sábado, 23 de abril de 2016

Aquelas coisas eróticas


Por Denise Godinho e Hugo Moura

A princípio, Raffaele Rossi tinha apenas uma ideia e talvez até contasse secretamente com o apoio dos amigos. Laerte Calicchio, apesar de parecer o mais consciente deles, caiu em uma crise de riso prolongado que durou longos segundos. Ria desesperadamente porque sabia que não seria fácil convencer o amigo do contrário. Estava louco? Apesar de viverem uma abertura política, a censura ainda existia. E estava escrito ali, naquela mesma revista, que o tal filme japonês, produzido três anos antes, enfrentava resistência do governo para ser exibido o país. Imagine um filme nacional! Além do mais, Raffaele vivia produzindo com baixo orçamento e seu dinheiro quase nunca era suficiente para um filme. Naquele momento estavam filmando Boneca cobiçada com a estrela da época, Aldine Müller. “Mas não, ele nunca está satisfeito” – esbravejava. Walmir concordava com tudo o que Laerte aprontava quase que didaticamente ao amigo. Não era o momento de mexer com uma produção desse nível. Ora, sexo explícito em um cinema? E ainda cobrar ingresso? Laerte não acreditava na empreitada e achava que seria um trabalho que poderia leva-los a cadeia ou, no mínimo ao fracasso.

Talvez fosse mesmo, para a realidade do Brasil na época. Fora do país, o mundo já havia visto na telona, quase dez anos antes, o que aqui, aparentemente, só se fazia entre quatro paredes. O clássico Garganta profunda, de 1972, dirigido por Gérard Damiano, revolucionou o cinema americano contando a história de uma mulher que tinha o clitóris na garganta. A obra impulsionou outras produções do gênero, como Atrás da porta verde, daquele mesmo ano, dirigido pelos irmãos Mitchell, Artie e Jim, e O diabo na pele de miss Jones, de 1973, também de Damiano. Todos eles se tornaram referência do estilo cinematográfico já no início da década de 1970, assim como o também revolucionário e aclamado pela crítica Império dos sentidos, aquele tal filme japonês produzido em 1976 pelo diretor Nagisa Oshima.

Raffaele Rossi ouviu todos os contras com atenção, tirou o pente fino de plástico marrom do bolso da camisa e penteou os cabelos emplastrados de brilhantina divididos para o lado. Cada movimento era feito pausadamente, como se, enquanto se mexesse, estivesse degustando os conselhos lançados pelos amigos aflitos.

- Mie amici, eu não quero fazer um pornô. Eu quero apenas inserir uma cena pornô em Boneca cobiçada.

Até então, o brasileiro havia se contentado com os inocentes mamilos descobertos de atrizes como Helena Ramos, Matilde Mastrangi, Zaíra Bueno e Débora Muniz. Prestes a entrar na década de 1980, o país já andava lentamente para uma abertura democrática depois de anos de chumbo quente em cima das manifestações artísticas.

Durante a década anterior, qualquer música, peça teatral, jornal ou filme que incitasse uma interpretação política sobre o contexto que o país vivia, caía no corte. A nudez, por sua vez, servia como uma via de escape. Enquanto as pessoas estivessem se masturbando nos cinemas, não explodiriam bombas pelas cidades. Embora antirrevolucionário, o nu ainda era o guardião dos maus costumes e, por isso, deveria ser castigado. E foi. Retaliar os filmes de pornochanchada virou praxe e, ás vezes, eles se tornaram incompreensíveis, tamanho o corte da censura. Tudo porque, aparentemente, não era permitido mostrar dois seios de uma só vez, de acordo com determinada portaria do Conselho Superior de Censura. Era como se os censores se divertissem durante as sessões: “Vamos liberar um mamilo só”.

É claro que uma cena explícita não passaria facilmente pelos censores. Pelo menos, ainda não naquela época. Raffaele sabia disso, mas a adrenalina de enfrentar o Departamento de Censura e a dona Solange Hernandes, a temida chefe da tesoura, que não perdoava nem a mais pura das cenas eróticas, fazia a expedição cada vez mais excitante. Para ele, a censura era burra e bastava algum truque para que a permissão fosse carimbada nos usuais documentos de liberação. Foi o que ele fez. O diretor, espertamente, usou um truque de luz para disfarçar a penetração do ator Oásis Minniti em Vânia Bonier. A filmagem, feita à contraluz, pouco mostrava e deixava a cena subentendida. Apesar de implícita, essa pode ser considerada a primeira cena de sexo explícito do cinema brasileiro.

Para alívio de Rossi, Boneca cobiçada estreou em junho de 1980, oito meses depois de o filme japonês entrar em cartaz.

Eram lindas aquelas mulheres nos cartazes dos filmes. A pele tinha um bronzeado inalcançável em plena capital paulistana. As saias estampadas, geralmente rodadas, ou bem justas com fendas laterais, pouco mostravam, mas davam pistas sugestivas do que cobriam. Em meio à correria cotidiana na agitada São Paulo, é provável que muitos homens tenham ficado com torcicolo ao se afastarem, do cinema enojado pedindo o dinheiro de volta. Para Raffaele, os espectadores não queriam sentir nojo de sexo. Muito pelo contrário, sexo deveria ser excitante.

Era 15 de outubro de 1981, uma quinta-feira. A reunião estava marcada para as quatro horas da tarde, no escritório da Empresa Cinematográfica Rossi. Laerte organizava os rascunhos escritos durante a noite anterior em uma pasta. Pelos seus cálculos, aquele enredo duraria cerca de quarenta minutos. Era a história de dois casais que se conheciam por um anúncio de jornal para amantes de swing. Sabia que agradaria a Raffaele, embora sentisse um misto de empolgação e medo gelando sua barriga. Em decisão prévia, o diretor havia dito que, para economizarem recursos, o filme teria três capítulos, cada um com uma história diferente. Laerte era o convidado para escrever e dirigir uma delas. Era a primeira vez que essa oportunidade se apresentava a ele. Em Boneca cobiçada havia trabalhado como assistente de direção e, nos créditos finais, nem seu sobrenome havia sido mostrado.

Laerte apanhou uma a uma as folhas que, encardidas pelo manuseio de seus dedos sujos graças à fita da máquina de escrever, exibiam a história elaborada durante toda uma madrugada regada a café e a um maço inteiro de Hollywood. Enquanto as organizava na pasta, relia frases desconexas que eram fisgadas por seus olhos vigilantes.

Enquanto isso, Raffaele andava pela rua do Triumpho em direção ao escritório. Apreensivo com a reunião que se seguiria, estava cabisbaixo e com os ombros protegendo o pescoço. Desligou-se do mundo prestando atenção à rotina cíclica de seus pés a cada passo dado – um na frente do outro. Não reparou quem vinha andando em sua direção, animada, com o sorriso largo sempre a postos para cumprimenta-lo.

No fim da década de 1970, Vanilda Ana Plácido, então com vinte anos, trabalhava em uma revendedora de veículos na avenida Rio Branco, no Centro de São Paulo. A catarinense já vivia na cidade havia cinco anos. Suas formas arredondadas e bem distribuídas, seu sorriso ruidoso e seus cabelos longos e negros chamaram a atenção de um professor de artes da Universidade de São Paulo. Ele a convidou para ser modelo vivo em uma aula sobre as formas do corpo humano. A ideia era que ela ficasse nua em frente aos alunos para que eles aprendessem a desenhar o corpo humano em diferentes situações. Como o rosto se movimenta ao chupar uma laranja? Como as pernas se flexionam quando abaixamos para pegar uma caixa?

Ela aceitou a proposta com a condição de que não precisasse largar o emprego. E ficaram combinados que ele marcaria as aulas nos momentos em que ela estivesse livre. Vanilda gostou do trabalho e o fato de conseguir ficar horas congelada em uma posição logo chamou a atenção do grupo de teatro do campus, que a convidou para participar de uma peça. A partir dali, Vanilda passou a rodar São Paulo fazendo teatro amador. Em uma dessas apresentações, um produtor da rua do Triumpho a chamou de canto e perguntou-lhe se ela gostaria de fazer cinema.

Vanilda adotou Vânia Bonier como nome artístico, e em 1980 estreou nas salas de cinema nacional com a produção O império das taras, dirigido por José Adalto Cardoso. É irônico pensar que ela trabalhou durante cinco anos na avenida Rio Branco, próximo à rua do Triumpho, e só entrou para o cinema depois de topar ser modelo vivo no Butantã, um bairro distante da efervescência cinematográfica.



Raffaele Rossi sempre achou graça no jeito ingênuo de Vânia se portar. Ela havia acabado de entrar para o cinema e fazia questão de conversar com todos para manter próximas a ela as oportunidades de convites para outras produções. Por isso, não pensou duas vezes ao pega-lo pelo braço e leva-la à reunião que aconteceria em breve no escritório. Durante o caminho, adiantou que estava prestes a fazer um filme que entraria para a história do cinema e que ela não poderia perder a chance de participar dele.

A equipe sentia algo entre ansiedade e receio da aventura. Raffaele Rossi acalmava os ânimos usando o filme Império dos sentidos como exemplo. “Se ele foi liberado, o nosso também vai ser”, tranquilizava, ainda que todos ali soubessem que a produção japonesa havia sido liberada sob a justificativa de que era um filme de arte, e exclusivamente para o festival.

Laerte contou resumidamente a sua história antes de mostrar os papeis rascunhados. Diante de bocas entreabertas e sobrancelhas arqueadas, ele leu o roteiro até o último ponto final. A história era repleta de palavrões, sadomasoquismo, cenas homossexuais e sexo grupal. Laerte pôde sentir um frio percorrer toda a sua espinha depois de segundos de silêncio daqueles que o olhavam perplexos. Era o esboço de um dos capítulos e eles nem sequer imaginavam qual seria o enredo dos outros dois. Raffaele se levantou da cadeira, penteando os cabelos emplastrados.

- Pensou em um nome para esse capítulo?- perguntou.

- “Coisas eróticas”.

- “Coisas eróticas” ? - indagou, arqueando uma sobrancelha.

- É, já que o episódio é cheio de coisas eróticas – explicou Laerte, gaguejando.

Raffaele prosseguiu penteando os cabelos, ignorando o fato que os fios já estavam perfeitamente alinhados, e passou a andar em círculos sob silêncio, receoso daqueles que aguardavam uma reposta para o título sugerido por Laerte. O próprio autor imaginava que não tinha tido uma boa ideia e tratava de buscar mentalmente outros possíveis nomes para arrematar a crítica que de certo viria. Mas, para a surpresa de todos, ela não veio.

- “Coisas eróticas” – o diretor rompeu o silêncio da saleta soletrando cada sílaba pausadamente como se degustasse a sensação que as duas palavras juntas provocaram. – É isso Laerte! Achamos o título o título! O filme inteiro deve se chamar Coisas eróticas.

A primeira filmagem começaria no dia seguinte.  

Publicado originalmente em GODINHO, Denise & MOURA, Hugo. Coisas eróticas: a história jamais contada da primeira vez do cinema nacional. São Paulo: Panda Books, 2012. 


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