sábado, 25 de julho de 2015

Manaus vive boemia com Nelson e Arthur



Manaus vive boemia com Nelson e Arthur



Arthur Moreira Lima e Nelson Gonçalves estrearam no Teatro Amazonas a turnê nacional de O Boêmio e o Pianista, em que atuam juntos pela primeira vez



Lauro Lisboa Garcia



MANAUS- O pianista Arthur Moreira Lima e o cantor Nelson Gonçalves são no mínimo espirituosos. Como dois Fitzcarraldos, em versão bem-humorada e mais modesta, conseguiram transferir o clima de boemia da Lapa carioca para o gigantismo da floresta Amazônica. Sábado à noite a dupla estreou a turnê nacional do show O Boêmio e o Pianista no histórico Teatro Amazonas, tão (ou mais) belo que os Municipais do Rio e de São Paulo.



Arthur procurava argumentos que justificasse sua escolha, pelo simples prazer de tocar no Teatro Amazonas. Encontrou num fenômeno natural da região a imagem exemplar: “É o encontro das águas do erudito com o popular”, disse referindo-se aos rios Negro e Amazonas. Em certo aspecto, o recital do piano clássico mais popular e da voz popular mais clássica do Brasil cumpre a função dos dois rios. São correntes paralelas que não se misturam, ás vezes seguem direção contrária.



O que o Teatro Amazonas tem de beleza (o painel original que serve de cortina ao palco causa impacto imediato) tem de precário na parte técnica. Fechado a maior parte do ano, fez emergir uma série de problemas em ocasiões como essa, que vão desde a afinação do piano até a instalação do sistema de som. Tudo isso executado por pessoas não exatamente profissionais do setor. O bem-humorado Arthur dizia durante o almoço que todo repórter deveria conhecer o afinador de piano, um tal de Evilásio, cujo nome pronunciava sempre seguido de risos frouxos.



No fundo, o pianista com mais de 40 anos de carreira, reservava uma ponta de tensão. Para ele, tocar com Nelson, um de seus maiores ídolos confessos desde sempre, era responsabilidade maior que enfrentar qualquer filarmônica de Moscou ou outras grandes com quem tocou. Dito dessa maneira, parece inacreditável que dois veteranos experientes ainda se estremeçam com estreias. O esquentado Nelson, 73 anos, 54 de carreira, por exemplo, fumava um cigarro atrás do outro.



A tensão inicial deu lugar à naturalidade com que Arthur e Nelson foram se tornando cúmplices e colocando sua técnica impecável à mercê do que se pode chamar de emoção sincera. Black-tie, sem tie (gravata), Nelson desfiou inúmeros sucessos de sempre com uma voz que, surpreendentemente, resiste ao tempo. É um baixo-cantante que emite a voz pelo diafragma, coisa rara entre cantores, gaba-se até hoje. Associa-se a esse dote, o reforço de exercícios respiratórios a 13 tipos de vitaminas que toma todos os dias.



Para o público que foi vê-lo, no entanto, importa a emoção de ouvi-lo num repertório tão óbvio quanto antológico e admirar sua vocalização natural. Vez ou outra a voz torna-se oscilante, mas Nelson, do alto de seus mais de 120 LPs gravados, usa de artifícios convincentes para segurar as notas mais altas. Desafinar jamais. A reação do público é formal, quase fria, o que ele procurar contornar com brincadeiras e conversa séria. Diz que sempre quis fazer um concerto desse tipo e só conseguiu realizar agora por causa da sensibilidade de Arthur trabalhar com a acústica de piano e voz: “Ele é todo ternura”. Quando ofereceu As Rosas Não Falam (Cartola) como cantada “ás moças sonhadoras”, pedia licença aos homens, para depois completar: “Eu sou um velhinho inofensivo”. Nem tanto, mestre. Bastou uma fã mais exaltada procura-lo no camarim para o velho boêmio de assanhar.



Comparando a atuação dos dois nesse encontro, Arthur é mais coringa em sua posição. A pompa circunstancial dos arranjos, de qualquer maneira belíssimos, de Laércio de Freitas davam sinais de que o despojamento de Nelson e de canções como Caminhemos (Herivelto Martins) e Último Desejo (Noel Rosa) não dispensariam malabarismos para se segurar no timing determinado do pianista. Em Último Desejo, voz e piano são quase antagônicos mas chegam, em meio a uma pororoca de teatrilidade de ambos, ao consenso.



Falante, debochado e ao mesmo tempo sóbrio, Nelson não se mexe quase. Arthur faz o oposto, calado e gesticulante. O foco nos contrastes, Arthur não deixa de vingar a música de fronteira erudita-popular. Ninguém melhor que Pixinguinha (Lamento) e Ernesto Nazareth (Turbilhão de Beijos) de um lado e Chopin (Polonnaise) de outro dessa linha. São solos em que o eclético Arthur quase chega ao happening. “A serenata, no fundo, é a sonata dos pobres”, ilustra. Referências de Liszt, Villa-Lobos e Rachmaninov soam em meio a Luiz Gonzaga, Lupiscínio Rodrigues e Lamartine Babo. O ponto alto, porém, é a interpretação de Adiós Moniño, de Astor Piazzola, morto dia 4. A união da beleza clássica da composição com o caráter de homenagem póstuma, mais a moldura do teatro e a interpretação livre de Arthur, levou a plateia às lágrimas, sem exagero.



As variantes de clima vão dos mais rasgados tangos (Carlos Gardel, El Dia em me Quieras, Vermelho 27) às batidas marchinhas carnavalescas (A Jardineira, As Pastorinhas), Arthur, que admira o fato de Nelson sabe de cor mais de 2.500 músicas, teve de improvisar meio sem jeito quando o cantor resolveu cantar Naquela Mesa e Normalista, a pedidos, sem que tivessem ensaiado.



O lugar ideal para esse recital é um teatro, algo em desuso nas grandes cidades e que é um conforto indispensável para o espírito. A turnê de O Boêmio e o Pianista segue até o final do ano por diversas capitais e cidades do interior. Eles já gravam um disco que será lançado no meio da turnê. Em São Paulo, a dupla se apresenta de 13 a 30 de agosto no Palladium. Não se pode ter tudo, mesmo. O silêncio atento ao público amazonense será substituído pelo falatório arrogante da classe média frequentadora de shopping e por aplausos excessivos. Tal demonstração de interesse põe em dúvida os códigos de relação entre palco e plateia. Certa vez, Egberto Gismonti tocou para uma tribo de índios no Xingu e não recebeu um aplauso sequer. Passado o constrangimento, foi saber que o silêncio diante de quem se apresenta a eles era o maior sinal de respeito que os índios tinham a demonstrar. Quem é selvagem?



Publicado originalmente no O Estado de São Paulo em 12 de julho de 1992

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