porta batendo: a saída do pavimento fora fechada, ligeiro, pelo guarda experiente, postado de fora. Medidas de rotina. Em nome da segurança cortava-se a única via possível de fuga a quem quer que fosse atacado.

Mas para Adermizão não havia uma chance de fuga, estava cercado. O seu braço direito, que agarrara o primeiro atacante, rasgava-se agora sob o fio do punhal que empunhava um terceiro. Na roda de morte, enquanto a arma de quarto agressor se metia em seu peito outro mais lhe furava, rasgando, o pescoço. Perdida em sangue a força da vida, apenas os golpes que se sucediam em seu corpo taurino mantinham-no em pé. Por fim, descamba por terra, um metro e noventa ferido de morte.

No comprido corredor, em “U”, do terceiro pavimento, o vozerio de ainda há pouco, de centenas de sentenciados que ali transitavam, se fizera silêncio, silêncio de espanto. Postados de longe, detrás a mesmice das pesadas portas de aço, em fileira e então abertas, olhos habituados ao sangue se assombravam com a violência da cena, a eles próprios inaudita.

Em torno àquele corpo negro, caído, já sem vida, onze homens, braços armados, disputavam, embolados, aos empurrões, o privilégio de esfaqueá-lo outra vez mais ainda, por vezes se ferindo na ância assassina. Nos rostos jovens das onze bestas-feras, produtos do sistema penitenciário, rostos de homens sofridos, sós, esquecidos, números apenas, a mesma expressão de ódio incontido, curtido de há muito. Curtido desde o tempo do Juizado de Menores.

Ademir de Souza, noventa quilos de músculos, fereza e depravação, nascido numa favela qualquer, era filho do Estado. De pais desconhecidos, fora criado, desde os doze anos, pelo Juizado de Menores. De onde sempre fugia, para retornar logo após alguns furtos e assaltos. Do porte avantajado e força desmedida, lhe sobrara o cognome Ademirzão, e , dos anos que passara no Instituto de Reeducação de Mogi Mirim, lhe ficaram o título de “estuprador-oficial do Juizado de Menores”. Título pelo qual os mais chegados, nas rodas carcerárias, costumavam chama-lo, por gozação, claro, mas muito merecidamente. Desse merecimento, mais de uma centena de sentenciados da Casa de Detenção, que haviam passado por Mogi Mirim quando menores, traziam na lembrança, e no corpo, o atestado comprobatório.

Nos tempos de Mogi Mirim, Ademirzão sempre fora o mais forte, feroz e obsessivamente devasso. Do que sempre se valiam alguns carcereiros para a conservação do bom andamento da disciplina interna. Ademirzão era usado como instrumento de cura na revolta deste ou daquele garoto mais bagunceiro e indisciplinado. “Quebra-moral”, como diziam os carcereiros, ou, “vergonhoterapia”, como por perto os psicólogos haveriam de nomear o método.

Quando um qualquer moleque que por lá aportasse visse a se mostrar desordeiro e valente – vazão natural de uma infância em abandono – perturbando com isso o ambiente e a doce paz de carcereiro em serviço, bastava numa noite qualquer transferi-lo para ao xadrez do Ademirzão. Ao amanhecer, o moleque valente e xucro estaria já “ domado”, montado que fora. No pescoço, a dor do aperto do braço rijo e forte, que traz à vista a névoa que o desmaio apaga. No mais, a dor da carne que fora violada. E, na sede volitiva, mais forte que o ódio, a vergonha que inibe as revoltas antigas.

Agora, no silente corredor do Presídio, o ápice do horror. Sem prévia combinação, sem palavras, num tácito e insano entendimento alguns daqueles homens em fúria, cinco, se puseram ao trabalho de esquartejo do corpo. Os seis outros, cabisbaixos e arfantes, sujos, banhados de sangue, satisfeitos talvez, se afastavam sem pressa, nos braços pendidos o aço sem brilho da faca em vermelho.


Em posições esquisitas, agachados em torno ao cadáver, dois deles com as facas tentavam arrancar-lhe o braço na altura do ombro. As armas rangiam no osso. Dos três outros, enquanto um segurava, puxando, a cabeça do morto, os demais trabalhavam com as facas no grosso pescoço, buscando arrancá-la. Intento perdido, a rijeza do osso impedia o trabalho. Desistem. Cansados, e em silêncio, caminham em rumo suas celas. Final de vingança. No chão de azulejo, o “estuprador-oficial do Juizado de Mogi Mirim”, com o braço retorcido por sobre a cabeça, parecia saudar, o Inferno talvez.

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