sábado, 16 de abril de 2016

O diretor de Coisas Eróticas


Por Denise Godinho e Hugo Moura

Em uma tarde do verão de 1979, Raffaele Rossi entrou de cabeça erguida no bar Soberano. O botequim tinha sido inaugurado em 1961 no número 155 da rua do Triunfo. Era no balcão de sete metros de extensão, logo na entrada, que os cineastas da Boca do Lixo paulistana se reuniam para conversar sobre cinema, o cachê da nova estrela que perambulava nas redondezas ou o jogo de futebol da noite anterior. É verdade que, em muitas ocasiões, o bar se estendia até a rua, porque os grupos de frequentadores ficavam na calçada, os copos americanos repletos de cerveja em suas mãos. O salão do fundo abrigava 12 mesas, cada uma delas rodeada por quatro cadeiras. Ali era servido o tradicional almoço, desde o concorrido bacalhau na brasa até o frango com polenta. O proprietário, Serafim, cuidava de manter seus clientes entretidos com os copos cheios. De vez em quando, até arriscava um número de mágica com o baralho engordurado que ficava em cima do balcão. Em geral, o Soberano era parada obrigatória de técnicos, atores, diretores e produtores que trabalhavam na região, embora todos eles se misturassem também a prostitutas e traficantes que prestavam seus árduos serviços nas redondezas. Raffaele Rossi não costumava frequentar o bar, apesar de trabalhar por ali fazendo justamente cinema. O cineasta italiano era tímido e, embora conhecesse todos, nunca tomava a iniciativa para uma conversa; como as pessoas raramente o chamavam, ele entrava e saía do bar de cabeça baixa. Com exceção daquela tarde calorenta.

O italiano entrou dando passos firmes e largos sob olhares desconfiados. Afinal, ele devia dinheiro ou favores a parte daqueles que almoçavam ali. Serafim estranhou a presença de Raffaele no boteco, embora não tivesse nada contra ele. Todas as pouquíssimas ocasiões em que o diretor havia consumido algo do bar, tinha pago certinho e, ás vezes, chegava até a deixar alguma gorjeta. Raffaele deu de ombros e partiu quase farejando mesa por mesa em busca de alguém ou alguma coisa em cada canto o botequim. Foi lá no fundo, depois das três colunas que enfileiravam e dividiam as 12 mesas do restaurante e, sob o barulho das conversas paralelas, que o diretor avistou o amigo Laerte Calicchio saindo do banheiro e enxugando as mãos nas próprias calças. Partiu como um foguete em direção a ele. Antes que Laerte pudesse perguntar o que o amigo estava fazendo ali, já tinha sido puxado pelo braço em direção à calçada onde outro amigo, Walmir Dias, os esperava, com o mesmo olhar de espanto e dúvida estampado no rosto.

Raffaele partiu na frente, em direção ao lado sul da rua, deixando no ar a ideia de que os dois deveriam segui-lo – e foi o que fizeram. Não entendiam o que estava acontecendo e também não podiam questionar entre si, porque o fôlego era suficiente apenas para manter o passo apressado que o amigo impunha a eles. Quase o perderam de vista quando entrou à direita na rua Vitória. Sacaram que estavam sendo levados para a Empresa Cinematográfica Rossi, localizada na rua dos Andradas, paralela à rua do Triunfo, quase de quintal com o bar Soberano.

Ele subiu os quatro lances de escada de dois em dois degraus. Se fosse possível adivinhar o que se passava nas cabeças de Laerte e Walmir, de certo supunham alguma má notícia. Mas Raffaele estava sorrindo quando buscou cada um deles. Estava? Não lembravam mais. Poderia ser um processo que alguém da Boca abrira contra ele. Afinal, não seria a primeira vez. Laerte chegou a esbravejar para si mesmo entredentes que não tinha mais idade para aquilo!

Raffaele parou na escada e se arqueou, debruçando as duas mãos nos joelhos. Respirava com dificuldade e esperava lentamente que os batimentos cardíacos voltassem ao normal. Enquanto isso, os amigos já o haviam alcançado.

- Vamos até a sala, não é nada ruim, eu prometo- disse ainda com a voz rouca e pausada.

Eles andaram em silêncio alguns metros em direção à porta de madeira que dava acesso à salinha do diretor na produtora. Era um cômodo de cerca de dez metros quadrados em um prédio residencial, onde prostitutas disputavam espaço entre malandros, cavalheiros neurastênicos e idosas decadentes que acompanhavam, com desprezo, o fluxo contínuo de visitantes em seus aposentos. Não existia luxo nenhum, mas era o que Raffaele poderia pagar. O prédio por si só fazia jus ao apelido Boca do Lixo, mas não era pior nem melhor que outros edifícios na região. A saleta alugada tinha documentação em dia, mas não passava de um espaço maltratado e organizado apenas por um sofá de tecido marrom antigo na parede central e uma mesa de ferro com quatro cadeiras. Em um dos cantos, os equipamentos eram empilhados e cobertos por uma grande lona azul. Do outro lado, um filtro de água feito de barro se equilibrava em um banquinho perneta.

Todos se sentaram-se à mesa. Laerte folheou uma revista Manchete que estava à sua frente, mas não teve tempo de apreciar uma foto ou ler uma linha de alguma reportagem, pois Raffaele arrancava de supetão e com violência a publicação de suas mãos. Abriu a revista e virou folha a folha, procurando algo. Dobrou-a ao meio e jogou na mesa a Manchete aberta na página em que uma reportagem falava sobre um filme japonês com cenas de sexo explícito que chegaria ao Brasil em breve. Laerte e Walmir se espremeram e passaram juntos os olhos pelas linhas do editorial. O diretor decerto se divertia com a situação quando se apoiou no encosto de uma das cadeiras que rodeavam a mesa e passou a observar os amigos. Eles pareciam não entender nada.

- Temos que fazer isso. É a oportunidade de nos darmos bem!- profetizou.


Publicado originalmente em GODINHO, Denise & MOURA, Hugo. Coisas eróticas: a história jamais contada da primeira vez do cinema nacional. São Paulo: Panda Books, 2012.  

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