domingo, 8 de janeiro de 2017

A história do Jogral: capítulo quatro



Capítulo 4



CARLOS PARANÁ MORRE MAS SUAS IDEIAS SOBREVIVEM



Por Marcus Pereira


                           Disco de Luiz Carlos Paraná que foi lançado após sua morte


Mas Carlos Paraná era incansável. O sucesso do “Jogral” já era pouco para ele. E agora, talvez, eu possa entender a sua auto-exclusão do cast do “Jogral”. Os chilenos têm uma expressão para identificar as pessoas subaproveitadas, que é: “Fulano calça maior”. Na verdade, Carlos Paraná calçava maior do que o limitado das apresentações, noite após noite, no palco de uma boate, ainda que essa boate fosse o “Jogral”. Ocorre-me uma antologia com Tempos Modernos, onde o gênio de Chaplin registrou o drama do homem-máquina. Repetindo a frase chilena, o Homem calça muito maior! A transformação do homem numa mera máquina de apertar parafusos é um drama supremo – e a história do Homem é a repetição diária, eterna e inexorável desse rama que é automatização da mais complexa e perfeita criação da natureza capaz de compor sinfonias, escrever poemas comoventes, criar teorias esclarecedoras de mistérios milenares mas que, quase na sua totalidade, não faz senão apertar parafusos, ganhando para comer e, como num inconsciente masoquismo, manter viva a consciência de seu drama sem dimensão. Se isto é um drama fantástico, repito, também é um drama fantástico precisa simular a emoção do intérprete diante da obra interpretada. Quantos artistas são obrigados a essa violação permanente? Todos os artistas que, como os operários apertadores de parafusos, simulam frequentemente a emoção que muitas vezes não sentem, porque a clientela é exigente e, como se sabe, o cliente sempre tem razão. Há uma frase muito antiga que diz: “afinal, eu paguei”. E o artista volta pra casa muitas vezes bêbado, frequentemente um pouquinho menor, porque o sofrimento se alimenta das pessoas e as consomem. E volta depois de ter dado festa a quem comprou festa, mas uma festa inventada. Que a consciência deste drama aprimore, em cada um de nós – na forma que cada um de nós – na forma de cada um – pode dar ao artista.



A consciência cultural de Carlos Paraná e as responsabilidades de liderança que assumiu em “O Jogral” tem um significado de particular importância. Com a mudança e com o crescimento decorrente das condições comerciais de sua casa, Carlos impôs-se obrigações que dão bem a medida de sua grandeza e de sua visão artística e social. Para “O Jogral” seria mais conveniente não ter um elenco fixo mas, dentro do seu campo musical, apresentar artistas e conjuntos frequentemente renovados, variando sua oferta musical. Mas Carlos Paraná preocupava-se com a profissionalização do músico e achava que ele tinha tanto direito à estabilidade quanto os profissionais de outras áreas, o que é absolutamente indiscutível, mas que está longe de ser realidade. No “Jogral”, entretanto, o músico tinha tanto trabalho seguro, permanente e bem pago. Todos que, depois da morte de Carlos, assumiram o leme do barco – Marta Paraná, sua viúva, depois eu, agora o José Eduardo Costa – mantemos as mesma condições de trabalho para o músico que atua no “Jogral”.



Outra iniciativa sua documenta seu apreço, seu respeito e seu carinho pelo artista e pelo músico. Em 1968 ele criou uma condecoração a que deu o nome de “Ordem do Jogral”. Era uma medalha, de concepção muito própria e execução perfeita, em cujo reverso ele gravava o nome do homenageado e a categoria na qual era condecorado. As categorias eram: “Grande compositor”, “Grande intérprete”, “Velho companheiro”, “Amigão”. Carlos Paraná justificou da seguinte forma a sua ideia de criar a “Ordem do Jogral”: “A medalha da ‘Ordem do Jogral’ foi criada em retribuição à amizade de muitos ‘cobras’ da nossa música pelo ‘Jogral’, onde aparece e se apresentam. Mas a medalha também será conferida a pessoas que, não sendo artistas, também prestigiam o “Jogral”, e a receberão também todos que prestaram relevantes serviços ao samba. A ‘Ordem do Jogral’ não foi criada para conquistar amigos e artistas para ‘O Jogral’. Nós é que nos sentimos conquistados por esses artistas que, desinteressadamente, se fizeram amigos do ‘Jogral’. A medalha da ‘Ordem do Jogral’ é apenas uma retribuição”.



Quando o homenageado era artista, recebia sua medalha e se apresentava num show. Receberam a “Ordem do Jogral”, entre outros: Jorge Ben, Paulinho da Viola, Clementina de Jesus, Zé Kéti, Toquinho, Paulo Vanzolini, Araci de Almeida, Euríclides Formiga, Alaíde Costa, Claudete Soares, Martinho da Vila, Jair Rodrigues, Agostinho dos Santos, Moreira da Silva, Inezita Barroso, Ismael Silva, Adoniran Barbosa, Luiz Gonzaga, João Pacífico, Lupicínio Rodrigues.



A “Ordem do Jogral” era sempre entregue com alguma solenidade. Carlos Paraná convidava pessoas representativas para prestigiarem o condecorado. Ele dizia sempre alguma coisa sobre a expressão e a carreira do homenageado e, em seguida, fixava na sua lapela o crachá que chegou a ser cobiçado por todos os artistas. Mas a “Ordem do Jogral” servia tanto para homenagear como para discriminar. E, ao contrário das comendas do Vaticano, a “Ordem do Jogral” não se podia comprar. Costa e eu pretendemos, agora, revivê-la e homenagear todos os grandes artistas populares do Brasil.



Carlos Paraná, com as condições que “O Jogral” passou a dar, dispensou-me do trabalho artístico convencional, para compensar os muitos anos em que puiu smokings sem conta cantando para comer, como desabafou um dia. E começou a planejar coisas maiores. Seu plano, em resumo, era mudar “O Jogral” para um local mais amplo que possibilitasse a montagem de um estúdio e de um palco maior.



Em 1968, me casei com Carolina Andrade, que é hoje também minha sócia, diretora artística de “Discos Marcus Pereira” e minha principal colaboradora. Uma semana depois, Carlos Paraná casou-se com Marta Greiss, eu e Carolina fomos seus padrinhos. O casamento constou apenas do ato civil, no cartório da Rua Maceió e de um almoço no Restaurante “Pilão”, no Embu. Participaram dele Carlos, Marta, Carolina e eu, Álvaro Moya e Anita e mais uma irmã de Marta, Luísa. O casamento disciplinou a vida de Carlos que passou a tomar as providências decorrentes de seus novos planos com mais consequência. Propus, inicialmente, transferir “O Jogral” para o “Hotel Vila Rica” que estava sendo instalado à Rua Vieira de Carvalho, a partir da adaptação de um prédio de apartamentos, e do qual eu era acionista. Mas o lugar não era ideal, nem como localização, nem como espaço e Carlos desistiu da ideia. Propus em seguida uma loja de fundo num prédio recém-construído à Rua Haddock Lobo, quase esquina da Avenida Paulista e do qual meus pais e eu tínhamos sido os incorporadores. A loja era de bom tamanho, bem localizada, mas não se adaptava aos planos de Carlos.



Ele alugou, finalmente, um imóvel à Rua Maceió, 66 e começou a reforma em 1970. Prevendo que o caminho que abriu seria explorado, no mau sentido da palavra, por muitos imitadores, o que seria esgotado, prejudicando todos, como aconteceu depois, Carlos pretendia apresentar música latino-americana no novo local da Rua Maceió. Chegamos a discutir isso e a nossa ideia era começar por dedicar segunda-feira a esse projeto, ampliando depois que a coisa pegasse. Cheguei a propor-lhe contato com as embaixadas dos países latino-americanos que poderiam ter interesse em ajudar, promovendo a vinda de conjuntos regionais. Até hoje, seis anos depois de sua morte, o filão continua virgem, explorado, superficial e episodicamente, como no show “Falso Brilhante”, de Elis. Mas será o projeto que “Discus Marcus Pereira” começará a executar, depois de terminado, com a coleção “Música Popular do Nordeste”, o Mapa Musical do Brasil. Iniciaremos, então, o Mapa Musical da América Latina, que abrangerá do México à Patagônia.



Em 1969, eu fui pouco ao “Jogral”. Minha mulher tinha um expediente pesado de trabalho na Abril Cultural, na qual era um dos vices-diretores. Nos fins de semana eu a acompanhava em seu trabalho de administração de uma pequena fazenda de cana, em Araras. Meus contatos com Carlos eram regulares, mas espaçados, jantávamos juntos ás vezes, quando Carlos me inteirava do andamento do seu projeto.


                            Capa do livro publicado por Marcus Pereira em 1976


Falava-me, muito, nessa época de um novo amigo e companheiro de trabalho, o Fiore – Fioravanti Andreacchi – que teve uma importância muito grande nesta fase final da sua vida, pois era muito dinâmico e responsável, a ponto de ter sido uma estafa por excesso de trabalho, dividindo com Carlos a administração do “Jogral” da Rua Avanhandava e do novo local que estava sendo reformado. Carlos Paraná, nessa ocasião, tinha já formado um pequeno patrimônio e seus planos artísticos e comerciais eram muito ambiciosos. Desde 1967, não compunha nada, seu tempo e seus esforços eram todos dirigidos para a concretização de seus planos. Quando conheci Carolina, recém-saída da tragédia que se abateu sobre ela e sua família – que foi a morte acidental de seu pai – e depois de convence-la a deixar uma atividade que não reconhecia nem precisava de sua raríssima capacidade e talento, organizamos juntos um curso de introdução à Arte Moderna, pois ela tinha grande familiaridade com o assunto, tendo sido a melhor professora de uma famosa escola de nível médio de São Paulo, do gênero grã-fina espera-marido. Fizemos cartazes, divulgamos, matricularam-se cerca de trinta alunos. O único que não perdeu uma aula sequer foi Carlos Paraná, que também colecionou mais tarde a obsessão que criança tem com álbum de figurinhas, os fascículos que Carolina dirigiu em seguida, Arte nos Séculos, editado pela Abril Cultural. Esses dois fatos dão bem a medida do interesse do Carlos em aprimorar-se culturalmente, em repor o tempo que a pobreza lhe havia roubado.



Há um fato, ocorrido em 1967, que é mais um documento da importância do “Jogral” na valorização de nossa música e no apoio que passou a dar a artistas de talento, ajudando-os nas suas carreiras. Por ocasião do Festival de 67, certa tarde, passou pela minha casa o Renato Teixeira e me disse que tinha conhecido, nos bastidores do Festival, um artista, que ele classificou de primitivo, incrível, e que tinha tomado a liberdade de dar o meu endereço para ele. Eu tinha, nessa ocasião, uma espécie de casa aberta onde se reuniam compositores, cantores, artistas populares, amigos e, principalmente, amigas, pois objetivo principal dessas reuniões, segundo combinação com o Carlos Paraná, era conspirar o afeto feminino em nosso favor. Renato Teixeira iria viajar naquela noite para Taubaté e o artista “primitivo” a que se referiu apareceu mais tarde, meio sem-jeito, rondando pelas beiradas. Eu deixei-o logo à vontade, pedi que me mostrasse suas músicas, ele disse que sua voz não era boa, que tinha até constrangimento em cantar. Insisti e, na primeira música, Casa de Bamba, vi logo que se tratava de um compositor de grande talento e que o timbre e sua forma de cantar, muito particulares, valorizavam e personalizavam esse talento. Esse artista era Martinho da Vila. Levei-o ao “Jogral”, Carlos Paraná entusiasmou-se e ele passou a apresentar-se no “Jogral” com regularidade. Seu público de qualidade foi a primeira confirmação das possibilidades que Martinho da Vila tinha, o que sua carreira confirmou.



Posteriormente, tive a oportunidade de estimula-lo a deixar seu ganha-pão. Martinho era sargento datilógrafo – o que o impedia de tentar, de uma forma consequente, a carreira. Propus-lhe assegurar o dinheiro equivalente ao seu soldo, até que ele tivesse condições de viver de sua música. Na verdade, não cheguei a fazer nenhum adiantamento, ele é que me fez o primeiro, para crédito em sua conta-corrente como combináramos. Dois anos depois, devolvi-lhe esse dinheiro, do qual houvera esquecido, com juros e correção monetária.



Em 1969, Carlos decidiu levar para um teatro os artistas do “Jogral”, um espetáculo que criou. As músicas eram dele mesmo e mais de Oscar Castro Neves, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Pixinguinha, Paulo Vanzolini, Heitor Villa-Lobos e outros. Os poemas e textos também dele mesmo e mais de Jorge Amado, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Vanzolini, Raul Solnado. Os músicos: Mário Edson (que Carlos descobriu para a música, Mário era professor) no piano; Adauto Santos (violão, viola, banjo e tamborim); Manoel Gomes (flauta); Benedito Costa (cavaquinho); Fritz (cuíca, pandeiro e tamborim); Nereu Gargalo (pandeiro); Joãozinho Paraíba (atabaque). Os cantores: Adauto Santos, Leo Karan, Ana Maria Brandão, Vera Regina Coutinho.



Carlos Paraná deu ao espetáculo o nome de “Jogral 69” ou os “Homens Verdes da Noite”. A ideia era atrair para os espetáculos pessoas interessadas em música brasileira e cultura, mas resistentes ou com preconceitos com relação á vida noturna convencional, á penumbra, à fumaça e ao uísque. Pretendia levar para o palco, e para os assépticos, o clima descontraído e boêmio do “Jogral”. Mas não deu certo, porque essa transferência é impossível. Marta Paraná me ajudou a lembrar pequenos trechos do texto: “Nosso pequeno mundo é o ‘Jogral’. Aqui ninguém é de direita ou de esquerda, todo mundo é medíocre”. E mais: “Tens alguma dor? – Se a tenho, não sinto”. E, com sotaque lusitano: “Sei que pareço uma besta / Mas há gente que conheço / Que não parecendo o que sou / São aquilo que pareço”.



Desde o primeiro disco que houvéramos gravado juntos, eu insistia com o Carlos para gravarmos um disco com as suas músicas e com a sua interpretação. Ele não quis fazer antes, até que em 1970, consegui convence-lo. Recordando, havíamos gravado, em 1967, o disco do Paulo Vanzolini “Onze Sambas e Uma Capoeira”. Em 1968, “Brasil, Flauta, Cavaquinho e Violão”. Em 1969, as coisas não iam bem comigo, financeiramente, e gravei na minha casa num AKAI-M-7, semiprofissional, um disco com músicas de Renato Teixeira e Maranhão. Foi um disco amador, com objetivo de ampliar um pouco nossa roda de amigos, cantores, compositores e apreciadores. Finalmente, em meados de 1970, Carlos concordou em gravar. Selecionou seu repertório, escolheu os maestros para os arranjos e começamos a produzir o disco. Quando os arranjos ficaram prontos, gravamos os play-backs e marcamos a primeira sessão de gravação, para Carlos Paraná cantar. Nessa primeira – e última – sessão, Carlos colocou sua voz em três faixas: Resignação, Cafezal em Flor e Vou Morrer de Amor.



No dia 22 de outubro de 1970, teve uma grande hemorragia, perdendo uma quantidade enorme de sangue pela boca. Eu só soube um dia depois, corri ao Hospital, e encontrei o Carlos sentado na beirada da cama. Acabava de ter tido outra enorme hemorragia, o quarto estava inundado de sangue e ele, como que brincando com sua própria tragédia, comentou comigo: “Parece uma elefanta menstruada”. Eu passei esta noite com o Carlos, sentado numa cadeira no Hospital vigiando seu sono, acompanhando-o ao banheiro, depois evitando que ele se levantasse, atendendo-o. Lembro-me que, madrugada alta, ele sentou vontade de urinar, mas não conseguia. Pediu-me então que abrisse um pouco a torneira do banheiro e deixasse a água escorrer naquele ponto em que ela escorre e faz um ruído característico, que é quando as gotas se dão as mãos e fazem um fio que se desfaz ao contato com o ralo da pia. Comentou comigo, então, que quando criança, era o recuso que usava para urinar, já que em todas as casas e em todos os tempos foi uma tarefa das crianças, ordenada pela expressão “xixi-cama”. O médico que o atendeu, Dr. Silva Teles, recomendou com ênfase que Carlos fosse operado apesar da recomendação em contrário de seu médico, indicado por Paulo Vanzolini e que tinha assumido uma cátedra na Faculdade de Medicina em Botucatu. Poucos dias depois, seu estado agravou-se, o cirurgião recomendou uma segunda operação, Carlos estava absolutamente debilitado, a ponta de não poder levantar-se, foi colocada uma tábua sob seu corpo e ele assim foi passado para uma cadeira de rodas, literalmente, foi escorregado para a cadeira de rodas. Eu estava ajudando os enfermeiros e nesse momento ele me disse: “Não deixe que judiem de mim”.



É uma grande tristeza que carrego comigo a de, iludido pela sedução da esperança, ter permitido aquela segunda operação inútil, como tinha sido inútil a primeira. E ele absolutamente indefeso, sem forças até para falar, implorou a minha proteção e eu não dei. Desde seu internamento, com Marta também doente, os seus parentes ausentes no início e depois incapazes de tomar decisões, por inexperiência e perplexidade, os parentes de Marta cuidando dela, eu fui obrigado a tomar, junto com o Fiore, as decisões relativas à primeira e à segunda operação. A meu favor, tinha a esperança que foi dada por médicos notórios e experientes de que havia alguma possibilidade de salvar o Carlos. Mas, na verdade, ainda que com razões, eu falhei na última solidariedade que o meu grande amigo me pediu.



Marta Paraná adoeceu junto com Carlos. Ela estava grávida de quatro meses e nós a internamos na “Pro-Mater”. Ela perdeu o filho que esperava. Carolina a atendia, eu ao Carlos, até que a convencemos de internar-se também no Hospital Osvaldo Cruz, onde Carlos estava. Numa das poucas vezes que tivemos esperança, logo depois da segunda operação, na fase pré-agônica, cheguei ao hospital e Carlos me disse que estava na batalha da sopa, quando tentava engolir o fundo de uma colher de sopa. Na véspera, havia sido a batalha da água, quando ele conseguiu beber um bocadinho de água. Mas ele foi vencido na batalha da sopa, porque suas vísceras estavam como se tivesse havido um grande bombardeio dentro dele. Nesta noite, ele pediu ao Fiore que fosse comprar “toddy” de coco, e lembrou-se, até que havia um supermercado de plantão na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, ali perto. Isso me espantou, porque ele passara quase sem consciência todos os dias anteriores. Havia expressa proibição médica, mas eu omiti isso do Fiore e botei pra correr o enfermeiro que queria impedir. O Fiore foi comprar, mas o “toddy “de coco ficou intacto, Carlos logo entrou em agonia. Antes – e isto ocorre com frequência, diz-se que é a visita da Saúde – tivera vontade de provar o seu leite com coco, e o leite tinha sido a bebida de toda a sua vida de boêmio e artista.



Carlos falava-me muito da sua vida no interior, lá nos sertões de Ribeirão Claro, no norte do Paraná, quase fronteira de São Paulo, perto de Ourinhos. Ele foi lavrador até os vinte anos, ajudava o pai numa pequena lavoura de café. O trabalho árduo de sol a sol não diminuiu, antes aumentou, o imenso amor que ele tinha pela natureza. E disso eu, expectador atônito da sua partida, me lembrei muito nas longas vigílias da sua agonia, onde só o seu ressonar, primeiro e depois a agitação de seus pesadelos reais quando via, certamente, a grande foice levantar-se, só isso riscava levemente a trilha por onde caminhavam os grandes pés de feltro do enorme silêncio do seu quarto de agonizante.



Lembrei-me de quando, na Semana-Santa de 1967, fomos para Ribeirão Claro, o que havíamos combinado fazer desde que nos conhecemos. Viajamos de automóvel e Luciana, minha filha, foi conosco. Os pais de Carlos moravam numa pequena chácara dentro da cidade numa casa que tinha, em hospitalidade e asseio, o que tinha em simplicidade. Era de telhado baixo, telha vã e a gente dormia quase em promiscuidade com aquele telhado carinhoso que, se nos separava das estrelas, nos entregava os ruídos que, com a sua luz, os grilos fabricam, na sua tarefa de dublar estelas, como diz um verso raro de Renato Teixeira. No sábado de Aleluia fomos a um baile em Jacarezinho, onde Carlos iria receber uma homenagem por Maria, Carnaval e Cinzas. Devidamente homenageados, voltamos de madrugada para Ribeirão Claro e um pneu do meu carro furou no caminho. Descemos para trocá-lo e a frescura da madrugada e o céu estrelado, numa noite de raro talento, nos fizeram sentar no chão e nos fizeram plateia de incansáveis “bis”. Conversamos muito, construímos mais uma dependência ao nosso castelo de sonhos, e, de repente, vimos que uma vaca espionava, sem nenhuma cerimônia, a nossa conversa.



Outra vez, fizemos uma viagem ao Litoral Norte. Fazia muito tempo Carlos tinha vontade de conhecer a região, mas “O Jogral” usava todo o seu tempo. Fomos num domingo bem cedo, dia em que o “O Jogral” não abria, como até hoje. Saímos noite ainda, logo depois de o Carlos fazer o caixa. Logo no começo da Via Anchieta, havia sido colocada numa proteção contra o ofuscamento dos faróis dos carros da pista contrária. Mas a alegria durou pouco, como Carlos comentou comigo, acrescentando: “Sabe porque botaram só um pedaço pequeno? Pra gente ver que é ótimo e depois ficar chateado porque acabou”. Rimos e eu comentei que os sádicos procuram as mais estranhas funções para divertir-se com o sofrimento alheio. Tomamos a estrada Guarujá-Bertioga, atravessamos o canal da balsa e, pela estrada que começa na Bertioga, fomos até São Sebastião. Íamos parando, eu aproveitei a viagem para ver se conseguia um lugar para passar o Carnaval com minha irmã Marilu e meu cunhado Maurício – raridade humana que um acidente cardíaco levou em 72 – Carolina e minha filha Luciana. Nosso primeiro filho já estava encomendado, mas ainda não tinha sido entregue. Numa praia de pescadores, vinte e sete quilômetros antes de São Sebastião, consegui alugar uma casa onde todos passamos o Carnaval, depois. E então comprei uma casa muito simples nessa praia que se chama Maresias, que depois melhorei e é hoje a nossa casa de descanso. Seu conforto maior é seu terraço estar a um palmo e meio da areia da praia. Na volta dessa viagem que fiz com Carlos, descobri mais um aspecto de seu amor pela natureza, que eu desconhecia. Num longo trecho, em que se usa a praia como estrada, o mar estava, logo à esquerda, nos tentando seduzir com o seu marulho. Carlos, repentinamente, não se conteve. Parou o carro e correu para o mar, nem me avisou. Eu fiquei no carro e assisti ao seu encontro com o mar e me comoveu sua euforia, como a de uma criança liberada para todos os seus ímpetos e desejos. Retomamos a viagem e, duas vezes ainda, Carlos não resistiu às chamadas do mar.



Numa das primeiras noites que passei com ele no Hospital, antes de ser operado, contou-me, certa madrugada, que tivera um sonho que o impressionara. Sonhou que estava andando por uma pequena estrada pela qual, durante muitos anos, ia para a roça. Nessa estrada havia um sítio, à direita, com o qual o Carlos manteve um namoro longo. Seu sonho era poder, um dia, compra-lo. Uma pequena estrada dava acesso à casa simples que lhe servia de sede e era sombreada por uma touceira comprida de bambus altos. Carlos havia sonhado, e, na regressão do sonho, era menino ainda e seu pai comprara o pequeno sítio. Acordou e me contou logo o que sonhara. Durou ainda algum tempo o encantamento daquela ilusão boa, e foi a última vez que a alegria entrou nele. Depois, saiu e não voltou mais.



Eu não estava mais suportando ver o meu amigo ir embora, amigo de tanta alegria, muito mais do que irmão – porque irmãos a gente não escolhe – amigo e tantos planos e de tantos feitos, de tantos sonhos, amigo de tanta gente, o melhor amigo que todos já tivemos, porque ele lutou por todos nós, porque lutou pela nossa cultura. Quando eu já não aguentava mais e quando senti que o meu pranto iminente seria o aviso final para o Carlos, pedi a Carolina – esta brava companheira que já se habituara a chorar lá dentro dela – que se despedisse do Carlos em meu nome. E Carolina, com brandura e fibra, ouviu o Carlos dizer que sabia que ia morrer. Ela retrucou que não, que o momento era duro, mas que ele iria vencê-lo. E Carlos disse as últimas palavras da sua vida: “Não é verdade, eu sei que vou morrer. E é uma pena, eu tinha tanta coisa pra fazer!”. Nesse momento, Fiore chegou, Carolina deixou-o com o Carlos agonizante, saiu rapidamente do quarto e eu, então, assisti ao pranto mais tocante que vi em toda a minha vida, nós dois chorávamos, no maior e no mais inútil desespero da nossa vida comum. Algum tempo depois, Carlos morreu, eu fiquei no velório por uns resíduos de convenção que ainda existem em mim, porque fazer companhia a um defunto é o mesmo que fazer companhia a uma pedra, as pedras na verdade têm mais vida.   

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